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“Seria inútil interrogar as câmeras, pois não registraram nada. Por qual beco Amarildo desceu? Encontrou alguém no caminho? Estava pálido?”

130815-Rocinha3

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Crônica de Priscila Figueiredo

 Diziam que Amarildo podia carregar dois sacos de cimento nas costas. Diziam, não, ainda dizem; e ele decerto ainda carrega dobrado, já que deve continuar por aí. Todos aqueles que transportam um saco de cimento por vez podem imaginar o que seja levar dois. São muitos, muitíssimos, e estão em condições de compreender, diferentemente de nós, que Amarildo, ou Boi, cometia uma façanha. Cometia, não –comete. Mas no domingo suas costas estavam livres de carga, não sabemos como vinham, talvez um pouco arqueadas, mas estavam nuas, devia fazer calor, e ele chegava da pescaria habitual nas rochas de São Conrado. Confundiram-no com um traficante do Comando Vermelho –por azar soldados dessa facção estavam, ou ainda estão, em frente a sua casa, próxima a uma boca de fumo. Depois o conduziram à sede da UPP, na cabeça da favela. Diz o comandante da unidade que logo viram o equívoco quando o compararam com a foto do homem procurado e então o despacharam. Justamente naquele dia as duas câmeras na saída do posto estavam queimadas. E seria inútil interrogar as demais, perto de oitenta, plantadas na Rocinha, pois elas não registraram nada. Por qual beco ele desceu? Encontrou alguém no caminho? Estava pálido? Não devia ter manchas de sangue ou de abusos, pois, relatou o major Edson, perceberam o equívoco logo, isto é, imediatamente, num segundo. Não durou nada o interrogatório, nem este houve porque a foto já estava lá desde o início. Era ele chegar e confrontavam o focinho de um com a cara do outro concluindo que não eram o mesmo. Trabalho mecânico, rápido, que prescindia da energia física maior e mesmo da força mental que o inquérito exige. Que dirá a tortura. Porque torturar não é simples, depende de tempo, firmeza de espírito e vigor na proporção em que varia a resistência do material a trabalhar — qual não seria a resistência de um Atlas dado a andar com dois sacos de cimento no lombo? Tanto mais que torturar não é algo que se faça correndo, mas quase parando. Claro, estavam prontos para usar o método necessário, mas não com qualquer um, ainda que Boi fosse um semideus na força e na disposição infinita. Seja como for, precisariam checar se aquele era mesmo o homem que procuravam. Precisariam, naturalmente.

É evidente que não iam gastar tempo e vela com defunto errado — vela do Estado e tempo sagrado, devotado ao trabalho e ao Estado também. Podiam muito bem ter cabulado e ido pescar à tarde, como Amarildo o fez num momento de uma não invulgar lucidez. Terá ele parado na casa de um compadre para se aliviar do vexame sentido, talvez chorar, talvez se lamentar por não ter respondido às más-criações do policial, como sempre dizia que faria se fosse abordado com violência, pois era um trabalhador, e trabalhador nenhum merecia isso? Não sabemos se para ele havia uma classe de gente que merecia a abordagem indecorosa. O fato é que para os pacificadores costuma haver, e logo, num piscar de olhos, se deram conta do engano e, se não o despediram com constrangimento e desculpas pelo incômodo –talvez o tenham mesmo repreendido, meio na gozação, por andar sem camisa e a esmo em noite de domingo, quando deveria estar se preparando para o batente da segunda –, é certo que o despediram. Logo.

Priscila Figueiredo é poeta e crítica, professora de Literatura Brasileira na USP, autora de Em busca do inespecífico (Nankin,  2001), sobre Mário de Andrade, e Mateus — poemas (Bem-te-vi, 2011).

 

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Um comentario para "Logo"

  1. Elza disse:

    Que maravilha de crônica, Priscila! Sensível… mas tão forte!
    Quisera eu poder fazer a minha parte, como você está fazendo a sua. Parabéns!

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