Os cubanos, proprietários de verdade
Publicado 24/11/2011 às 18:08
Muitos cidadãos sentem que respiram com um pouco mais de liberdade e que seu dia será menos árduo: os que têm carro ou casa são agora donos desses bens que, antes, eram seus sem sê-lo
Por Leonardo Padura, Envolverde-IPS
Até os rígidos porta-vozes da administração Obama deram seu veredito aprovatório: o Decreto Lei 288, recém-promulgado pelo governo cubano, que legaliza os atos de compra, venda e cessão de imóveis na ilha, foi catalogado por eles como “passo positivo” dentro do processo de mudanças empreendidas pelo executivo cubano, presidido por Raúl Castro.
Não se trata de o atual governo norte-americano ter melhorado sua capacidade de entendimento com relação às realidades de Cuba. Sua atitude apenas reafirma o óbvio. Porque apenas uma semana antes, quando a Assembleia Geral da ONU voltou a condenar, pelo vigésimo ano consecutivo e novamente de forma quase unânime, a falida política do embargo comercial e financeiro dos Estados Unidos aplicado à ilha por cinco décadas, essa mesma administração se fez de surda à reclamação internacional, sem a menor capacidade de entender o que todo o mundo entendeu: que o embargo não conseguiu obter os efeitos esperados (a queda do sistema cubano) e que sua aplicação, no essencial, afeta mais os 11 milhões de pessoas que diariamente têm de pensar como fazer seu dia em Cuba.
Com total independência desse beneplácito norte-americano, a realidade é que hoje muitos cubanos sentem que respiram com um pouco mais de liberdade e que seu dia será menos árduo: pelo menos os que têm casas, inclusive os eleitos possuidores de carros, são agora mais proprietários (ou verdadeiramente proprietários) desses bens que, por décadas, foram seus mas ao mesmo tempo não eram, em razão do emaranhado de leis que proibiam a livre disposição deles por parte desses proprietários legais.
Se a lei que permite a compra e venda de carros fabricados depois de 1959 (só era possível dispor dos fabricados antes desse ano) gerou expectativas que não foram cumpridas em todos os casos (mantém-se os limites para a venda de carros novos e regulações para os de segunda mão que o Estado possa ofertar), o decreto do dia 2 toca com maior profundidade e espírito de mudança um dos temas mais candentes para o país: o da moradia.
A nova lei abre a possibilidade da livre compra e venda de imóveis entre cidadãos cubanos e, inclusive, residentes estrangeiros, elimina trâmites e regulações oficiais nos intercâmbios de moradia (a chamada permuta) e legaliza e facilita a cessão de propriedades, inclusive no caso de “saída permanente” do país do possuidor (desde 1959 até agora condenadas a confisco estatal). A disposição legal, em si mesma, não resolverá os grandes problemas de déficit habitacional, calculado em mais de meio milhão de casas, embora, sem dúvida, trará um alívio geral para intercâmbios, doações e atos de compra e venda até agora controlados ou simplesmente proibidos.
Entre os ganhos, que traz para os cubanos esta nova lei, está, em primeiríssimo lugar, a conversão dos títulos de propriedade de suas casas em um documento muito mais real do que até agora tem sido. Outras vantagens serão a possível redistribuição mais racional dos espaços, melhoria dos imóveis por parte dos novos proprietários com meios econômicos para seu reparo e manutenção, ganho de uma propriedade por parte de um familiar ou pessoa próxima no caso de uma “saída definitiva” ou morte, a possibilidade de venda de terrenos e terraços onde possam ser construídas novas habitações.
A outra e não menos importante retribuição está na eliminação da interferência oficialmente imposta pelos diversos níveis burocráticos do Instituto da Habitação, que em uma notável quantidade de casos se moviam com os mecanismos da compra e venda de funcionários, especialistas, assessores legais, isto é, com as obscuras regras da corrupção administrativa na qual caiam os encarregados de velar pela lei. Graças a essa conjuntura, milhares de funcionários enriqueceram com a necessidade e a carência, e também milhares foram demitidos e até julgados ao longo destas cinco décadas, enquanto se pode contar também em milhares os trâmites ilegais que, por artes dessa corrupção, alcançaram a aparentemente impossível legalidade.
Algumas leis em sua origem tiveram o desejo e a missão de dividir o patrimônio para benefício de amplas camadas da sociedade, impedir a especulação e a concentração de riquezas, acabaram se convertendo, em uma época diversa, em um freio à liberdade dos indivíduos, em um labirinto de trâmites e regulações violados pela realidade, e em fonte de enriquecimento de uma burocracia desapiedada, dedicada por anos a ganhar com a lei e a necessidade dos cidadãos.
Oxalá a visão realista e de mudança que impulsionou a promulgação desta nova lei chegue logo a outros setores da vida cubana que clamam aos gritos por transformações radicais e profundas.