Trump e a sombra do Capitalismo de Finitude
Para historiador francês, presidente escancara tendência recorrente do sistema: diante das crises, exacerbar espoliação colonial, rentismo e outras formas de rapina. Quando o bolo pára de crescer, diz ele, as elites partem para a predação
Publicado 20/03/2025 às 20:20 - Atualizado 21/03/2025 às 12:30

Arnaud Orain, entrevistado por Fabien Escalona e Romaric Godin, no Mediapart

Arnaud Orain publicou Le Monde confisqué – Essai sur le capitalismo de la finitude [“O Mundo Confiscado – Ensaio sobre o capitalismo da finitude”. Neste livro, o historiador decifra a racionalidade das estratégias violentas e rentistas empregadas pelas elites econômicas e políticas, que conspiram voluntariamente para se apropriar de “um bolo que não pode crescer”. É um livro que dá sentido à brutalidade de Trump, às ofensivas dos gigantes digitais e à captura de terras cultiváveis em todo o planeta.
Orain sustenta que nossas sociedades estão vivendo um “capitalismo da finitude”, cujos avatares já existiam em séculos anteriores. Abertamente “predatório, violento e rentista”, ele lança a promessa de prosperidade universal, que seria possível graças ao mercado e regulada pela lei. “O neoliberalismo acabou”, afirma o autor, diferenciando-se, nesse ponto, de outros pensadores da época, como Quinn Slobodian e seu Capitalismo do apocalipse.
Na entrevista a seguir, concedida ao site francês Mediapart, Arnaud Orain desenvolve os principais argumentos de sua tese e explica sua periodização alternativa da trajetória do capitalismo. Ele enfatiza a linha tênue entre o risco de subjugação, diante da nova onda imperialista do século XXI, e o risco de mergulhar em uma corrida antidemocrática, desigual e ecocida.
Para dar conta das turbulências do nosso tempo (ameaças de guerra, recuo democrático, protecionismo, etc.), você propõe a noção de um “capitalismo da finitude”. Quais suas principais características?

A ideia era sair da dicotomia habitual entre períodos de triunfo do liberalismo e períodos de forte intervenção do Estado. Eu prefiro identificar dois tipos de capitalismo. Há um capitalismo que é compatível com o liberalismo. Ele se baseia na competição, na redução ou até mesmo ausência de tarifas alfandegárias, na liberdade dos mares e em uma utopia de riqueza crescente tanto no nível individual quanto no coletivo, em uma dinâmica que beneficiaria todo o mundo. É a época que muitos de nós – aqueles que estamos na faixa entre os 30 e 70 anos de idade — vivemos.
E depois há o capitalismo, às vezes chamado de capitalismo “mercantilista”, que eu chamo de capitalismo “de finitude”. Refere-se a um mundo em que as elites acreditam que o bolo não pode mais crescer. A partir daí, a única maneira de preservar ou melhorar sua posição, na ausência de um sistema alternativo, passa a ser a predação. Esta é a era em que acredito que estamos entrando.
Você escreve que o capitalismo já passou por fases desse tipo em séculos anteriores. De quais períodos se trata?
A trajetória do capitalismo pode ser descrita da seguinte maneira. Do século XVI ao XVIII, houve uma fase em que se criaram potências imperiais que promoveram grandes empresas com monopólios, comércio exclusivo com suas colônias e guerras de caráter estritamente econômico. Foi o primeiro período de um capitalismo da finitude. Seguiu-se uma fase de liberalização, após as guerras napoleônicas, vencidas pelos britânicos.
Alguns acreditam que essa Pax Britannica continuou até 1914, mas ignoram a segunda grande onda de colonização que começou na década de 1880. Nela, retornaram as tarifas alfandegárias, os silos imperiais, os cartéis e a conquista territorial em busca de “recursos”, tendências que se intensificaram nos anos 1930, como consequência da Grande Depressão, e culminaram na Segunda Guerra Mundial.
Em 1945, começou uma nova fase liberal. Ela se sustentou em uma promessa de abundância sem precedentes, inicialmente para o mundo ocidental e depois estendida a todo o mundo a partir da década de 1990. Da mesma forma que é “ocidentalocêntrico” pensar na ruptura com o passado em 1914, também o é acreditar que a era neoliberal mudou tudo. O verdadeiro momento em que a promessa se rompeu, principalmente diante dos limites ecológicos do planeta, foi na década de 2010.
A referência obsessiva de Trump à Idade Dourada (Gilded Age, 1870-90) americana deve ser levada a sério. Foi a época dos monopólios, da denegação da competição, das grandes desigualdades sociais, mas também do grande retorno da colonização, que os próprios Estados Unidos praticaram em Porto Rico e no Havaí.
Segundo você, a “broligarquia” tecnológica que foi alvo de atenção durante a posse de Trump é uma ilustração perfeita desse capitalismo da finitude. Parece que eles são a versão do século XXI de algumas das companhias de navegação que organizaram a contraeconomia há séculos…
De fato, existe um paralelismo entre essas diferentes encarnações de “empresas-estado”. Durante muito tempo, contou-se uma história romântica sobre as companhias das Índias Orientais. A VOC holandesa, por exemplo, tinha dezenas de milhares de escravos e praticava uma violência beirando o genocídio, como nas ilhas Banda. Na Índia, os britânicos não compravam muita coisa no final do século XVIII: saqueavam e cobravam impostos da população.
Essas companhias tinham seus próprios direitos, fortalezas e exércitos, o que podia até provocar atritos com os Estados de onde vinham. O importante é lembrar que elas monopolizavam zonas para gerar renda a partir de uma lógica rentista, em vez de gerar lucros a partir da livre concorrência. No final do século XIX, empresas desse tipo ressurgiram durante o renascimento da colonização, principalmente na África.
Hoje, os gigantes digitais estão, por sua vez, combinando o poder do mercado com o poder soberano. Eles são capazes de mobilizar o espaço público por meio das redes sociais, fornecer conexões à internet para áreas inteiras, interferir na esfera militar com satélites e tentar extrair dinheiro aproveitando-se de uma posição monopolística sobre os dados.
No entanto, há uma diferença de uma época para outra. As empresas dos séculos XVII e XVIII desempenhavam um papel importante na política de seus respectivos Estados, mas não se tratava de se impor dentro da metrópole. Agora, os gigantes tecnológicos se apropriam de prerrogativas soberanas dentro de seus próprios Estados. Como no passado, porém, pode haver desentendimentos entre essas empresas: Elon Musk e Peter Thiel, por exemplo, não compartilham a mesma opinião sobre a desvinculação econômica da China.
Sua tese também permite compreender melhor o significado histórico de outro fenômeno que tem sido notícia: a interrupção da liberdade de navegação no Mar Vermelho pelos Houthis do Iêmen, no contexto da guerra no Oriente Médio. Você insiste no fato de que o capitalismo da finitude é, antes de tudo, o fechamento dos mares.
Há cerca de dez anos, os oceanos voltaram a ser um tema importante nas relações internacionais. No capitalismo da finitude, comercializamos com nossos amigos, nossos vassalos, nossas colônias, em um regime em que estamos protegidos por nosso poder imperial, porque não há mais uma potência hegemônica que garanta a liberdade dos mares para todos.
Embora ainda não tenhamos chegado a esse ponto, há fortes indícios de que isso está acontecendo. É significativo que os Houthis não estejam atacando os navios chineses e russos, enquanto as empresas ocidentais agora precisam contornar a África. Nesse contexto, assistimos a um enfraquecimento da marinha americana e, por outro lado, a um enorme aumento do poder da marinha chinesa, tanto mercante quanto militar. Para garantir a liberdade dos mares, não pode haver duas potências hegemônicas. Só funciona com uma.
Está claro que o movimento MAGA em torno de Trump não quer mais pagar pela segurança mundial. É preciso dizer que os Estados Unidos não estão longe de ter energia suficiente entre gás, petróleo e painéis solares domésticos, e que estão bem abastecidos de matérias-primas na América do Sul. O desejo de anexar a Groenlândia responde ao objetivo de acessar certos recursos minerais para completar o arsenal.
Anuncia-se um novo mundo, com rotas marítimas seguras para alguns, mas não para outros. Para as potências europeias, acostumadas por oitenta anos à liberdade dos mares garantida por seu principal aliado, a ruptura é considerável.
É compreensível que o capitalismo de finitude não se dê bem com os princípios democráticos. Mas não seria a relação mais complexa? Afinal, vimos a qualidade dos regimes democráticos se deteriorar sob a era neoliberal, assim como vimos avanços democráticos no final do século XIX.
Não há um vínculo necessário entre capitalismo e autoritarismo, assim como não há entre liberalismo econômico e democracia. O fato é que o capitalismo da finitude evidentemente não precisa da democracia, e que ela representa até mesmo um obstáculo.
No capitalismo da finitude, no entanto, as aspirações populares podem ser captadas argumentando o caráter protetor das medidas de fechamento. Isso é o que Trump está fazendo. Destacar o progresso tecnológico e as novas fronteiras que imaginamos se estenderão ao espaço também é uma forma de ampliar sua base eleitoral.
Isso é o que a extrema direita europeia não entendeu. Quando você não tem empresas estatais em setores estratégicos, nem grandes frotas militares, poucos recursos energéticos próprios… o risco, em um mundo “trumpizado”, é principalmente o empobrecimento que leva ao servilismo.
Voltemos à sua periodização de fases liberais e fases marcadas pela consciência da “finitude”. Como você explica essa alternância?
Não abordo diretamente a questão da causalidade dessas alternâncias. Mas vejamos o que Karl Polanyi disse sobre o colapso da fase liberal no século XIX. À medida que a promessa de abundância coletiva e individual se tornava cada vez mais difícil de cumprir, a mais-valia tinha que ser extraída de outra maneira, por meios imperialistas, destruindo as estruturas tradicionais do mundo recém-colonizado. As elites teorizaram sobre isso, e os críticos do imperialismo o denunciaram na época.
Desde o final do século XX e início do XXI, vem ocorrendo um fenômeno relativamente similar. A partir do momento em que os países emergentes e as novas classes médias começam a consumir proteínas animais e combustíveis fósseis segundo os padrões ocidentais, a promessa de abundância colide com as limitações dos recursos. Torna-se difícil crescer sem novos mecanismos de predação, o que não pode ser alcançado em um marco liberal.
No neoliberalismo, o Estado e as instituições internacionais impõem um marco estrito para garantir um ambiente competitivo. Estamos em processo de sair desse marco, porque ele não é suficiente nem para manter o padrão de vida nem para garantir os benefícios das grandes empresas tecnológicas. A saída é um capitalismo menos padronizado, mais brutal, com formas de dominação mais diretas que dispensam o mercado.
Você aponta a finitude dos recursos naturais, mas o problema não é também interno ao próprio sistema de acumulação? Por isso, o neoliberalismo representou uma ruptura com o passado: mudou a base da acumulação, que se tornou mais financeirizada e menos favorável ao mundo do trabalho.
Não estamos em desacordo. Os promotores do neoliberalismo tentaram claramente continuar, por meio de uma lógica competitiva exacerbada, um modo de produção que já se esgotava nos anos setenta. Mas, após a grande recessão de 2008, o crescimento econômico alcançado por meio das exportações mostrou-se um bolo cada vez mais limitado. Nos países do Norte, testemunhamos um empobrecimento relativo das classes médias e trabalhadoras.
França e Estados Unidos foram os primeiros a sentir o impacto da entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), e agora isso chegou à Alemanha. Na prática, os ocidentais estão descobrindo que a teoria que justificava o livre comércio —a especialização baseada na vantagem comparativa— não funciona. O remendo do neoliberalismo já não basta para conter os problemas de uma indústria que está desmoronando. Isso está contribuindo para o aumento das rivalidades geopolíticas dentro do capitalismo mundial.
A fase liberal do capitalismo que começou em 1945, mais ou menos atenuada pelo Estado social, foi também a fase da “grande aceleração” da degradação ecológica do sistema Terra. Você não estaria subestimando o caráter permanente da dimensão predatória da lógica capitalista?
Durante os Trinta Gloriosos e o período neoliberal, houve trocas claramente desiguais em todo o planeta. Mas eram as relações de mercado que predominavam. Tomemos o caso da terra. No mundo liberal, esse ativo é como líquido. Os preços são fixados, e cada Estado compra, no mercado mundial, o que não tem para o consumo de sua população. Esse é o modelo centrado na OMC.
De forma mais geral, chama a atenção o crescimento, tanto no âmbito intelectual quanto no empresarial, da ideia de que o capitalismo é um jogo de soma zero. Escritores críticos como Dylan Riley e Robert Brenner desenvolveram recentemente essa ideia na New Left Review, mas, como historiador, é possível encontrar ecos dela no século XVII, quando os primeiros pensadores do capitalismo explicaram que nem todos podiam participar dos grandes mercados têxteis.
O capitalismo finito do século XXI tem uma qualidade especial em comparação com fases anteriores desse tipo? Poderíamos imaginar um retorno quase tranquilizador, mas o sistema capitalista envelhece.
Temos um novo problema. A finitude do mundo é, sem dúvida, a finitude dos recursos naturais e a saturação do mercado mundial: a finitude da velha escola, por assim dizer. Mas também é o fato de que, para alcançar uma transição energética que evite uma mudança climática desastrosa, precisamos de enormes quantidades de minerais e metais. O planeta é finito em dobro: precisamos de recursos para manter o capitalismo fóssil, mas também para fazer a transição. Não vejo como isso não provocará grandes conflitos.
Para você, o “mundo confiscado” continua sendo um mundo capitalista, onde o problema é o imperativo da acumulação, seja com energias carboníferas ou não. Então, você se opõe a teses como as de Yánis Varoufákis ou Cédric Durand, que falam da emergência de um “tecnofeudalismo” em vez do capitalismo?
Não concordo com esse termo. O feudalismo implica uma relação mais política do que econômica, um poder baseado em hierarquias extraeconômicas, justificadas de forma teológica ou tradicional. Mas continuamos em um sistema em que a relação de dominação se baseia no dinheiro, em benefício dos capitalistas.
Só que alguns desses capitalistas também querem ser soberanos, com um chapéu de comerciante e outro de (para-)Estado. Essa é a mudança que está ocorrendo: continua funcionando uma lógica capitalista, mas ela vem acompanhada da confisco da terra, do mar, do ar e até do ciberespaço e do espaço público, o que pode ser descrito como o confisco da soberania.
Você defende uma economia ecológica, que é uma versão radical da “ecologia de guerra” defendida por Pierre Charbonnier: basicamente, preservar a autonomia por meio da sobriedade, em vez de entrar no jogo dos impérios. Mas isso é possível diante de sua
Minha esperança é ver surgir uma política de transição energética muito ambiciosa, com uma redução drástica do consumo de energia, porque isso implicará necessariamente recursos minerais e metálicos.
É uma linha muito tênue: uma transição forte que permita não seguir demais uma política de imperialismo e vassalagem, e que, ao mesmo tempo, garanta a autonomia diante dos impérios predadores. Mas isso implica uma reorganização tão radical de nossa organização social que não sei se é possível.
Isso levanta a questão de um governo baseado nas necessidades, em vez de uma corrida precipitada para a acumulação. Precisamos realmente de milhões de veículos elétricos individuais? Não precisamos mudar nosso estilo de vida para escapar da corrida imperial?