Para estourar as vitrines da passividade
Em novo livro, Jonathan Crary explora o nexo entre capitalismo tardio, redes e dissolução dos laços sociais. O sistema, diz, quer apatia narcisista e desperdício da vida. Mas a emancipação pode surgir da revolta contra a existência apequenada
Publicado 11/02/2025 às 19:34 - Atualizado 11/02/2025 às 19:45
Por Ahmad Bilal, no The News Sunday | Tradução: Antonio Martins
![](https://outraspalavras.net/wp-content/uploads/2025/02/240211-Scorched-Earthb.jpg)
De Jonathan Crary
Verso Books, 144 págs.
Em seu livro mais recente — Scorched Earth: Beyond the Digital Age to a Post-Capitalist World — , o crítico cultural Jonathan Crary critica o capitalismo tardio e sua relação simbótica com as redes digitais, expondo como o capitalismo 24/7 coloniza todas as facetas da vida humana. Crary desmonta o otimismo vinculado às tecnologias digitais e destaca seus impactos ambientais e sociais catastróficos. Para ele, o único futuro “habitável” está offline, no desprendimento coletivo dos ciclos intermináveis de extração capitalista.
Crary começa com a visão apocalíptica de Jean-Luc Godard: um mundo escuro, amnésico e fragmentado. Isso define o tom para seu chamado urgente ao abandono do “complexo da internet” digital, que promove “vício, solidão, crueldade, psicose e desperdício de vida”. Ele argumenta que a dependência do capitalismo 24/7 em relação à infraestrutura digital perpetua um sistema de consumo interminável, que impede qualquer possibilidade de recuperação da natureza. Para Crary, até mesmo iniciativas como o Green New Deal são insuficientes porque não abordam a causa raiz: o apetite insaciável do capitalismo por recursos.
Alinhando-se às tradições do panfletarismo sociail, Crary critica a normalização da internet na vida cotidiana. Baseando-se em Alain Badiou, enfatiza a necessidade de uma política emancipatória para imaginar um futuro desvinculado do capitalismo digital. Os defensores mais loquazes do status quo, ele afirma, são aqueles que se beneficiam do funcionamento ininterrupto do capitalismo, que prospera com a alienação e o isolamento.
Crary examina como o “complexo da internet” erodiu a memória coletiva, gerou desintegração social e fomentou a apatia. Ao se tornarem “administradores autônomos” de suas vidas, os indivíduos internalizaram uma “apatia narcisista” que os desconecta de laços comunitários significativos. Essa transformação, ele argumenta, não é meramente tecnológica, mas sistêmica, pois as redes digitais facilitam a dominação do capitalismo sobre todas as esferas da existência.
Crary connects digital expansion to environmental crises, arguing that the internet’s global integration has necessitated destructive resource extraction. For example, powering digital infrastructure for eight billion people requires unprecedented energy and materials, exacerbating ecological collapse. By citing David Graeber, Crary highlights capitalism’s fundamental contradiction: infinite growth in a world with finite resources. As India and China embrace full participation in this system, Crary predicts capitalism will hit its limits within decades.
Crary conecta a expansão digital às crises ambientais, argumentando que a integração global da internet exigiu uma extração destrutiva de recursos. Por exemplo, alimentar a infraestrutura digital para oito bilhões de pessoas requer uma quantidade sem precedentes de energia e materiais, o que agrava o colapso ecológico. Citando David Graeber, Crary destaca a contradição fundamental do capitalismo: crescimento infinito em um mundo com recursos finitos. Em caso de adesão plena da Índia e da China a esse sistema, Crary prevê que o capitalismo atingirá seus limites dentro de algumas décadas.
Ele critica as tecnologias digitais como emblemáticas da fase terminal do capitalismo, onde os interesses lucrativos suprimem qualquer propósito humano. Referindo-se ao teórico Luis Suarez-Villa, descreve o “tecno-capitalismo” como uma força que coloniza todos os aspectos da existência humana e da própria natureza. Crary alerta que esses avanços intensificarão a desigualdade, acelerarão a degradação ambiental e alimentarão novas formas de armamentismo.
Crary também critica as soluções míopes da Big Tech para os problemas humanos. Ele destaca o projeto Calico do Google, que apresenta o envelhecimento como uma “insegurança” para impulsionar mercados anti-envelhecimento voltados para os mais ricos, ignorando ainda mais as desigualdades sistêmicas. Ele contrapõe essa obsessão com a longevidade consumista às duras realidades da pobreza, das “mortes por desespero” e do colapso ambiental no Sul Global. O envelhecimento torna-se um problema “de estilo de vida” para a elite, em vez de uma condição universal.
Os espaços urbanos, argumenta Crary, são os epicentros dos ciclos consumistas que alienam os indivíduos das paisagens naturais e das experiências coletivas. As cidades estão saturadas de intervenções digitais que fragmentam a atenção e isolam os indivíduos em realidades mediadas por telas. Esse estilo de vida elimina a possibilidade de conexões genuínas, espontaneidade ou interações imprevistas. Citando Eugene Minkowski, Crary caracteriza esse estado como uma “perda do contato vital com a realidade”, onde os indivíduos ficam presos em uma solidão atomizada.
O “complexo da internet”, ele argumenta, remodelou as emoções humanas e os comportamentos sociais para se alinharem aos imperativos econômicos. O capitalismo de vigilância, exemplificado por escaneamentos de retina e rastreamento biométrico, não é apenas invasivo – ele normaliza a desumanização ao reduzir os indivíduos a meros pontos de dados. Esses sistemas reforçam uma existência fragmentada e mercantilizada, que prioriza o lucro em detrimento do bem-estar coletivo da humanidade.
No capítulo final, Crary critica a erosão da comunidade e da ação coletiva na era digital. Ele lamenta a substituição da interação física pela mediação digital, que enfraquece o amor, a amizade e a compaixão. Citando Herbert Marcuse, ele enfatiza como os sistemas digitais alinham os desejos humanos às estruturas de dominação, perpetuando a passividade e a conformidade.
Baseando-se na crítica do espetáculo de Guy Debord, Crary identifica a mídia digital como uma força que desintegra a comunidade e apaga espaços de resistência. No entanto, apesar do domínio esmagador do complexo da internet, Crary vê esperança no crescimento das críticas ao consumismo digital e à devastação ambiental. Ele argumenta que esses discursos são fundamentais para imaginar um mundo pós-capitalista, onde a solidariedade e a ação coletiva possam combater o domínio destrutivo do capitalismo.
Scorched Earth é uma crítica contundente ao entrelaçamento da era digital com o capitalismo. Crary desafia a crença amplamente difundida no potencial democrático da internet, expondo seus custos ambientais e sociais. Seu trabalho funciona tanto como um alerta quanto como um chamado à ação, instando os leitores a repensarem a relação entre tecnologia, sociedade e meio ambiente. Embora corra o risco de soar tecnofóbico, a análise incisiva do livro oferece insights valiosos sobre a necessidade urgente de mudança sistêmica.
A visão de Crary para um futuro pós-capitalista – no qual o bem-estar coletivo tem prioridade sobre o isolamento digital – é provocativa e oportuna. Apesar de seu tom polêmico, Scorched Earth nos obriga a enfrentar as ameaças existenciais colocadas pelo capitalismo digital e a imaginar um mundo além de seu domínio sufocante.