⏯️ No SUS, declínio e ressurreição do Comum

Como o congelamento de verbas devasta os hospitais públicos. Por que o sistema, mesmo municipalizado, depende dos recursos federais que o governo retém. Os caminhos para, após a pandemia, reconstituir Saúde e serviços públicos

Grazielle David em entrevista a Antonio Martins, no OP Entrevista

Dois fatos marcam a relação da sociedade brasileira com o Sistema Único de Saúde, em tempos de pandemia. O primeiro é trágico e antigo. Nos necrotérios de diversos hospitais brasileiros, cadáveres envolvidos por sacos iguais aos de lixo ocupam os corredores, enquanto aguardam os agentes funerários. Não há vagas para estes corpos nas geladeiras, assim como não houve, antes, nas UTIs.

No segundo fato, está a novidade. Nunca, como agora – nem mesmo no período esperançoso de sua fundação, no final dos anos 1980 – a relevância social, científica e política do SUS ficou tão evidente e incontornável, inclusive na mídia comercial. É dos hospitais públicos que a cobertura das TVs fala, quando examina a capacidade de atender a população, e o risco de que milhares pereçam em casa, por colapso do sistema. São os especialistas de instituições também públicas, como a Fiocruz e o Hospital Emílio Ribas, que se destacam, nas pesquisas científicas que buscam controlar a doença. Algo fundamental mudou. Até há meses, o SUS era visto principalmente em imagens de filas nos hospitais, como sinal de suposta ineficiência. Os problemas, é claro, persistem – porque as causas não foram sanadas. Mas abriu-se espaço inédito para sustentar que a garantia efetiva do Direito Saúde do Brasil jamais será alcançada pela mercantilização – e sim pelo Público.

Passar desta conquista simbólica à recuperação efetiva do SUS exigirá uma sociedade capaz de compreender as bases e o financiamento do sistema. É a este tema que se dedica, há dez anos, Grazielle David. Mestra em Economia da Saúde e em Saúde Coletiva (UnB), ela ficou conhecida pelas análises de profundidade sobre as medidas do governo que atingem os serviços sanitários à população. Parte deste vasto material está publicado em artigos e entrevistas a Outras Palavras. Na última segunda-feira, Grazielle voltou ao tema. Eis os principais pontos destacados por ela, no vídeo acima:

> Desde 2016, quando foi aprovada a Emenda Constitucional (EC-) 95, o Orçamento da Saúde está limitado por duas trancas – ambas ligadas à concepção neoliberal sobre os gastos públicos. Ele já era constrangido pela chamada “meta fiscal” fixada ano a ano: ela reserva uma parte dos gastos da União para pagamento de juros e reduz os desembolsos para todas as demais áreas. A partir da EC-95, um novo cadeado subrepôs-se a este. Por vinte anos, os gastos sociais não poderão aumentar (havendo inclusive risco de diminuírem), ainda que a população aumente, ou envelheça e requeira mais cuidados. Estas trancas determinaram, por exemplo, a redução absoluta dos leitos de UTI, entre 2007 e 2018.

> É um engodo afirmar que, por ser muito decentralizado, o SUS não se ressente da redução de verbas da União. Os Estados e em especial os Municípios são, de fato, os executores das ações de Saúde pública. Mas, na esdrúxula estrutura tributária brasileira, dependem de recursos da União para realizar esta ações. Esta contradição é propícia, em especial, às práticas de clientelismo político e formação de currais eleitorais. É frequente que as dotações de verbas necessárias para manter hospitais, ou criar unidades básicas de saúde, por exemplo, tenham de ser mendigadas pelos municípios aos deputados e senadores, que as proveem na forma de emendas parlamentares.

> Um novo cenário está se abrindo com a crise sanitária e econômica global. Parte dos dogmas neoliberais tornou-se insustentável. Ninguém é mais capaz de afirmar, por exemplo, que os Estados devem “gastar apenas o que arrecadam”, diante dos rios de dinheiro emitidos para salvar grandes bancos e corporações. Abriu-se uma brecha, mas nada está garantido. O oligarquia financeira tentará restabelecer os tabus, passada a crise. Foi exatamente o que fez na derrocada anterior, de 2008. Haverá intensa disputa. Dois projetos opostos irão se opor: o da mercantilização radical e o de uma espécie de “Revolução dos Comuns” – que aponte precisamente para a oferta de serviços de excelência para todos.

Nestas batalhas, é uma satisfação contar com as ideias de Grazielle David. Fique com sua entrevista.

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