Hora de examinar o poder dos super ricos

Mídia e academia quase não estudam o rentismo, sistema de privilégios que permite a uma pequena elite concentrar cada vez mais riquezas. Por isso, ainda acredita-se na meritocracia…

Por Antonio David Cattani, entrevistado no IHU

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Mídia e academia quase não estudam o rentismo, sistema de privilégios que permite a uma pequena elite concentrar cada vez mais riquezas. Por isso, ainda acredita-se na meritocracia…

Por Antonio Cattani, entrevistado no IHU

Muito comumente evoca-se no Brasil a entidade da meritocracia para justificar os mais variados ataques a programas sociais de mobilidade social, bem como para justificar desigualdades históricas. Ao analisar o fenômeno da concentração de renda e da riqueza no Brasil, Antonio David Cattani explica que é “preciso distinguir a verdadeira meritocracia na qual os indivíduos são retribuídos com valores e prestígio correspondentes à sua real contribuição para o bem comum da falsa meritocracia. Esta é usada habitualmente para justificar prerrogativas indevidas, como no caso da posse da riqueza imerecida ou obtida de maneira fraudulenta”.

“No caso brasileiro, os multimilionários são considerados como seres superiores, intocáveis, virtuosos e merecedores do respeito e da admiração de todos. Desconsideram-se os privilégios, as fraudes e a sonegação, além da exploração do trabalho. Um pobre pode se esforçar muito mais, vencer adversidades e mesmo assim não ser reconhecido e remunerado pelo seu empenho”, pontua Cattani.

De acordo com o pesquisador, os dados que fundamentaram seu livro Ricos, podres de ricos (Porto Alegre: Tomo Editorial/Marcavisual, 2017) vêm de dois estudos, a Pesquisa por Orçamentos Familiares – POF e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, que apesar de trazerem dados consistentes são incapazes de captar o universo dos mais ricos. “A pesquisa acadêmica está quase que integralmente voltada para o estudo das classes mais pobres, não se interessando pelo fato de que 1% da população detém mais de 50% da riqueza nacional. Não bastasse isso, os ricos estão blindados ao escrutínio da ciência e só revelam informações que lhes interessam. De certa maneira, os dados disponíveis são o que denomino “fragmentos da superfície”, esparsos componentes de um quebra-cabeça ainda a ser montado”, destaca.

Antonio David Cattani é doutor pela Universidade de Paris I – Sorbonne. Atualmente é pesquisador e professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É autor de diversas obras, dentre elas, Ricos, podres de ricos (Porto Alegre: Tomo Editorial/Marcavisual, 2017), A riqueza desmistificada (Porto Alegre: Marcavisual, 2014), A sociedade justa e seus inimigos (Porto Alegre: Tomo Editorial, 2016, escrito com Marcelo Oliveira) e Riqueza e desigualdade na América Latina (Porto Alegre: Zouk, 2010). Confira a entrevista.

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De que forma a riqueza e a pobreza são dimensões intrinsecamente relacionadas?

A questão decisiva nas sociedades contemporâneas assentadas na produção de riqueza material é a distribuição do excedente produzido socialmente. Existem provas estatísticas irrefutáveis de que a taxa de rendimento dos grandes capitais (e, consequentemente, das grandes fortunas) tem crescimento maior do que a taxa de crescimento da economia. Em termos bem simples, poucos estão ganhando muito em detrimento da maioria. Esse processo é a essência do funcionamento do capitalista. Porém, existe uma novidade: desde meados dos anos 1980 a concentração do capital está ocorrendo num ritmo alucinante. Os multimilionários estão se apropriando dos resultados da produção social como nunca na história da humanidade. Milhões de pessoas trabalham para enriquecer algumas centenas. Milhões de trabalhadores desperdiçam parte importante das suas vidas para que poucos privilegiados gozem do bom e do melhor de forma irresponsável e sem merecimento. Riqueza e pobreza não são autorreferentes ou autoexplicativas, existindo uma relação permanente entre ambas, uma espécie de simbiose na qual um lado ganha e o outro perde.

A questão da riqueza costuma estar relacionada a um discurso de meritocracia, mas de onde vem a riqueza das famílias que detêm o poder no Brasil?

A riqueza aparece sempre envolta num véu de mistificações. A mais antiga é o direito de propriedade apresentado como um princípio proveniente de desígnios divinos, portanto, sagrado e intocável. A propriedade privada – mesmo quando obtida de forma fraudulenta – é legitimada pelo sistema econômico, garantindo direitos de apropriação individual dos bens comuns e dos resultados produzidos socialmente. Mas o princípio jurídico não é suficiente. Para ter legitimidade, o capitalismo precisa justificar discursivamente a posse de recursos (terra, dinheiro e meios de produção). Os argumentos são múltiplos, a começar pelo mito da racionalidade produtiva. Apropriação e destruição da natureza transformam-se em “desenvolvimento”, exploração do trabalho em “otimização de recursos humanos”, a lei da selva na concorrência em “livre mercado” e, sem esgotar a lista inteira, poder de monopólio em “eficiência na obtenção de ganhos de escala”. O funcionamento do sistema regrado por esses princípios garante a acumulação do capital e, consequentemente, das fortunas. O fecho de ouro das múltiplas justificativas é a ideia de meritocracia. É preciso distinguir a verdadeira meritocracia na qual os indivíduos são retribuídos com valores e prestígio correspondentes à sua real contribuição para o bem comum da falsa meritocracia. Esta é usada habitualmente para justificar prerrogativas indevidas, como no caso da posse da riqueza imerecida ou obtida de maneira fraudulenta.

No caso brasileiro, os multimilionários são considerados como seres superiores, intocáveis, virtuosos e merecedores do respeito e da admiração de todos. Desconsideram-se os privilégios, as fraudes e a sonegação, além da exploração do trabalho. Um pobre pode se esforçar muito mais, vencer adversidades e mesmo assim não ser reconhecido e remunerado pelo seu empenho.

Caso sejam retirados os véus da mistificação veremos que na origem de muitas fortunas encontram-se privilégios escusos, favores tributários, ilícitos fiscais e, sobretudo, práticas que atentam contra o interesse do conjunto da sociedade. É o caso histórico da grilagem de terras, da utilização do trabalho escravo e, depois, da exploração de vulneráveis. É o caso também do sistema tributário regressivo, isto é, beneficiando grandes fortunas e penalizando a população de baixo e médio poder aquisitivo. Atualmente, é expressivo o número de grandes fortunas construídas pela especulação financeira e pelo rentismo que debilita a economia nacional.

A riqueza é, justamente, o tema de seu livro Ricos, podres de ricos. De onde vêm os dados que fundamentam sua pesquisa?

Há mais de dez anos venho pesquisando a concentração de renda. As informações a respeito são raras e de difícil acesso. A Pesquisa por Orçamentos Familiares – POF e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, além do próprio Censo Demográfico decenal não conseguem captar o universo dos mais ricos. Apenas em 2015, a Receita Federal disponibilizou dados agregados sobre os declarantes do imposto de renda (ano base 2014). A pesquisa acadêmica está quase que integralmente voltada para o estudo das classes mais pobres, não se interessando pelo fato de que 1% da população detém mais de 50% da riqueza nacional. Não bastasse isso, os ricos estão blindados ao escrutínio da ciência e só revelam informações que lhes interessam. De certa maneira, os dados disponíveis são o que denomino “fragmentos da superfície”, esparsos componentes de um quebra-cabeça ainda a ser montado. Recentemente, foi publicado o livro intitulado Tributação e Desigualdade (Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017). Nele, especialistas em tributação demonstram em detalhes as distorções da legislação fiscal e tributária que, entre outros processos, garante privilégios indevidos para os poderosos.

Ricos, podres de ricos pode ser considerado uma introdução ao assunto. Ele apresenta dados gerais e explicita conceitos tais como meritocracia, riqueza substantiva, rentismo, plutocracia, renda e riqueza e outros. A reação dos leitores foi de espanto e indignação. Muita gente não tem a mínima noção de como está sendo ludibriada pela grande mídia e pelo discurso de alguns políticos. Estes, na hora de pedir votos, fazem declarações bombásticas a respeito dos necessitados. Depois, no Parlamento, defendem os interesses de grandes corporações. A primeira edição do livro esgotou em menos de três meses e, agora, estou lançando uma segunda, revista e ampliada.

Quando o senhor fala sobre a riqueza, a que tipo de riqueza está se referindo? Em que ela se manifesta?

No mundo contemporâneo, riqueza está sempre vinculada à posse de capital. Fala-se muito sobre capital cultural, capital social etc. como fontes de prestígio e legitimidade social. Porém, todos eles são epifenômenos (fenômenos acessórios que se agregam a um fenômeno essencial, sem contribuir de maneira eficaz para a sua produção). Eles estão subordinados ao capital econômico e, nesse caso, é necessário considerar a questão da escala. Um pequeno industrial ou comerciante pode ter capital, bens (residências, carros) e investimentos. Em termos de classes sociais e na comparação com o restante da população ele é considerado um capitalista rico. Porém, ele não possui a riqueza substantiva garantindo poder nas suas três dimensões: econômica, política e social.

Riqueza substantiva é um conceito para nomear a posse de recursos concretos para o exercício efetivo do poder sobre os demais empresários, sobre a massa da população e, em muitos casos, sobre o próprio Estado. Desde meados dos anos 1980, a riqueza substantiva está sob o domínio do setor financeiro (grandes bancos, seguradoras e financeiras), constituindo-se numa plutocracia (domínio dos ricos) e consubstanciando-se no rentismo. O termo rentismo designa o domínio daqueles que vivem de rendas sem produzir nada de concreto. Eles são aproximadamente 0,1% dos brasileiros e recebem bilhões mensalmente graças ao pagamento de juros sobre a dívida pública e graças a atividades especulativas e predatórias.

De que forma a riqueza se transforma em um problema? Não parece justo que as pessoas queiram uma boa vida?

Não é uma perversidade moral ou ilegalidade se ter acesso às coisas boas da vida. Pelo contrário, é humano e legítimo tentar obter melhores condições materiais e usufruir das coisas permitidas pelo avanço da civilização. O problema está, novamente, na questão da escala. A riqueza concentrada é nefasta para a democracia e para a própria economia. Um número incontável de multimilionários construiu suas fortunas sobre a exploração do trabalho valendo-se de métodos ilícitos que vão da sonegação fiscal ao crime. A revista The Economist, arauto do liberalismo econômico, foi obrigada a reconhecer que existem trilhões de dólares circulando em paraísos fiscais e que esse montante está solapando a economia. A partir de determinado montante de dinheiro, os multimilionários escapam aos controles fiscais e tributários, não contribuindo com nada para a manutenção da infraestrutura material dos países sede das suas atividades. A partir de determinado tamanho, grandes empresas se tornam ineficientes e pouco inovadoras, exercendo domínio apenas pelos efeitos de poder. É o que revelam os recentes escândalos (Swiss Leaks [1], Panama Papers [2], Paradise Papers [3]). Amazon, Google, Apple e centenas de outras megacorporações pagam infinitamente menos impostos que os concorrentes de menor escala, destruindo-os e gerando desemprego. Essas multinacionais não são entidades abstratas, elas possuem proprietários que são os beneficiários finais das transações. É o fenômeno da personificação da riqueza, quando indivíduos tornam-se parasitas sociais com um consumo desmedido e conspícuo, esterilizando recursos em mansões suntuosas, iates, obras de arte subtraídas da esfera pública etc. Extraem sua riqueza no Brasil, mas vivem a maior parte do tempo em Miami, Nova York ou Londres.

Igualmente graves são os processos de enfraquecimento da democracia. O Congresso Nacional é hoje constituído em mais de 50% de parlamentares financiados dos grupos de interesse (bancos, agronegócio, mineradoras, igrejas evangélicas). Essa bancada barra qualquer tentativa de mudança tributária ou de redução de privilégios. Em 2017, um grupo de multimilionários criou o chamado ”fundo cidadão” para promover candidatos identificados com as propostas neoliberais. O poder econômico em conluio com a grande mídia monopolista manipula as informações, garantindo a adesão ideológica da opinião pública.

Diante deste cenário, que alternativas podem ser construídas para garantir uma distribuição das riquezas do país de forma mais equânime? Como garantir que reformas previdenciárias, reformas tributárias, auditoria da dívida pública e taxações a grandes fortunas sejam realizáveis diante de um contexto político de absoluto conservadorismo parlamentar?

Para alterar o regime tributário e fiscal existe um conjunto de medidas que não exigem mudanças constitucionais. Medidas tecnocráticas e autoritárias pouco adiantam. O primeiro e indispensável passo é o trabalho de esclarecimento da população hoje intoxicada por mitos, por falsas explicações econômicas e por valores elitistas. Os ricos não teriam tanto poder e legitimidade se as pessoas soubessem como eles acumularam suas fortunas, como obtiveram privilégios tributários e regalias fiscais imerecidas. Dois terços da população brasileira paga 50% dos seus rendimentos em impostos indiretos (energia elétrica, gás, gasolina, telefone, alimentos etc.). Isso representa em torno de 180 dias de trabalho. Multimilionários e rentistas pagam menos de 1% da sua renda em impostos. Isso quando pagam…

Esse trabalho de esclarecimento não deve ser uma medida isolada a cargo de alguns indivíduos. Ele precisa ser levado pela mídia alternativa, pelas instituições representativas dos trabalhadores (sindicatos e centrais), pelos partidos políticos realmente vinculados aos interesses da grande maioria da população. E, sobretudo, pelas iniciativas das entidades da sociedade civil identificadas na luta pelo bem comum. Por exemplo, foi criado em 2011 o Instituto Justiça Fiscal – IJF, associação civil, sem fins lucrativos, com sede em Porto Alegre/RS e atuação em todo o território nacional. O IJF tem por finalidade o aperfeiçoamento do sistema fiscal com vistas a torná-lo mais justo e capaz de contribuir para a redução das desigualdades sociais e regionais. A sua criação está apoiada no pressuposto de que é necessário criar condições para que o debate sobre o sistema fiscal nacional e sobre a justiça fiscal não fique restrito a um conjunto reduzido de agentes, normalmente mais voltados à defesa de interesses privados, de modo que seja assimilado e apropriado por toda a sociedade, condição indispensável para se garantir a precedência do interesse público.

Esse tipo de iniciativa é um elemento na vasta rede com possibilidades de construir uma sociedade justa, livre e solidária.

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