⏯️ O que há por trás do “Orçamento de Guerra”

Tesouro prepara-se para salvar bancos e corporações quebradas, sem exigir contrapartidas – enquanto arrasa Estados e Municípios. Proposta aprovada pela Câmara revela: em meio à crise, aristocracia financeira quer ainda mais riqueza e poder

David Deccache em entrevista a Antonio Martins

A pandemia produz monstros políticos. Na última sexta-feira 3/4), a Câmara dos Deputados votou, em dois turnos, e em ritmo de rolo compressor, uma proposta de emenda constitucional – a PEC-10/2020 – que pode tornar o Brasil mais desigual e mais submisso à aristocracia financeira. A proposta tornou-se conhecida como “Emenda do Orçamento de Guerra”. Estabelece, por um lado, providências indispensáveis para enfrentar o coronavírus. As amarras que bloqueiam de mil maneiras o investimento público são relaxadas. Os mitos segundo os quais “o Estado deve gastar apenas o que arrecada” e “não há recursos” rolam por terra.

Mas a PEC 10/2020 embute um contrabando, entuchado em seu texto sem debate algum com a sociedade. Uma série de dispositivos oferecer um cheque em branco ao Banco Central para salvar conglomerados financeiras e grandes corporações em crise. Se aprovadas, as cláusulas serão executadas por uma instituição (o próprio BC) cuja promiscuidade com os nababos do mercado são notórias. O Estado brasileiro poderá comprar, sem limites, títulos podres possuídos pelos bancos. Se as grandes corporações que lançaram debêntures (papéis de dívida) no exterior (alô, mineradoras e agronegócio…), não forem capazes de rolá-los, a Viúva será convocada a adquiri-los – e micar com eles. Mais tarde, quando o vendaval passar, a narrativa será a mesma da crise de 2008, porém amplificada. “O Estado está quebrado. É preciso apertar os cintos, desmantelar serviços e políticas públicas, reduzir direitos”

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A pandemia produz esperanças de reviravolta. Uma nova geração de economistas está enfrentando a ortodoxia que fez de sua profissão ponta de lança dos interesses do 0,1%. Há dezenas deles, agora. Estão presentes em instituições como a Associação Brasileira de Economistas pela Democracia – Abed – onde dialogam com velhos mestres. David Deccache, de 32 anos, é um dos expoentes desta juventude inquieta. Ajuda a animar grupos como os que debatem a Teoria Monetária Moderna. Mas não se limita à formulação abstrata. Como assessor da liderança do PSOL na Câmara, tem participado do debate das medidas concretas adotadas para enfrentar a crise – ou… a pretexto dela…

Esta condição o convida a ir da crítica às alternativas. David pensa, por exemplo, que ao se propor a resgatar os bancos, o Estado brasileiro pode impor enormes contrapartidas. Entre elas, o perdão das dívidas de uma vasta parcela dos inadimplentes – e a redução drástica dos juros cobradas de outros. O que ofende a sociedade e a lógica, diz ele, é proteger os ricaços e manter com a corda no pescoço aqueles que têm sido extorquidos com taxas de juros sem paralelo algum no resto do mundo.

David pensa também nos Estados e Municípios. Por manejarem os serviços do SUS, serão eles os responsáveis a atender os milhões de brasileiros vítimas do coronavírus. São eles que oferecem o ensino público. Porém, este mesmo Congresso que resgata os banqueiros está, no momento em que você lê este texto, preparando-se para impor novos cortes às prefeituras e governos estaduais. As PECs “emergencial” e do “pacto federativo”, propostas por Paulo Guedes, e o chamado “Plano Mansueto” determinam, por exemplo, redução dos salários dos servidores e do trabalho executado por eles, sempre que certos indicadores forem atingidos. Mas enquanto a população padece, serão poupados destes mesmos sacrifícios os banqueiros… Não seria mais lógico – pergunta David – oferecer tratamento igual e anular as dívidas de Estados e Municípios?

Ao longo de 40 minutos de entrevista, ele foi muito além do debate da crise. Lembrou que o desabamento da economia neoliberal coloca as sociedades diante de um disjuntiva. Até mesmo as velhas noções de moeda estão em xeque. As montanhas de dinheiro despejadas na economia sugerem indicam que as relações mercantis não são mais soberanas. Não seria possível pensar em sociedades do Comum, que tornassem acessíveis para todos os bens e serviços necessários a uma vida digna?

David faz uma ressalva provocador: sim, mas isso secaria a fonte principal de acumulação, no capitalismo contemporâneo. Se Saúde, Educação, Moradia, Saneamento, Conhecimento e Cultura forem Comuns, que terreno sobrará à acumulação do capital? E, mais ainda, se a própria emissão de moeda puder ser controlada democraticamente pelas sociedades?

A entrevista com Deccache resvala, em certos momentos, para termos técnicos. Às vezes, não há como evitá-los. Ainda assim, é um convite tentador à reflexão e inteligência, em tempos difíceis. É nestas horas, vale lembrar, que surgem as chances de questionar o que sempre foi visto pelas maiorias com o normal. Aproveite a quarentena e fique com o diálogo. Ótimo proveito!

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