A pauta das direitas para tentar sair da defensiva

Elas apostam na “reforma” administrativa – tema que confunde a opinião pública – para tirar de foco a luta pela soberania

Nada como um tema novo para alterar um cenário político desfavorável e sair de posição incômoda. Há dois meses, as forças à direita – o bolsonarismo e os neoliberais, presentes tanto no Congresso quanto na mídia e entre o empresariado – debatem-se com a recuperação de popularidade do governo Lula. Preocupam-se, ainda mais, com a emergência de temas que lhes são incômodos, e que julgavam esquecidos: a desigualdade, as injustiças sociais, e soberania nacional. Pode estar surgindo agora uma chance de retomarem a iniciativa. A Câmara dos Deputados prepara-se para colocar em pauta a mal-chamada “Reforma” Administrativa.

Há meses, opera um Grupo de Trabalho (GT) parlamentar encarregado de se debruçar sobre o assunto opera em Brasília. Uma tentativa anterior, ensaiada no governo Bolsonaro, fracassou. Apresentada com alarde em setembro de 2020, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 32/2020 emperrou, vítima de suas incongruências e da mobilização do funcionalismo; mas não chegou a ser engavetada, ao contrário do que defendiam seus oponentes. Aparentemente, o presidente da Câmara, Hugo Motta, pretende fazer da iniciativa a “marca” de sua gestão.

O relator designado pelo GT, deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), promete apresentar sua proposta na próxima quinta-feira (21/8). Segundo a revista Veja, ela desdobra-se em três instrumentos legislativos: uma nova PEC, um projeto de Lei Complementar e um projeto de lei ordinária. Ao que se sabe até o momento, o conjunto da obra é menos nocivo que o anterior. O deputado parece ter, inclusive, ouvido a ministra Esther Dweck, da Gestão e Inovação, no processo de construir seu texto. O grave é a caixa de Pandora que poderá se abrir, quando o tema for a debate no Legislativo.

A Reforma Tributária remete a um dos mitos conservadores que mais plantou raízes na consciência popular: o da suposta “ineficiência” da máquina pública. Os servidores brasileiros seriam, reza o mito, numerosos, ineficientes e privilegiados. Gozariam de regalias de que os demais trabalhadores são privados. Apesar disso, atenderiam a população com desprezo. Para corrigir esta distorção, seria necessário eliminar benefícios e garantias indevidas. Um dos alvos principais é a estabilidade no emprego, que contrasta com a insegurança laboral vivida pela maioria da população.

Outras Palavras orgulha-se de publicar hoje um artigo que desmente estes argumentos. É da lavra de João Policarpo de Lima, professor titular aposentado de economia da Universidade Federal de Pernambuco. Diante dos preconceitos, o autor mobiliza quatro dados essenciais.

O primeiro diz respeito ao suposto “peso” da máquina estatal, cuja manutenção exigiria, dos brasileiros, uma carga tributária elevadíssima. João Policarpo responde com números da Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE), um clube que reúne 32 nações do Ocidente – entre elas, as mais ricas. Os tributos brasileiros, demonstra o texto, equivalem a 32% do PIB — contra 34% na média da OCDE e 43% em países como a Suécia. Não está no escopo do estudo, mas vale acrescentar que, no Brasil, as taxas de juros elevadíssimas oferecidas aos rentistas há mais de quatro décadas, desviam parte da riqueza nacional e bloqueiam o investimento e a qualidade do gasto público.

O segundo dado tem origem no livro Curto Circuito, da economista Laura Carvalho. Ao produzir uma radiografia do serviço público brasileiro, ela demonstram que ao menos metade recebe até R$ 2,7 mil – ou seja, menos de dois salários mínimos. Seria possível considerá-los privilegiados? A parcela de servidores que recebe mais de 20 salários mínimos (atualmente, R$ 30.360) é de apenas 3%, continua Laura.

Haveria servidores públicos demais no país? Ainda com base nas estatísticas da OCDE, João Policarpo desmente a falsidade. Nos países-membros desta organização, os funcionários do Estadoi são 23,5% do total dos trabalhadores. No Brasil, o percentual é de pouco mais da metade: apenas 12,3% dos assalariados atuam no serviço públicos..

Mesmo pouco numeroso o funcionalismo e modestos os salários da grande maioria, estaria havendo, nos últimos anos, um aumento no gasto com os servidores públicos? Os dados alinhados por João Policarpo, e arrolados pelo Atlas do Estado Brasileiro, do IPEA, demonstram o contrário. O montante pago aos servidores públicos de todos os níveis caiu 31% em duas décadas. Ele equivalia a 2,6% do Produto Interno Bruto em 2002, mas recuou para 1,79% do PIB em 2024.

A queda não é sem consequências. Ela se materializa nas escolas que não têm o número necessário de professores e outros funcionários; nos municípios brasileiros que não são atendidos ainda hoje por equipes de Saúde da Família; nas Unidades Básicas de Saúde onde faltam médicos; nas filas e no longa demora que o INSS impõe, por falta de funcionários, para conceder aposentadoria aos trabalhadores que já têm direito ao benefício e em inúmeros outros serviços precários oferecidos à população. Tudo isso com origem em algo oposto às inverdades sustentadas pelos neoliberais e pela ultradireita: a máquina pública brasileira é muito inferior ao que precisaria ser para assegurar dignidade à população.

O artigo reconhece que há graves distorções no serviço público. Os supersalários são uma delas. Concentram-se principalmente no Judiciário e no Ministério Público, onde a média de vencimentos é o dobro da existente nos demais poderes. Em todos, há benefícios exagerados, de que desfruta uma minoria. Mas João Policarpo destaca: nem na proposta que tramitou no governo Bolsonaro, nem na que parece estar sendo construída agora, há medidas para reduzir estes benefícios desmedidos. O alvo do sistema político brasileiro e da elite brasileira são os milhões de servidores que atendem às maiorias

A Brasil precisa de uma Reforma Administrativa real, parece concluir João Policarpo, Ela precisaria construir um serviço público capaz de desmercantilizar as condições necessárias a uma vida digna. Educação, Saúde, Transporte Público de excelência deveriam ser direitos de todos, independentemente do poder aquisitivo – assim como o acesso aos bens e produções culturais, ao lazer, ao espaço urbano. Infelizmente, a “Reforma” que parece prestes a ocupar a pauta do Congresso pode ter sentido oposto.

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