Big techs no Brasil: o retrocesso veste máscara de “solução”

Fernando Haddad oferece pacote de bondades a empresas transnacionais sem que haja plano para a IA, política para os chips ou sequer caminho para proteger os dados das universidades. Em tais condições, país arrisca-se a embarcar alegremente na cilada do colonialismo digital

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Por Sergio Amadeu da Silveira

Poucas pessoas ainda duvidam da relevância das tecnologias como elemento crucial do poder político, militar e econômico. Os economistas neoliberais fazem suas acrobacias em corda bamba para justificar a concentração de renda e a importância da estabilidade na pobreza, mas não conseguem esconder que a política tecnológica é fundamental para o desenvolvimento de um país. Assim, cabe perguntar qual a nossa política tecnológica? Como ela está integrada à política econômica no Brasil? Parece que continuamos a linha do desenvolvimento com dependência ou do desenvolvimento subordinado. No terreno da Inteligência Artificial qual é o papel que queremos ter na divisão internacional do trabalho e do conhecimento?

Os dados são o insumo fundamental da Inteligência Artificial, principalmente do aprendizado de máquina, do aprendizado profundo e dos grandes modelos de linguagem, tais como o GPT e o DeepSeek. Dados não param de ser coletados pelas big techs. Não por outro motivo, os Estados Unidos concentram mais de 50% dos data centers do planeta. Sem dados suficientes, o treinamento dos modelos de IA não é viável. Por isso, os EUA concentram dados em infraestruturas de hiperescala. Um único data center do Google na cidade de The Dalles consumiu 1,35 bilhão de litros de água, em 2020, para refrigerar seus mais de 200 mil servidores que armazenam e processam dados.

O impacto ambiental dos data centers é conhecido e já se compara, segundo a Agência Internacional de energia, ao consumo anual de um país como o Japão. O modelo de IA conexionista, baseado em vastas bases de dados deve ser questionado. Embora as big techs tenham redes sociais e aplicativos que lhes garantam uma farta criação e extração de dados de quase todo o planeta, é preciso denunciar sua insustentabilidade social e ambiental. Algumas big techs norte-americanas pensam em utilizar pequenos reatores nucleares para garantir o elevado consumo de energia dos seus data centers. Chamam de energia limpa, esquecem do lixo nuclear e dos graves riscos que essa opção trará.

Há poucos meses, o Partido Comunista Chinês declarou que dados são fatores de produção. De certo modo assume-se que os dados se tornaram capital. Com eles alimentamos a IA e criamos novos produtos e serviços. Empresas como Apple, Tesla e Microsoft são obrigadas a armazenar dados de usuários chineses em servidores dentro da China, operados por joint-ventures ou parceiros locais. A Índia e a Indonésia têm políticas altamente restritivas para extrair dados de seu país. O Brasil, não. Aqui permitimos que até dados do setor público sejam armazenados nos Estados Unidos.

Recentemente, li que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad quer atrair data centers das big techs para o Brasil. Estaríamos enfim assumindo a importância da tecnologia na política econômica? Adotamos o caminho da China em relação aos dados? Os data centers que o ministro pretende trazer terão participação de capital nacional e governança compartilhada? Tudo indica que não. A matéria dizia que o ministério da Fazenda pretende fazer exigências do tipo “10% da capacidade dos data centers contemplados deverão ser ofertadas exclusivamente no mercado doméstico, seja para empresas, projetos de pesquisa ou universidades e políticas públicas” (a matéria do UOL relatou). Que bom, assim a Amazon poderá atrair os dados das poucas universidades que ainda não entregaram suas bases para o Google e para a Microsoft.

Não parece existir um plano para construirmos infraestruturas básicas de IA além do pacote de bondades para as big techs. Não há políticas que impeçam que determinados dados sejam extraídos e hospedados fora do país, tal como na Índia, Indonésia e China. Os repositórios de dados, as listas de discussão, a caixa postal digital de mais de 70% das universidades brasileiras estão hospedados com as big techs. Não temos políticas para reverter isso. Não incentivamos arranjos público-privados de capital nacional para a construção de data centers. Vivemos ainda a política do desenvolvimento a partir do aprofundamento da dependência. Esse parece ser o único caminho. Além disso, corremos o risco de as ínfimas contrapartidas caírem no Congresso, dominado pelo Centrão. Nunca é demais lembrar que as big techs bloquearam a regulação das plataformas e nisso estão alinhadas com a gestão Trump.

O ministério da Fazenda está trilhando um caminho similar ao da velha fórmula de atração das montadoras de automóveis. Esse é o caminho? Vamos apostar em atrair big techs nesse momento em que países estão concentrando esforços em interiorizar partes estratégicas do desenvolvimento de tecnologias como a IA. Qual a nossa política para os chips e para as placas de alto desempenho, indispensáveis ao treinamento de modelos e a realização de tarefas de inferência da IA? O modelo de desenvolvimento pela atração de empresas que extraem dados da nossa população, concentram estruturas de processamento e remetem os lucros dessa operação para suas matrizes foi nomeado pelo pesquisador sul-africano Michael Kwet de colonialismo digital.

Além de tudo isso, a proposta de fortalecer data centers das big techs, em vez de criar outros arranjos – como por exemplo, com os países do BRICS – desconsidera o cenário geopolítico e a questão de segurança em uma conjuntura abalada por Donald Trump. Será que o governo brasileiro desconhece o Cloud Act? Essa lei aprovada pelos EUA em 2018, estabelece que empresas norte-americanas devem fornecer dados sob sua posse, custódia ou controle, mesmo que esses dados estejam armazenados fora dos Estados Unidos. Junto com a CALEA (Communications Assistance for Law Enforcement Act) e o Patriot Act, os Estados Unidos praticam a jurisdição extraterritorial. Ou seja: as empresas dos EUA (como Microsoft, Google, Amazon, Meta etc.) devem cumprir ordens judiciais norte-americanas, independentemente de onde os dados estejam fisicamente armazenados. Esquecemos do que Edward Snowden nos mostrou em 2013?

O fato é que o aparato legal e os dispositivos técnicos utilizados pelas agências de segurança e inteligência dos Estados Unidos garantem que as big techs forneçam dados armazenados em servidores no exterior. Além disso, essas empresas possuem condições de bloquear, remover ou transferir dados mesmo em servidores localizados em outros países, dependendo da decisão judicial. Isso já bastaria para considerar inadequado e perigoso o governo brasileiro hospedar dados de seus ministérios e suas empresas nas nuvens das big techs, mesmo que suas estruturas estejam fisicamente localizadas no país. Diante das pressões de vários países, principalmente da União Europeia, as big techs lançaram um produto para continuar extraindo e controlando os dados de países tecnodependentes chamado “Sovereign Cloud”, ou seja, nuvem soberana. Um eufemismo comercial.

Essa proposta do ministro Fernando Haddad permite discutir a ausência de uma plano que incorpore a tecnologia ao centro das decisões da política econômica do governo. Todavia, seria importante observar que podemos buscar soberania, autonomia e governança nacional das tecnologias. Temos possibilidades de construir alianças estratégicas principalmente com os BRICS. Mas, sem um plano tecnológico nacional não deixaremos nossa condição de dependência tecnológica aguda.

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