Para dar corpo (e rostos) à luta decolonial

Compreender o processo de colonização, que vai além da espoliação dos territórios, é passo essencial para combatê-la. A modernidade eurocêntrica é seu pilar. E seus tentáculos estão imbricados no Poder, no Ser e no Saber. E há quem diga que resistir a isso é “identitarismo”

Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
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Para o pensamento decolonial, a modernidade, o capitalismo e o território que hoje denominamos de América Latina têm como marco histórico a expansão econômica e religiosa da Europa iniciada em 1492, mas é no século XVII que o projeto civilizador moderno, de forma mais consistente, fornecerá a cosmovisão que passará a fundamentar a lógica de funcionamento do seu modelo econômico, o sistema capitalista mundial: o dualismo cartesiano. Este é que vai passar a orientar a produção metodológica de conhecimento científico e de produção e reprodução da tecnologia moderna. A lógica do dualismo cartesiano, parte da perspectiva de que o ser humano encontra-se apartado da natureza, que ambos se encontram em polos opostos. Trata-se de um dualismo ontológico que separa forma de vida humana de outras formas de vida (fauna e flora). Estas são entendidas como objetos a serem apropriados pelo homem.

Na cosmovisão da modernidade, o dualismo cartesiano é resultado do processo de secularização da visão de mundo da cristandade em que se compreendia a natureza, com suas forças indomáveis, como possuídas pela força do demônio e os seres humanos como parte do séquito divino dos imperadores e monarcas (poder temporal). Para cristandade, quem não era incorporado como pertencente ao séquito divino dos imperadores e monarcas era considerado como ser pecador, um herege cuja alma havia sido capturada pelo demônio. Acreditava-se que as mulheres estavam mais próximas do reino da natureza do que do reino humano, elas eram mais suscetíveis de cair nas tentações do demônio, como Eva, crença alimentada pelo patriarcalismo (de gênero e sexualidade) da cristandade.

A cristandade produziu um dualismo teológico antagônico entre as forças divinas e as forças do demônio. Assim, quando intelectuais e cientistas tentaram trabalhar e compreender as forças da natureza foram condenados como hereges, como seres possuídos pelo demônio e queimados vivos na fogueira. Tais fenômenos foram produzidos como parte do obscurantismo da Idade Média na Europa, que passou a perder força a partir do século XVIII. Fora da Europa, as ciências floresciam na China, no mundo islâmico, na Índia, na África e no Mundo Novo, por que não havia uma visão dualista em suas cosmovisões, eram civilizações holísticas, nas quais a vida era compreendida como um sistema de interações entre todas as formas de existência. Nas cosmovisões holísticas a destruição de um ser pelo outro implica no desequilíbrio do sistema.

O processo de secularização do dualismo teológico da cristandade tem início com Francis Bacon (método empirista moderno) e se completa com René Descartes (método racionalismo moderno). Ao ser secularizado, o dualismo teológico da cristandade perde a linguagem religiosa, mas mantém a sua cosmovisão: a separação ontológica entre seres naturais e seres humanos. Com a secularização a modernidade se afirma que não existe demônio na natureza, mas que a natureza é selvagem e como selvagem deve ser domada pelo homem e submetida aos interesses de suas necessidades, do progresso e do acúmulo de riquezas. O corolário desta visão é que a natureza (fauna, flora, rios, mares, montanhas, terra, minérios) viva deveria ser transformada em natureza morta (mercadoria e capital) num processo constante e infinito.

A ideia de conhecimento objetivo, o pressuposto de que um conhecimento produzido a partir do rigor metodológico é verdadeiro e portador de valor universal, é um pressuposto das epistemologias modernas. A ideia de que a ciência e a tecnologia são axiologicamente neutras, são apenas meios, logo, a definição de seu uso para o bem ou para o mal é definida por quem as usam é outro mito moderno. Observando a história do desenvolvimento tecnológico na modernidade podemos identificar que a pesquisa tecnológica mais avançada, a que hoje chamamos de ponta, sempre foi orientada para produção de instrumentos de guerra (espadas, armaduras, espingardas, revólveres, canhões, tanques de guerra, navios, avião, bomba atômica, foguetes, armas químicas, internet, GPS, etc.), que tem como sua finalidade primeira a destruição da vida humana e não humana.

O sistema econômico da modernidade, o modo de produção capitalista, tem um dos seus focos de produção de mercadorias – principalmente máquinas e equipamentos eletrônicos e eletrodomésticos – que são fabricadas a partir de estudos e pesquisas voltadas para tornar o seu ciclo de vida muito curto. A depreciação das mercadorias é calculada para torná-las descartáveis, o que implica numa necessidade constante de mais matéria-prima (natureza morta), alimentando uma cultura de consumismo desenfreado e uma produção gigantesca de lixo comum e eletrônico. Tal fenômeno é uma negação da ideia de desenvolvimento sustentável. Outro fenômeno que podemos identificar é a falácia da chamada transição energética, na qual podemos constatar com dados quantitativos que a expansão da exploração de novas formas de energias é somada às antigas, sem que ocorra a substituição de uma por outra.

O sistema econômico da modernidade opera a partir dos fundamentos da cosmologia do Iluminismo moderno, logo não existe tecnologia sem cosmologia. Se observarmos de forma atenta as propagandas de carros 4X4, das empresas transnacionais, disponibilizadas em nossos aparelhos de televisão, podemos identificar que as máquinas sempre aparecem fazendo manobras danosas e predatórias na natureza, são máquinas manobradas por homens em ações que passam a ideia de que estão domando a natureza selvagem, numa ostentação de força e potência fálica contrária aos apelos de proteção ambiental. São propagandas voltadas para um pequeno público que tem um poder aquisitivo que falta a maioria da população empobrecida pelos mecanismos de dominação e exploração do trabalho dentro da lógica do capital.

Há algum tempo, a cosmovisão moderna vem orientando estudos e pesquisas em tecnologias para tornar o seu modo de produção independente, o máximo possível da força de trabalho, ou seja, que o trabalho humano possa ser descartado do processo produtivo. Esse fenômeno é uma prova evidente de que o projeto civilizador moderno é um projeto de morte e não um projeto emancipador voltado para a vida. O destino reservado aos homens e mulheres desnecessários como força de trabalho vai ser a exclusão, a privação e a morte. Não é por acaso que foi na modernidade que aconteceram os maiores genocídios da história do planeta, o maior volume de guerras com o maior potencial destrutivo, o fascismo, o nazismo, o stalinismo, as ditaduras. Não é por acaso que hoje, diante da crise do projeto civilizador moderno e do seu sistema econômico, estamos vivendo o avanço da extrema direita fascista, portadora de uma ideologia de morte que vem encontrando, de forma contraditória, eco nas mentes eurocentradas de jovens, negros, comunidade LGBTQIAPN+, mulheres e homens de todas as classes sociais.

A partir da terceira revolução industrial, principalmente agora, quando temos em curso a quarta revolução industrial, uma assombrosa profusão de novidades tecnológicas envolvendo a inteligência artificial (AI), a robótica, veículos autônomos, impressão em 3D, inteligência artificial, internet das coisas (IoT), nanotecnologia, biotecnologia, ciências dos materiais, armazenamento de energia e computação quântica, numa fundição de conhecimentos científicos e tecnológicos dos mundos físico, biológico e digital, o projeto civilizador moderno não só pretende descartar a maior parte dos seres humanos do processo produtivo, como pretende fazer a transição da natureza orgânica – por ele depredada, transformada em coisa e mercadoria, esgotada – para uma outra natureza: inorgânica, transgênica e artificial.

Ampliando o foco do raciocínio dos economistas, afirmamos que não vivemos apenas numa sociedade sob a crise do capitalismo, mas numa crise civilizacional cuja cosmovisão orienta o modo de produção capitalista. Dessa premissa podemos auferir que centrar toda nossa potência e vontade transformadora apenas no sistema econômico e suas crises, esquecendo a civilização moderna, limitamos em muito nossa capacidade de transformação do mundo, pois ficamos presos a pequenas reformas no campo da política e da economia num ciclo de fluxo e refluxos conjunturais e não enfrentamos o lado obscuro da modernidade, a colonialidade, que alimenta uma crise bem mais ampla e que não se resolve apenas por meio de uma alternativa econômica. Aliás, a cosmovisão moderna impõe a ideia de que o neoliberalismo é a única e nova razão econômica do mundo e que chegamos ao fim da história, o fim do sujeito politico e o fim das utopias.

Na modernidade ocidental, a colonialidade, como parte constituinte se seu ser, é constituída de três componentes imbricados em si: a Colonialidade do Poder, a Colonialidade do Ser e a Colonialidade do Saber. O Estado-nação moderno, como administração do sistema de dominação, de gestão do ordenamento jurídico, do comando da violência denominada de legítima e dos interesses do mercado, é o espaço da efetivação e reprodução da Colonialidade do Poder. No sistema mundo moderno/colonial cada época um Estado-nação assume a função de poder imperial. No século XVI o posto foi assumido pela Espanha que perdeu o lugar para Inglaterra. No pós-guerra a Inglaterra perdeu o posto para os Estados Unidos, hoje alguns afirmam que a posição imperial estadunidense vem sendo ameaçada pela China.

A colonialidade do ser diz respeito ao ethos cultural, ou seja, a maneira de ser e de estar no mundo. A colonialidade do ser é a universalização do ethos cultural do homem branco, europeu-norteamericano, cristão, patriarcal, heteronormativo, racista, capitalista, imperialista e epistemicída. É por meio da colonialidade do ser que o modo de vida da civilização moderna eurocêntrica torna-se o modelo de vida de povos colonizados e eurocentrados, ou seja, torna-se possível que os desejos e a visão de mundo dos colonizados e dominados sejam iguais a dos seus opressores. Assim, tanto governos de direita como de esquerda dos países que foram colonizados e ainda se mantêm na condição de países periféricos do Sul global e sob uma dinâmica de dependência do Norte Global têm como modelo de desenvolvimento países imperiais que compõem o G7, modelo que só se mantém pelo controle e dependência dos países periféricos.

No Brasil, nos dois primeiros mandatos do governo do PT, Lula de forma entusiástica afirmava que o Brasil estava saindo da condição de país emergente para se tornar um país de primeiro mundo e reivindicava um assento no Conselho de Segurança da ONU, ou seja, queria tornar o Brasil um país imperial ao lado do G7, chegou mesmo a propor e contribuir para organização do G20. Na cabeça de nossas lideranças de esquerda eurocentradas é isso que significa deixar de ser vira-lata para pensar grande. Pensar grande é deixar de ser dominado, explorado e subalternizado, para ser dominador, explorador e subalternizador.

A colonialidade do ser está em nós, nos nossos desejos e no nosso comportamento, pelo qual reproduzimos as hierarquias de dominação do processo de civilizador moderno. No livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, Kehinde, a protagonista da obra, que nasceu em Savalu, reino de Daomé, na África, foi raptada e escravizada, violentada pelo seu senhor, escrava de ganho e viveu no Brasil, mas que ao conseguir sua liberdade, montou vários negócios, virou empresária e passou a ter escravos lhe servindo.

A colonialidade do saber é o mecanismo por meio do qual o projeto civilizador moderno coloniza nosso imaginário, modelando nossa subjetividade e nossas relações intersubjetivas, definindo nossa forma de pensar, de produzir e reproduzir conhecimento. É a colonialidade do saber que desqualifica, inferioriza e trata como senso comum, saber prático e sem valor os saberes e epistemologias das civilizações não modernas e dos povos colonizados, também trata de forma preconceituosa a cultura dos povos colonizados, classificando-a como manifestação folclórica, ou seja, algo de valor inferior à cultura. É por meio da colonialidade do saber que os saberes, as epistemologias, as filosofias, a produção científica e tecnológica dos povos colonizados e de outras civilizações são invisibilizados e desvalorizados e muitas vezes apropriados e divulgados como seus.

É por meio da colonialidade do saber que o conteúdo dos ensinos em nossas escolas e universidades é eurocentrado, ou seja, é focado em estudos, conhecimentos, pesquisas e autores europeus e norte-americanos que produzem conhecimentos a partir da sua realidade e não da realidade de nossos países. A colonialidade do saber é promotora do epistemicídio. Daí porque a necessidade de decolonizar nossas escolas e universidades valorizando as Epistemologias do Sul e criando uma ecologia de saberes para romper com o império cognitivo eurocêntrico, como diz Walter Mignolo, é preciso que ponhamos em prática uma desobediência epistêmica a partir de um pensamento outro.

Ao falarmos de pensamento decolonial e agir decolonial, estamos nos referindo não ao processo de colonização territorial, mas à colonialidade como parte constituinte da Modernidade. Decolonial refere-se ao processo de descolonialidade do poder, do ser e do saber. Assim, ao falarmos de descolonialidade precisamos saber do que estamos falando com certa precisão. Quando falamos que decolonizar é preciso, estamos nos referindo à descolonialidade das hierarquias de dominação, exploração, violência, racialização e subalternização. O pensamento decolonial não é um pensamento identitário, mas um pensamento antirracista, antipatriarcal, anticapitalista, anti-imperialista, transmoderno e pluriversal.

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