"Sai, que vou passar por cima. É blindado, é blindado"
Publicado 05/06/2014 às 06:52
Cena paulistana revela: em automóveis de luxo, projetados para o combate, a nobreza exerce seu poder. Fabricante exalta: é carro “para quem está no controle”
Por Flavio Siqueira Júnior, editor do Brasil de Brinquedo
A foto acima foi tirada no exato instante em que o motorista da SUV gritou: “Sai que eu vou passar por cima. É blindado, é blindado!”
Um segundo depois ele fez o prometido.
O trânsito era o mesmo como em todas as manhãs paulistanas e a Mercedes, sem perceber, ou sem se importar, “ralou” o carro parado na faixa ao lado, ao ultrapassá-lo. O trânsito parou novamente e a Mercedes voltou para a faixa em que estava antes. Errou o palpite da faixa mais rápida. Estavam novamente lado a lado. Assim, o motorista “ralado” abriu o vidro para avisar do ocorrido. Foi ignorado ou não foi visto. A Mercedes era bem mais alta que seu carro.
Minutos mais tarde, o trânsito, pregando mais uma de suas peças, fez com que o carro ralado, agora, estivesse logo à frente da Mercedes. Oportunidade para o motorista “ralado” descer do carro para falar com o “ralador”. Chegando próximo à janela, voltamos ao primeiro parágrafo, que conta o final da história.
Desespero de se atrasar para a reunião de planejamento ou medo de ser assaltado e ter que acionar o seguro?
Provavelmente o dono da SUV da Mercedes nem chegou a pensar nesses graves problemas que assolam a humanidade. Apenas fez o que deveria ser feito. Afinal, para que, depois de gastar tanto dinheiro com um carro desses, sofrer para achar uma vaga para o seu tamanho?
Mike Davis, explica isso muito bem em seu texto publicado no livro Cidades Rebeldes, quando diz que os “utilitários dão compensações mágicas de poder e conforto, mesmo que temporárias”. Na triste democracia dos engarrafamentos, eles parecem sinalizar noblesse oblige, que em bom português quer dizer: a nobreza manda.
Esses carros são comprados como moradias temporárias de luxo, concebidas para suportar o inferno do deslocamento e os “perigos” da cidade. O problema está sempre do lado de fora. O mundo está errado, menos os faróis bi-xenon com sistema de luzes inteligentes de 5 funções.
E se esse carro de combate não funcionar, o Código de Defesa do Consumidor poderá ser invocado, por descumprimento de oferta:
“A nova Classe M reforça sua característica mais que marcante: a sensação de estar sempre no controle. Com uma identidade imponente, é um automóvel para ver e ser visto.” (do site da Mercedes-Benz).
Nome da nova classe combina muito bem com os seus membros: CLASSE M, ou seja, CLASSE MERDA, pois quem dá mais valor a um automóvel do que a um ser humano é um tremendo MERDA.
Parabéns pelo texto!
Infelizmente essa é a realidade que temos em nossas ruas hoje.
Não é possível generalizar, mas o público desses automóveis possui mesmo uma característica bem peculiar e as propagandas desses veículos expressam de forma direta essa falsa impressão de superioridade.
O mais interessante é que eles são os que mais reclamam e ficam nervosos no trânsito sem perceberem que são os maiores causadores desse inferno!
Deem uma olhada neste diaria oficial de campinas e vejam a quantidade de multas do fofo…
http://www.campinas.sp.gov.br/uploads/pdf/697738443.pdf
Procurem pela placa
O texto, embora interessante, traz uma impropriedade conceitual. “Noblesse oblige” não pode ser traduzida dessa forma “ao pé da letra”. Em seu sentido original é justamente o contrário. É a nobreza de caráter que “obriga” o nobre, moralmente a ter conduta irrepreensível. Agir com ética , um dever moral que o “obriga” a portar-se como tal, ou seja com nobreza em princípios e ética. O cidadão da SUV agiu de forma antípoda a esses “ideais éticos” identificado como “nobres”. Agiu como um troglodita prepotente e portanto sem “nobreza” alguma. Há até a componente “humildade” e “discrição” nessa conduta … No mais a atitude prepotente é a do burguês , novo rico e como se dizia antigamente “sem berço” .
Quod licet Jovi non licet bovi…
Noblesse oblige é um conceito ambíguo, tanto diz que o detentor do título tem privilégios, quanto obrigações.
Aliás, penso que as obrigações seriam maiores. O nobre deve se comportar como tal.
Foi por a nobreza ter perdido o senso de suas obrigações que o “ancien régime” sucumbiu.