Redes sociais e o partido digital de massas

Pesquisadora explora a hipótese de uma indústria cultural digital – entre a vitrine narcisista e a extração de dados. Uma falsa esfera pública que, nas mãos das Big Techs, favorece a ultradireita. Poderá a esquerda se organizar fora desses espaços?

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Por Bruna Della Torre, no blog da Boitempo

A entrevista abaixo foi preparada para a mesa redonda “América Latina: linhas de conflito na luta pela democracia”, de que participou a pesquisadora Bruna Della Torre ao lado de Silke Pfeiffer (Brot für die Welt), Pablo de Marinis (Universidad de Buenos Aires) e Jennie Dador Tozzini (ex-diretora executiva da Coordenação Nacional de Direitos Humanos – Peru). O debate fez parte da programação de um evento chamado “Democracia e autoritarismo: desdobramentos autocráticos, análises e contra-estratégias”, que ocorreu em 26 de abril em Frankfurt e foi organizado pela Associação Democracia Transnacional, em cooperação com as seguintes instituições: Instituto de Pesquisa Social; Brot für die Welt; Offenes Haus der Kulturen; mehr als wählen e. V.; World Design Capital 2026; Frankfurter Rundschau e Feira do Livro de Frankfurt. As perguntas são de Silke Pfeiffer e as respostas são de Bruna Della Torre. 


  1. Depois de superar a ditadura militar nos anos 80, seu país sofreu recentemente uma experiência autoritária muito forte sob o regime de Jair Bolsonaro. Em sua pesquisa, você está investigando a influência da internet e especialmente das mídias sociais na política. Como funciona a propaganda digital da extrema direita e que efeitos está tendo? 

Obrigada pela pergunta, Silke, é um prazer estar aqui com vocês neste prédio que Max Horkheimer presenteou aos estudantes para que tivessem um espaço autônomo para promover sua própria formação política (algo inimaginável na universidade hoje em dia). Entre 2021 e 2024, empreendi uma pesquisa motivada pela inquietação que me causou o rumo político do Brasil após a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Aquela eleição foi importante porque produziu, como você mesma disse, um processo de ruptura com a Nova República. Bolsonaro venceu exaltando o passado da ditadura militar e o torturador da ex-presidenta Dilma Rousseff. Durante esse período, analisei como a infraestrutura digital favoreceu formas renovadas de organização neofascista. Investiguei a propaganda dessa extrema direita nas redes ao longo desses anos, especialmente no Instagram, Telegram, TikTok e YouTube. Minha atenção se concentrou principalmente no próprio presidente Jair Bolsonaro e seus filhos Eduardo, Flávio e Carlos (políticos profissionais), mas também em grandes influenciadores de extrema direita. Parte dessa pesquisa também se concentrou na questão de gênero. Investiguei diversas formas de propaganda antifeminista, especialmente a produzida por influenciadoras, pastoras e pela esposa do presidente.

Concretamente, interessa-me explorar a hipótese de que a indústria cultural digital — isto é, o complexo de redes sociais, plataformas e dispositivos tecnológicos — opera hoje como uma nova forma de organização política que substituiu, em muitos casos, o partido de massas na articulação da extrema direita. Ou seja, a indústria cultural digital, tal como hoje configurada, não é simplesmente um meio de comunicação… mas uma forma de organização política do neofascismo. As redes não são apenas o lugar da propaganda, mas da própria política. 

De fato, a indústria cultural (como o rádio e o cinema) já havia sido um dos principais instrumentos do fascismo histórico; porém, não chegou a substituir a importância do partido. O desenvolvimento mais recente das forças produtivas modificou substancialmente esse equilíbrio. As redes sociais possuem hoje uma capilaridade social que nenhuma outra organização jamais sonhou alcançar. As campanhas eleitorais hoje se desenvolvem quase exclusivamente por meio delas. O partido de massas foi substituído por uma nova forma: o partido digital de massas, uma estrutura que combina verticalidade — conectando diretamente o líder aos seus seguidores, da propaganda governamental às milícias digitais — e horizontalidade — articulando grupos marginais que antes estavam isolados e gerando nas pessoas (muitas vezes excluídas da política) uma falsa sensação de participação ativa. Nada disso é exatamente novo, mas é importante destacar. No Brasil, muitos influenciadores foram eleitos deputados. O que se observa é que, com esse tipo de propaganda, não há mais uma diferenciação clara entre um agitador de extrema direita e um político — essa mudança é muito importante. A direita está conseguindo o que a esquerda, em muitos casos, não conseguiu: mobilizar pessoas das redes para as ruas em questão de minutos, organizando não apenas manifestações, mas até tentativas de golpe político. Os episódios do Capitólio nos EUA e da invasão do Congresso e do Supremo Tribunal Federal no Brasil por parte de neofascistas são apenas duas manifestações de um potencial muito maior. 

Em geral, o que observei nessa propaganda é o que temos visto, em termos de conteúdo, em toda a extrema direita: um discurso contra a chamada “ideologia de gênero” — que inclui um forte e influente movimento antifeminista —, o reforço do racismo estrutural presente na sociedade brasileira, o negacionismo, uma retórica neoliberal favorável às plataformas digitais e à livre circulação de armas, e uma particularidade brasileira que, a meu ver, consiste no reforço da lógica religiosa muito apocalíptica, especialmente das igrejas evangélicas, cuja propaganda é ostensiva nessas redes.

No entanto, em geral, nada disso é verdadeiramente novo. Contém muitos elementos do chamado fascismo histórico. Há bodes expiatórios (o Partido dos Trabalhadores, as feministas, os receptores de benefícios sociais que “não trabalham”); há promessas de que as frustrações e ressentimentos atuais serão eliminados por determinadas políticas; há empoderamento dos seus seguidores, há um constante recurso a agravos econômicos, morais, culturais e políticos; há uma produção sistemática de desconfiança e paranoia generalizada; há uma mobilização dos complexos de dependência das pessoas e uma produção de ansiedade social e psíquica generalizada. O exemplo mais ilustrativo desse fenômeno foi um meme que teve impacto considerável na eleição de Bolsonaro: uma imagem de uma mamadeira com um bico em forma de pênis, amplamente difundida nas redes sociais, acompanhada da afirmação de que o Partido dos Trabalhadores planejava instaurar uma “ditadura gay” no Brasil. Essa propaganda opera em uma complexa rede de inter-relações que torna insuficiente estudar apenas o capitalismo. Ela contém elementos políticos, econômicos, psíquicos, sociais, de gênero, entre outros. O que realmente muda é sua escala e seu alcance. Isso, sim, é novo. E trata-se de uma mudança quantitativa que traz consigo consequências políticas qualitativas. Funciona mobilizando todas essas questões que enumerei anteriormente, mas funciona, acima de tudo, porque é extensiva e ostensiva. 

  1. Recentemente você disse em uma entrevista que está tentando decifrar a propaganda digital da extrema direita para “desenvolver estratégias para neutralizá-la, impedi-la ou criar uma brigada contra incêndios.” Como você visualiza tal estratégia? E como vê a esquerda e/ou as organizações da sociedade civil / movimentos sociais reagindo frente a esses desenvolvimentos? 

Vou começar respondendo a essa pergunta a partir de uma abordagem teórica, para contar que uma das ideias que inspiraram minha pesquisa foram justamente os estudos sobre a propaganda autoritária realizados por Leo Löwenthal e Norbert Gutermann, publicados no livro Profetas do engano: um estudo das técnicas dos agitadores americanos. Esses estudos tinham uma intenção prática. Max Horkheimer, então diretor do Instituto de Pesquisa Social, dizia-se interessado em criar uma espécie de manual contra a propaganda fascista, uma tentativa que acabou não se concretizando. E quando comecei esta pesquisa, minha ideia era, de certa forma, parecida. Do ponto de vista acadêmico, ainda é, e acredito que não se pode pensar em nenhuma estratégia eficaz contra a extrema direita sem compreender como ela funciona.

Mas hoje sou muito mais cética quanto a soluções puramente educativas, por assim dizer. Primeiro, porque existem duas dificuldades intrínsecas. A primeira é que muita gente não entende que não basta desmentir os agitadores de extrema direita ou fazer campanhas contra “fake news”. É muito difícil contestar esses agitadores na base do conteúdo do que dizem, não só porque seu discurso é um “discurso salsinha” — composto de uma junção fragmentária de vários ingredientes heterogêneos entre si, como dizia Theodor W. Adorno — mas porque, na realidade, esses agitadores não falam de fora, mas geralmente surgem do próprio seio de seu público-alvo: falam de dentro das camadas fascistizadas (ou ao menos conseguem transmitir essa impressão aos seus seguidores). Um exemplo: quando Bolsonaro perdeu apoio entre as mulheres devido ao seu machismo, surgiram diversas influenciadoras mulheres nas redes e a própria esposa de Bolsonaro passou a participar ativamente da propaganda antifeminista. Hoje ela é a figura da extrema direita mais bem posicionada nas pesquisas de intenção de voto para as próximas eleições, dada a magnitude de seu papel no fenômeno do pinkwashing  dentro do bolsonarismo. Atualmente, Trump também escolheu como vice-presidente uma figura que, embora não represente necessariamente esse grupo, vem do chamado “cinturão da ferrugem” e, em sua autobiografia e no filme baseado nela, fala sobre o sofrimento da classe trabalhadora branca. 

A segunda dificuldade é imaginar que o principal objetivo do agitador seja conquistar a adesão moral ou intelectual de sua audiência. Se seguirmos essa linha de análise, não entenderemos por que alguém como Trump — que declarou publicamente que gostaria de namorar a própria filha — pode ser visto como defensor da família. Como Gutermann afirma, essa propaganda funciona mais como um lubrificante para a violência: não se trata realmente de proteger a família, mas de viabilizar outros discursos, como a violência contra mulheres ou a população LGBTQIA+. Quando Bolsonaro fala de liberdade de expressão, está, na realidade, legitimando discursos que no Brasil constituem crimes, como o racismo. Ele legitima e autoriza essas atitudes violentas. E muitas pessoas se sentem agradecidas, pois possuem um ressentimento profundo por não poder expressar livremente esse racismo em um país que viveu quase quinhentos anos de escravidão.

Finalmente, há o problema da escala. As redes sociais são, assim como o capital financeiro, em certa medida incontroláveis. E nelas a direita domina o meio muito melhor que nós. Mais ainda: para usar uma ideia de Adorno, a venda de uma ideia política como se fosse uma mercadoria — como faz a extrema direita — ocorre hoje em um ambiente monetizado como nunca antes na história. As Big Tech remuneram a agitação de extrema direita. Isso transforma nossa luta não apenas em uma luta ideológica, mas também econômica. Como sempre, eles contam com o respaldo do grande capital. É complexo. Acredito que uma parte da esquerda, especialmente no Brasil, já se deu conta disso, mas isso não ocorre em outras partes do mundo. As redes sociais ainda são percebidas como uma tecnologia neutra. 

O que penso que é a única estratégia válida neste momento seria algo como “abra-te sésamo: queremos sair do mundo digital”. Nossa estratégia deve se orientar para o restabelecimento de vínculos sociais e políticos fora das redes. E, por fim, uma nota materialista, talvez a mais importante: Horkheimer advertia que os agitadores têm um público diferente em tempos de crise econômica. Em tempos de crise, há muito mais espaço para mobilizar o descontentamento em múltiplas direções. Portanto, compreender e transformar o sistema em que vivemos é essencial. 

  1. Que influência têm os desenvolvimentos internacionais (Trump e Big Tech nos EUA)? 

Hoje, as Big Tech são uma das forças sociais — ou antissociais, se preferirmos — mais poderosas que existem. Há pouco tempo, elas teriam sido classificadas como rackets  (organizações mafiosas). O problema do capitalismo monopolista que estamos experimentando é que ele implica uma concentração de poder enorme — por isso, um dos seus riscos é o neofascismo, ou o autoritarismo, se quisermos empregar um termo mais brando. Poderíamos dizer que não é possível compreender esse fenômeno sem articular economia e política… O capitalismo monopolista tende a concentrar dinheiro e capital, o que, no mundo capitalista em que vivemos, implica uma concentração de poder. Este é o ambiente perfeito para o surgimento de um novo fascismo. Estamos vivendo agora, como fica claro com Trump, sob o neofascismo de plataforma — uma tendência que só se fortalece. 

O que acontece com as plataformas é que elas estão demonstrando o quão poderosas são diante das velhas soberanias nacionais ou mesmo diante de blocos como a União Europeia. E agora as Big Tech chegaram ao governo de um dos países mais poderosos do mundo — talvez o mais poderoso. A pressão que estão exercendo sobre a Europa é brutal. Não vejo isso apenas como algo negativo — embora evidentemente o seja —, mas acredito que a posição da Europa já mudou e terá que mudar ainda mais nos próximos anos. A sinofobia, por exemplo, que é muito forte aqui na Alemanha e em outros países, também vai se transformar com a necessidade de negociar com a China. Assim, aquilo que se conhece como “Ocidente” vai se transformar com Trump. 

Por outro lado, a vitória de Trump nos Estados Unidos vai empoderar profundamente as direitas europeias — já estamos vendo isso na relação entre Musk e a AfD, e com a visita de J.D. Vance à Alemanha. Agora a Europa terá que demonstrar ao mundo quão fortes são suas democracias. Acho que precisamos reconhecer que a extrema direita está organizada internacionalmente — muito mais do que nós. E isso é um problema, porque historicamente os internacionalistas sempre fomos nós. E apesar dos discursos sobre tarifas e protecionismo, a direita estadunidense está exportando um modelo de governo para muitos outros países. 

Mas, para dizer algo em um tom mais otimista — se é que este mundo ainda permite algum tipo de otimismo —, vale lembrar que o Brasil se tornou agora um caso-laboratório — por enquanto — também no que diz respeito à contenção do fascismo, e acredito que isso poderá servir de exemplo para a Europa. Embora Bolsonaro não tenha sido julgado nem sancionado por sua atuação como presidente durante a pandemia de Covid-19, como deveria ter sido, ele foi finalmente declarado inelegível por oito anos por abuso de poder político e econômico nas celebrações do Bicentenário da Independência. Atualmente, também é formalmente acusado em um processo judicial que investiga seu papel na incitação ao episódio de 8 de janeiro, no qual uma multidão invadiu as sedes dos Três Poderes em Brasília. Espero que esse tipo de política leve a Europa a estudar e buscar apoio naqueles lugares que estão conseguindo conter a extrema direita. Líderes como Trump não deveriam poder se candidatar a eleições. E a AfD, com suas propostas racistas e neonazistas, também deveria ser proscrita. Pensar que permitir que movimentos de extrema direita cheguem ao poder é um ato democrático é uma ilusão. Trata-se de uma interpretação extremamente superficial do que significa democracia, e acredito que esta é a lição que a Europa precisa aprender agora se não quiser seguir o mesmo caminho dos Estados Unidos. É claro que isso não é suficiente e temos que derrotar o fascismo no corpo social, porém, devido à força mercantil e política desse movimento, precisamos usar todas as ferramentas que temos, principalmente as jurídicas e institucionais. 

  1. As redes sociais não são lugares contraditórios que também abrigam a esquerda? 

Acredito que a pergunta sobre o caráter contraditório das redes sociais e sobre como deveríamos ocupá-las é uma das que mais ouço quando falo sobre o tema. Confesso que tenho um ceticismo profundo quanto à possibilidade de que alguma mudança parta da esquerda dentro dessas redes — ceteris paribus, ou seja, tal como elas existem hoje. Embora pareçam constituir uma nova esfera pública, convém lembrar que, na realidade, se tratam de grandes monopólios capitalistas baseados na publicidade — daí a analogia com o que Adorno e Horkheimer chamaram de indústria cultural que guia minha pesquisa. São sistemas fechados, cujo funcionamento desconhecemos e que não estão sob nosso controle, mas sob o controle de algoritmos definidos por essa elite que hoje vemos vinculada a figuras como Trump: Elon Musk, Mark Zuckerberg… apenas para mencionar dois dos Broligarcas

Mas as redes sociais não têm absolutamente nada de público. São uma mistura de prisão — totalmente baseada na vigilância — e shopping center. E não sei se seria possível, nem sequer desejável, tentarmos disputar um shopping center. Não é porque as redes são digitais que elas não funcionam como uma espécie de shopping. Ainda mais quando, como mostraram diversas pesquisas, hoje mais da metade de nossas interações na internet ocorrem com bots. Imaginemos a quantidade de energia e tempo que precisaríamos investir, como esquerda, para tentar nos tornar hegemônicos nesses espaços. Ou aceitamos a mesma lógica e colocamos nossos próprios bots  para interagir com os deles, ou consumimos toda a nossa energia nessa tarefa. 

A indústria cultural hoje não é apenas um espaço, é um processo, uma forma social, se quisermos, que favorece objetiva e subjetivamente a extrema direita. É uma ferramenta de produção de comportamentos, de extração de dados, de trabalho e de imaginação política. 

Uma alternativa mais interessante — creio eu — seria, em primeiro lugar, compreender a fundo o fenômeno com que estamos lidando e nos reorganizar coletivamente fora desses espaços. Hoje existe um fetichismo muito forte em torno da tecnologia, mas não devemos esquecer que todas as revoluções do século XX foram feitas sem redes sociais. Precisamos expandir nossa imaginação política além dos limites que o capitalismo impõe. Essa sempre foi a tarefa da esquerda e da teoria crítica: imaginar e agir para além do existente. 

  1. Você está morando na Alemanha. Como você enxerga a AfD hoje? 

Seria preciso comentar a relação da AfD com a história política da Alemanha, que é complexa e problemática, mas para ser rápida, vou ficar no tema da propaganda e comentar um pouco como acho que a AfD tem atuado em sua propaganda e por que ela tem sido tão eficaz. 

Acredito que a AfD possui uma perícia incomparável no campo da propaganda neofascista. Seus memes, que invadiram o Instagram, e seus vídeos no TikTok têm uma estética muito característica — a propaganda da AfD é coerente e bem organizada. Ela possui uma identidade visual própria. Uma primeira observação sobre a AfD: A AfD parece falar a língua dos jovens e conseguiu tornar o neonazismo algo cool. Não se apresenta como um partido, mas como uma “alternativa”. Ao eliminar a palavra “partido” de seu nome, mostra-se como um movimento independente, com forte apelo entre a juventude. Um clássico do fascismo histórico. Sua campanha foi amplamente conduzida pelas redes sociais. O símbolo do partido se assemelha ao da Nike e simboliza o movimento (para a direita). 

A propaganda da AfD tem, evidentemente, suas particularidades locais. É, por assim dizer, mais “social” que a extrema direita brasileira, apesar de defender direitos sociais apenas para os alemães, e não para os imigrantes. Vale dizer que, no Brasil, a direita não defende nenhum direito social e apresenta um discurso neoliberal muito mais explícito.

Também é importante comentar a questão da guerra: aqui, a AfD adotou uma posição contrária à guerra na Ucrânia, responsabilizando os chamados partidos da ordem por seu estopim. Outro ponto muito significativo é a questão climática, que ocupa um lugar central no debate público na Alemanha. Um exemplo de como essa propaganda atua em relação ao tema climático, que é um tema muito importante aqui: ela ativa uma série de ansiedades econômicas, associando a transição energética à desindustrialização e ao enfraquecimento da economia alemã. Em resposta a uma tentativa do governo de limitar a poluição proveniente das atividades agrícolas, o agronegócio se organizou e invadiu Berlim com seus tratores. Neles, podia-se ver hasteada uma bandeira com o lema: Farmers for Future [Agricultores pelo Futuro], uma referência distorcida ao movimento Fridays for Future [Sextas-feiras pelo Futuro], um dos maiores movimentos sociais na Alemanha e na Europa hoje (cuja figura mais representativa é Greta Thunberg). Assim como no Brasil, a propaganda vinculada ao agronegócio tenta ressignificá-lo: em vez de apresentá-lo como um empreendimento capitalista ultraliberal e nocivo à natureza, ele é retratado como um setor da economia que preserva as tradições rurais, alimenta a população e cumpre assim até mesmo uma função social. Com isso, a AfD ganha força também nas zonas rurais e reativa o velho ódio nazista às grandes cidades e ao seu cosmopolitismo (vale lembrar, por exemplo, o desprezo de Hitler por Berlim). 

Esse tipo de propaganda, em última instância, também é capaz de ampliar a noção do econômico e fazer com que as pessoas o experienciem na vida cotidiana. 

Outro exemplo: há um vídeo em que se enumeram várias razões para não votar na AfD — “se você deseja a guerra, não vote na AfD; se você acredita que homens podem engravidar, não vote na AfD” —, e que termina com uma afirmação absurda: “se você gosta de comer insetos, não vote na AfD”. A afirmação, completamente disparatada, associa a questão climática ao fim do prazer de comer, em uma sociedade em que esse prazer está associado ao consumo de carne (não por acaso, o veganismo é também um dos alvos favoritos da direita). Trata-se de uma tática já utilizada no Brasil por Carlos Bolsonaro. Nota-se que eles estão organizados e compartilham numerosos materiais de propaganda. A ideia é levar ao extremo os cenários de sacrifício exigidos pela crise climática e, com isso, fazer com que as pessoas, por medo de perder seu modo de vida, nem sequer reconheçam o problema. É uma espécie de mobilização reacionária do surrealismo, de tão inverossímeis que são os exemplos. 

A Alemanha, embora tenha reduzido suas emissões de CO₂ (em 2024 registrou o nível mais baixo em 70 anos), consumiu em apenas quatro meses de 2024 o que, em termos sustentáveis, deveria ter sido consumido em um ano inteiro. Ao contrário do governo, a AfD não exige sacrifícios de seus eleitores e, além disso, promete recompensas imediatas. Uma política de esquerda deve estar consciente desse problema ao formular um programa que tenha no centro a própria sobrevivência, por mais justa e verdadeira que seja a ameaça climática.

Para terminar, já que estamos discutindo também alternativas, aqui, creio que seria necessário discutir como a esquerda precisa ser novamente o movimento que oferece, para usar uma expressão baudelairiana, uma promessa de felicidade — real, tangível, possível. Enquanto não formos capazes de fazer isso, o futuro será deles.

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