JBS: Açougue global que alimenta a pobreza
Um novo estudo mostra: maior empresa de alimentos do mundo cresceu às custas de empréstimos públicos a juros baixos. Diz gerar empregos, mas seus frigoríficos atuam onde há crescente bolsões de pobreza, pagando menos de um mínimo aos operários
Publicado 10/04/2024 às 16:58

Por Mariana Costa, em O Joio e o Trigo
Um alinhamento entre interesses públicos e privados fortaleceu a trajetória da JBS rumo ao posto de maior empresa de alimentos do mundo, em processo marcado por concentração de renda e agravamento da fome e da pobreza em cidades onde opera.
A conclusão é do relatório “Alimentando a Desigualdade: os custos ocultos do monopólio industrial da carne”, financiado pelo Tiny Beam Fund e escrito por Raisa Pina, pesquisadora visitante do King’s College London e do Centro Latino-Americano da Universidade de Oxford.
O estudo traça um retrospecto das políticas públicas e decisões governamentais, fundamentais para levar o pequeno açougue em Anápolis (GO) à liderança global no processamento de proteínas animais, apontando para a disparidade entre os resultados obtidos e os ganhos socioeconômicos.
Neste processo, o BNDES, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, teve um papel fundamental, graças a uma política de empréstimos a juros mais baixos que os do mercado. O banco hoje é detentor de 20,8% das ações da JBS, o segundo maior acionista após a própria família Batista, que até hoje exerce o controle da empresa.
Entre 2013 e 2023, a JBS teve um aumento de 303% em sua receita líquida, fez cerca de 40 aquisições de frigoríficos e outras empresas ao redor do mundo e o salário dos administradores subiu 2000%.
Neste mesmo período, em cidades como Lins (SP), onde a JBS opera seu maior frigorífico, os cadastros do Bolsa Família aumentaram 51%. Em Goiânia, esse crescimento foi ainda maior, de 162%. Apenas uma das 12 cidades analisadas não teve novos beneficiários em dez anos.
Nem a JBS, nem o BNDES responderam ao nosso pedido para comentar as conclusões do estudo até o fechamento do texto.
“Existe um paradoxo claro: o Brasil tem a maior empresa de alimentos do mundo e, ao mesmo tempo, vê a fome da população aumentar. Considerando os investimentos públicos e a participação do Estado na governança da empresa, esse paradoxo não pode ser naturalizado”, avalia Raisa, que teve a ideia da pesquisa a partir de uma vivência pessoal.
Assim como a JBS, a pesquisadora nasceu em Anápolis e ouvia relatos dos tempos em que Zé Mineiro (José Batista Mineiro, fundador da JBS) abatia cinco cabeças de gado em uma área que pertencia a sua família. “Em Goiás, é difícil crescer sem que a JBS seja assunto de conversa nos espaços mais diversos”, conta. “Quando a JBS se consolidou como uma campeã nacional, ainda na década de 2010, resultado de uma política do então governo federal, eu comecei a questionar o significado desse título e olhar para minha própria realidade e para a minha comunidade”.
Para chegar a essa conclusão, foram avaliadas três fontes principais de dados: documentos corporativos, registros governamentais e entrevistas. Relatórios anuais, atas de assembleias de acionistas, propostas da administração e mapas de votos serviram de base para mapear financiamentos, lucros, salários e disputas entre acionistas.
Em seguida, foi feito um levantamento dos salários de executivos, administradores e operários, e das solicitações do Bolsa Família ao longo de dez anos em 12 cidades onde a JBS mantém operações.

Empréstimos a juros baixos e portas abertas
Embora a indústria da carne fosse incentivada por meio de políticas públicas desde a década de 1990, foi nos anos 2000 que esse movimento do governo brasileiro ganhou escala. A autora faz um retrospecto da Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), conhecida como a “política das campeãs nacionais”, vigente entre 2007 a 2013, para, então, analisar a década seguinte.
Na época, o objetivo era abrir novos mercados e inserir empresas brasileiras em um cenário global. Para colocar este plano em ação, o BNDES tornou-se um braço financeiro fundamental, apoiando aqueles setores preparados para a concorrência internacional.
Assim, a JBS se beneficiou de empréstimos vantajosos, com taxas de juros em torno de 8,5% ao ano; em contraste, as taxas de outras instituições financeiras variavam normalmente entre 14% e 22%, segundo a autora.
Em 2005, o BNDES forneceu metade do crédito necessário para a JBS adquirir a Swift Argentina, seu primeiro passo rumo à internacionalização dos negócios. Este foi um precedente para apoios futuros, que permitiram inicialmente à empresa diversificar seu alcance geográfico e linha de produtos no Brasil. Essa expansão se estendeu a outros países da América do Sul e da Oceania e aos Estados Unidos.
Este apoio serviu como um sinal de confiança para os investidores globais. Com a ajuda do banco, a JBS não só se expandiu internacionalmente, mas também diversificou seus produtos além da carne bovina in natura.
“Além da carne, outros poucos setores também foram beneficiados, como energia, combustíveis e mineração, mas nenhum teve o êxito que a indústria da carne teve, de ver uma empresa se consolidando como líder global. A análise do estudo foca no período imediatamente após, para analisar as consequências dessa política considerando os impactos sociais”, explica Raisa.
O objetivo de um negócio familiar, um relacionamento permanente entre o Estado e a empresa, investimentos de outros países e interesses de grandes bancos internacionais formaram uma combinação de fatores que possibilitou a expansão da JBS, conclui a autora.
Crise é oportunidade
Em 2008, a crise que abalou os mercados globais e frigoríficos mundo afora já havia sido proveitosa para a empresa, em um movimento típico da dinâmica do capital em que muitos perdem e poucos ganham. Novamente com o apoio do BNDES, a JBS comprou grandes concorrentes nos EUA e a empresa brasileira Bertin.
Nos últimos dez anos, a JBS adquiriu 44 empresas, expandindo presença nos EUA, na Austrália, no Reino Unido e na União Europeia. A pandemia foi a oportunidade para ampliar essas aquisições na Espanha, Holanda e Itália.
O relatório também mostra o papel da diplomacia brasileira nas negociações internacionais, “abrindo portas nos círculos de empresários que antes estavam fechadas para a então relativamente desconhecida família Batista”.
Nos últimos 20 anos, a JBS obteve quase 25 bilhões de dólares de financiamentos a partir de um consórcio de instituições financeiras, incluindo o BNDES, mas também o Banco da China e o Royal Bank of Canada, entre outros.
A empresa tem hoje uma receita anual de R$ 370 bilhões e um faturamento anual que supera o PIB de 20 estados brasileiros.

Nos últimos dois anos, a empresa distribuiu aos acionistas mais de US$ 1 bilhão – metade deste valor foi para a família Batista, que tem mais de 49% das ações. O BNDES fica com 20% e o restante é distribuído entre os acionistas minoritários, de acordo com a porcentagem de ações.
Apesar das polêmicas, como a prisão dos irmãos Wesley e Joesley em um escândalo de corrupção, a presença da família Batista continua forte, com a próxima geração já posicionada em papéis-chave, relata o estudo.
Aproximadamente 70% dos lucros anuais da JBS são destinados a reservas corporativas, para futuras aquisições.
Salários de R$ 2 milhões
A JBS é responsável por 2,7% da geração de empregos formais no país. O relatório, no entanto, mostra o abismo entre a remuneração de executivos e administradores, em comparação ao rendimento médio dos trabalhadores.
Houve um aumento exponencial no salário dos executivos, especialmente após os escândalos de corrupção em 2017 e novamente após a pandemia de Covid-19. Esses reajustes aconteceram mesmo com a oposição da maioria dos acionistas, inclusive do BNDES.
Atualmente, segundo o relatório, cinco executivos ganham salário de R$ 2 milhões, enquanto nove conselheiros têm remuneração mensal de R$ 65 mil.
Enquanto isso, os cerca de 113 mil operários ganham, em média, pouco mais de um salário mínimo: R$ 1,7 mil. Um valor distante do salário mínimo real, medido pelo Departamento de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), atualmente estimado em R$ 6,2 mil.


“O Brasil é líder no setor de alimentos, mas isso não deve gerar orgulho na nação. Teremos orgulho no dia que o país zerar a fome. Enquanto governos e setor privado continuarem investindo neste sistema desigual, estaremos longe de sermos finalmente uma nação campeã”, conclui Raisa.
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