WikiFavelas: As engrenagens do trabalho escravo

Ele está ligado com a formação econômica do país, mostra o Dicionário Marielle Franco. Mas isso não explica tudo. É preciso compreender como corpos negros tornam-se descartáveis diante do agronegócio e da precarização selvagem

Imagem: Kay Chernush/Free The Slaves
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A proximidade da celebração do 1º de Maio nos leva a refletir sobre a difícil situação do trabalho no país, que conjuga desregulamentação e perda de direitos laborais e previdenciários com a persistência do trabalho escravo e a naturalização da empregabilidade precária. É imprescindível ter em conta que o combate ao trabalho escravo, que recentemente voltou a ser tematizado, não pode ser dissociado das demais dimensões da regulação e proteção ao trabalho, atuando de forma sinérgica, como acima apontado.

Março de 2023 consagrou um triste, porém importante, marco no enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil: o mês fechou o trimestre com recorde de resgates de trabalhadores em situações análogas à escravidão. Pelo menos 918 pessoas foram resgatadas em diferentes estados brasileiros sob diferentes condições de trabalho. A maioria dos casos se deu em Goiás e Rio Grande do Sul, regiões de latifúndios controlados pelo agronegócio, em lavouras e usinas de cana-de-açúcar ou em vinícolas popularmente conhecidas. A dinâmica das denúncias circula em torno de uma rede de aliciamento de trabalhadores em outros estados do país, como Bahia, e representa uma prática que se mantém como parte do processo de desenvolvimento do setor agrário brasileiro, particularmente, e seus ilegalismos. Além disso, sabemos, a prática da escravidão contemporânea não acontece sozinha; em geral, ela se relaciona com um conjunto de outros crimes, como o crime ambiental, o crime tributário, o trabalho infantil, o tráfico de pessoas, o assassinato, a ocultação de cadáver, o porte ilegal de arma – e o racismo.

Desde, principalmente, a Constituição Federal de 1988, esforços têm sido feitos – sejam eles governamentais ou não – com o intuito de coibir e combater o trabalho escravo contemporâneo. Uma rede de políticas tem se formado, contando com o apoio de entidades da sociedade civil nacionais e internacionais, além de setores estatais visando colocar a questão do trabalho escravo na agenda pública. Porém, esta luta ora apresenta avanços e ora apresenta retrocessos, sendo essa agenda resultante das políticas conservadoras de governo, de um lado, e da resistência de movimentos sociais, de outro. Os últimos anos, em especial, foram emblemáticos no aprofundamento da crise do trabalho e, com ela, a crise atual da economia capitalista. Entronizando o princípio da propriedade privada da terra, o que tem impedido as reformas agrária e urbana, o capitalismo à brasileira conjuga modernidade e atraso, no âmbito social, político e econômico, e mantém, em suas raízes, o racismo como estruturante da ordem social, política e econômica. Desde a Lei de Terras, a propriedade rural é mantida nas mãos de pouquíssimas famílias, sendo este patrimônio negado às populações negras e indígenas – submetidas ao trabalho escravo durante o período de acumulação primitiva colonial. Estas mesmas populações, hoje, forjadas sob as desigualdades sociais e raciais, são também subjugadas e desumanizadas diante do avanço predatório do capitalismo neoliberal. No campo, garimpeiros, grileiros, escravistas e traficantes invadem territórios indígenas provocando queimadas, intoxicações e genocídios. Na cidade, aliciadores, milicianos, governadores e empresários ocupam territórios de favelas provocando miserabilidade, extermínio e guerra. E, nesse jogo de forças, trabalhadores e trabalhadoras são lançados à própria sorte em meio a uma política de precarização e morte.

Durante os anos em que Bolsonaro esteve na Presidência da República, os planos traçados pelo empresariado urbano e rural no Brasil foram ampliados, em apoio às reformas trabalhista e da previdência. O Ministério do Trabalho foi extinto. A fiscalização ao trabalho escravo foi abandonada. E o Ibama e a Funai foram cooptados para atividades ilegais. A “boiada” passou. Ao mesmo tempo, o avanço neoliberal, com as reformas, aprofundou a precarização do trabalho, jogando mais de 13 milhões de trabalhadores ao desemprego, 38,6 milhões ao trabalho informal e não regulamentado, 14 milhões ao cadastro como “microempreendedores individuais”, 1,4 milhões ao cadastro como motoristas de aplicativos e 33 milhões à insegurança alimentar. Neste cenário, as condições de trabalho e, com isso, de dignidade humana, são corrompidas.

Ainda há muito a construir (e a reconstruir) para garantia dos direitos de trabalhadores e trabalhadoras no Brasil. Já no primeiro mês do atual governo do presidente Lula, a principal política de transferência e redistribuição de renda no país, o Bolsa Família, foi reformulado. O Novo Bolsa Família, agora, garante um valor mínimo de R$ 600,00 por família, além de R$ 150,00 de acréscimo por criança de até 6 anos; R$ 50,00 por criança ou adolescente de 7 a 18 anos incompletos; e R$ 50,00 por gestante. Com isso, o programa pretende alcançar mais de 20 milhões de famílias em todo o território brasileiro. A reforma agrária, como principal pauta para a redistribuição de terras, e a questão urbana, como forma de garantia de condições de moradia, também retomam espaço na articulação política, fortalecendo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.

“Se o colonialismo racista foi o estado de exceção que serviu de base de sustento para a formação das democracias modernas, certo é que as marcas das relações coloniais se perpetuaram nas práticas dos Estados democráticos de direito contemporâneos”, já aponta Achille Mbembe. É também emblemático o caso da cliente de uma plataforma de fast-food que chicoteou um entregador negro durante seu serviço em São Conrado, zona sul do Rio de Janeiro, neste mês. Na ocasião, a agressora teria se sentido “incomodada” com a presença do trabalhador na mesma calçada em que se encontrava e teria dito para o mesmo “voltar para a favela”. A vítima chega a afirmar se sentir como se a agressora a tivesse tratado como “escrava”. Esse caso ilustra o retrato das condições a que os trabalhadores precarizados de plataformas de serviços estão submetidos diariamente. Posteriormente ao ocorrido, o trabalhador recebeu uma bicicleta elétrica da empresa e uma vaquinha virtual foi criada para arrecadar recursos que o ajudem financeiramente, enquanto a agressora teve sua conta banida no aplicativo. Casos como esse expõem uma profunda conformação das dinâmicas de trabalho neoliberais às relações de desigualdade social e racial que acabam por priorizar corpos negros, periféricos e favelados como alvo.

É com a preocupação em trazer como pauta os alvos das políticas de precarização e morte do capitalismo neoliberal contemporâneo, que o Dicionário de Favelas Marielle Franco propõe uma discussão sobre o “Trabalho escravo no Brasil” e suas relações com o racismo ao apresentar dados e perfis dos trabalhadores resgatados nos últimos anos. Com isso, pretende-se apontar para os processos históricos, políticos, econômicos e sociais, que têm tornado possível a manutenção das práticas de escravização, atualizadas pela flexibilização das condições de trabalho e pelas relações de força do capitalismo global sobre os países da periferia. (Introdução: Clara Polycarpo)

Trabalho escravo no Brasil

Trabalho análogo à escravidão (Código Penal), forçado ou obrigatório (Convenção nº 29 da Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho) é um fenômeno de caráter global que viola gravemente os direitos humanos ao cercear a liberdade e agredir a dignidade do indivíduo. Diferentemente dos mecanismos de escravidão dos períodos imperial e colonial, este tipo de conduta se constitui em um crime e está atrelado subalternamente às dinâmicas trabalhistas contemporâneas.

Sobre

Trabalho escravo é um crime amplamente reconhecido ao redor do globo através dos países membros da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em sua 30ª Convenção Geral, ocorrida em 1930 na cidade de Genebra (Suíça), entre outros, e é repreendido por leis trabalhistas em diversos países. No Brasil, a lei sobre trabalho escravo foi institucionalmente constituída pela primeira vez em 1956, a partir de um decreto legislativo que aderia ao termos adotados pela OIT referentes ao crime[1], sendo ratificado em 25 de abril de 1957, promulgada em 25 de junho de 1957 e finalmente entrado em vigência no território brasileiro em 25 de abril de 1958[2]. Apesar disso, o país só passou a reconhecer a incidência do trabalho escravo em seu território, diante da OIT, em 1995, quando passou a registrar os números de trabalhadores resgatados. Além disso, tornou-se crime previsto e tipificado pelo código penal brasileiro somente em 2003, com pena de reclusão de 2 (dois) anos e multa, além de pena correspondente a eventuais violências ocorridas durante a execução do crime[3]. A penalidade pode ser ampliada pela metade caso o crime seja cometido contra menores de idade ou em decorrência de raça, religião ou origem.

Trabalho escravo, racismo e suas relações

No Brasil, as formas contemporâneas de escravidão podem ser entendidas a partir da dinâmica desencadeada desde, principalmente, meados do século XX. De fato, a escravidão contemporânea se diferencia da escravidão moderna em si: distintamente ao período colonial e imperialista, o trabalho escravo não é mais assegurado institucionalmente. A escravidão moderna constituiu-se num processo de conformação da economia mercantilista europeia e sua expansão marítima e imperial ao poder religioso ocidental e às teorias eugênicas racistas. Sob a monocultura agrário-exportadora e o racismo contra as populações não-brancas, foram criados os pilares que deram fundamento ao processo de escravização dos povos africanos nas Américas e em outras partes do globo. Sendo assim, a escravidão ocorreu de maneira institucionalizada como forma de garantir a ocupação e o desenvolvimento das economias ocidentais naquela época.

Este modelo de expansão colonial perdeu hegemonia a partir da transição do mercantilismo ao capitalismo, bem como da demanda por mão de obra para exploração de recursos do próprio continente africano. Entretanto, a escravização desses povos durante o período colonial é o que dá sustentação aos arranjos modernos de trabalho escravo do capitalismo contemporâneo, como parte da estruturação da ordem social e econômica racista e predatória. Como aponta Florestan Fernandes (2006)[4], o desenvolvimento do capitalismo na periferia não é capaz de eliminar o subdesenvolvimento – e a dependência -, isto é, as formas pré-capitalistas de relações econômicas são mantidas, mantendo também os focos de desenvolvimento econômico pré-capitalistas e suas estruturas sociais e políticas arcaicas. Na fase de emergência do capitalismo monopolista, não há, portanto, destruição de estruturas racistas e predatórias, mas, afinal, fortalecimento das mesmas. Nesse sentido, apontar para o trabalho escravo ou para o processo de deterioração das formas de trabalho na contemporaneidade, expressa em processos precarização dos empregos e de flexibilização de legislações sobre o trabalho, passa por reconhecer que os atingidos por tais políticas ou condutas foram forjados no centros dos modelos coloniais de expansão das nações ocidentais.

Na década de 1960, graças às políticas de desenvolvimento econômico formuladas pelos governos militares, a mão de obra aliciada (e forçada) foi utilizada, principalmente nas fronteiras da região Amazônica, para alimentar o agronegócio. Oriundos de municípios pobres e com baixo Índice de Desenvolvimento Humano, esses trabalhadores (também chamados de “peões”) foram sendo recrutados a serviço de fazendeiros (ALFAIA; FLEURY, 2014)[5]. Desde, principalmente, a Constituição Federal de 1988, esforços têm sido feitos – sejam eles governamentais ou não – com o intuito de coibir e combater o trabalho escravo contemporâneo. De 1990 a 2010, foram resgatadas 38.879 pessoas, fruto de centenas de ações de fiscalização[6]. Em 2003, com a criação do Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, novas ações foram formuladas, tais como a “Lista Suja” do trabalho escravo, que mantém um cadastro com os dados dos empregadores flagrados em práticas de trabalho escravo no Brasil. Contudo, mesmo após a Constituição Federal, que garantiu formalmente a igualdade de direitos entre trabalhadores urbanos e rurais, o que se observa, na prática, é um completo afastamento entre direito formal e relações cotidianas de trabalho. Para tanto, estabelecer uma relação entre um tipo de conduta trabalhista criminosa e a escravidão requer, necessariamente, criar conexões entres estes modelos a fim de compreender suas origens, características e formas de operacionalização no mundo contemporâneo.

Segundo a OIT no Brasil, o trabalho escravo contemporâneo “pode assumir diversas formas, incluindo a servidão por dívidas, o tráfico de pessoas e outras formas de escravidão moderna. Ele está presente em todas as regiões do mundo e em todos os tipos de economia, até mesmo nas de países desenvolvidos e em cadeias produtivas de grandes e modernas empresas atuantes no mercado internacional.”[7] A organização “Escravo Nem Pensar!” afirma que “o termo “trabalho escravo contemporâneo” é usado no Brasil para designar a situação em que a pessoa está submetida a trabalho forçado, jornada exaustiva, servidão por dívidas e/ou condições degradantes. Não é necessário que os quatro elementos estejam presentes: apenas um deles é suficiente para configurar a exploração de trabalho escravo.”[8]

Embora o trabalho escravo seja um termo utilizado para se referir a qualquer indivíduo submetido a tais condições, no Brasil, em especial, o fenômeno deve ser analisado mediante as características históricas e sociais do país, sobretudo as heranças culturais coloniais e conservadoras – já que a escravidão é praticada, em particular, sobre as populações negras e de origem nordestina que atuam nos campos em razão da produção agropecuária nacional. O racismo, enquanto elemento estruturante da ordem social e econômica brasileira, é peça fundamental na reprodução das formas de exploração atual. Sua operacionalização, institucional e estrutural, serve como método para submeter determinados grupos ao trabalho escravo. Essa concepção está calcada na desigualdade racial, mas se renova nos processos de migração interna decorrentes da urbanização e industrialização do país. Dessa forma, a busca por trabalho nas regiões mais industrializadas ou com maior poder econômico por indivíduos de origem nordestina, especialmente, é acompanhada por reações xenofóbicas que visam fragilizar a integridade dessas populações, tornando-as vulneráveis à exploração laboral e ao trabalho análogo à escravidão.

O resgate de trabalhadores de uma empresa terceirizada contratada por vinícolas da serra gaúcha durante a safra da uva em março de 2023 é um trágico exemplo das relações xenofóbicas e racistas que envolvem o trabalho escravo. No episódio, 194 dos 207 resgatados eram baianos que estavam alojados em instalações inadequadas. As vítimas afirmaram que os baianos possuíam uma forma de tratamento mais hostil, com uma ala diferenciada para o grupo e sofriam violência constantemente. Após o resgate, houve reações contrárias às denúncias feitas pelo Ministério Público do Trabalho: um vereador de Caxias do Sul chegou a afirmar que era normal que as vinícolas “fossem ter esse tipo de problema” ao contratarem nordestinos para a safra. Na ocasião, o vereador fez uma defesa da contratação de trabalhadores argentinos, afirmando que eles seriam “limpos e organizados”, dando a entender que tais características não eram encontradas nos baianos já que sua única seria “viver na praia tocando tambor”[9].

A preferência pela escravização de corpos pobres e, sobretudo, negros, ocorre a partir do não reconhecimento dessas populações como dotadas de direitos e capacidades para uma relação positiva num determinado processo produtivo. Dessa forma, o que se viola é a integridade dessas pessoas no ambiente de trabalho – e sua própria dignidade humana. Para Honneth[10] (2003), somente o reconhecimento intersubjetivo e recíproco entre as partes pode resultar numa plena realização social – nesse contexto, laboral. Numa cultura racializada e fortemente impactada pelo escravismo, a reciprocidade para reconhecer o outro se perde, ocasionando em condutas violentas que inferiorizam grupos desfavorecidos nesse quadro.

Desde sua origem, o trabalho escravo também está intimamente ligado ao setor latifundiário e agropecuário no Brasil, correspondendo a ampla maioria dos casos de resgate. A presença da conduta no setor é tamanha que a Bancada Ruralista, representada em frente parlamentar, buscou nos últimos anos flexibilizar o que se entende por trabalho escravo. Em 2017, um ano e alguns meses após o impeachment da presidente Dilma, o governo federal chegou a emitir uma portaria em favor dos ruralistas, que relativizava as condições para se considerar um trabalho análogo à escravidão. Nesse sentido, a portaria entendia que não necessariamente trabalho forçado e jornada exaustiva comportavam as características que denominam o que é trabalho escravo. Contudo, seus efeitos foram suspensos ainda naquele ano pelo STF. Ainda assim, há projetos de lei e outras tentativas de flexibilização da lei sobre o trabalho escravo.

Na atualidade, a dinâmica do trabalho escravo e do racismo ainda estabelece fortes conexões com a reforma trabalhista e a terceirização em curso no Brasil, expondo um relacionamento íntimo entre condutas criminosas na esfera do trabalho e a agenda neoliberal contemporânea. Segundo dados do próprio Detrae[11] (Departamento de Erradicação do Trabalho Escravo), entre 2010 e 2013, 9 em cada 10 trabalhadores resgatados eram oriundos de trabalhos terceirizados. Isso acontece devido à falta de fiscalização das empresas contratantes e do poder público sobre as condições de trabalho proporcionadas por terceirizadas. Por outro lado, a plataformização do trabalho e sua desregulamentação também indicam maior suscetibilidade à submissão de indivíduos ao trabalho análogo à escravidão. O Brasil ocupa espaço central nessa nova configuração da divisão internacional do trabalho, como lugar de abundante mão de obra com baixos custos e precarizada mediante desigualdades sociais e raciais, tornando-o mais efetivo na aplicação da agenda neoliberal de flexibilização do trabalho.

É importante salientar que os efeitos da desregulamentação dessas novas formas de trabalho, como as por plataformas digitais, bem como a flexibilização das leis trabalhistas, são sentidos sobretudo em populações faveladas e periféricas que, ao fazerem parte do grande contingente de desempregados na atual crise do trabalho – estratégia calcada na filosofia neoliberal para manutenção de baixos salários -, não vêm outra saída que não se inserir em postos precarizados como maneira de garantir renda e subsistência em meio a tal quadro. Nesse sentido, esses corpos – historicamente desumanizados – são submetidos à informalidade a acabam por ter sua dignidade violada. Sendo assim, o trabalho como valor humano é superado em meio ao processo de precarização dos empregos, levando a condições análogas à escravidão.

Embora passos tenham sido dados no sentido de enfrentar o problema, atualmente não há ninguém preso no Brasil por submeter trabalhadores a condições análogas à escravidão e “as políticas de combate a estes regimes de exploração ainda são insuficientes, dependendo de ações de projetos e organizações da sociedade civil para trazer atenção aos casos”[13] (p. 7, PENA, LOPES, 2023). Além disso, o debate atual ainda não prioriza as intersecções possíveis, como a desigualdade no processo de regularização fundiária no país, os efeitos do racismo sobre essas condutas e o impacto negativo das novas leis trabalhistas sobre o trabalho precário e, com ele, o trabalho escravo. Sendo assim, o trabalho escravo se apresenta como um problema complexo e seu combate não deve ser entendido de maneira isolada, necessitando ser analisado através das relações que possui com as formações culturais, econômicas e políticas do país.

Panorama Global

  • Em 2021, 49,6 milhões de pessoas viviam em situação de escravidão moderna (Isso significa que 1 em cada 150 pessoas vivendo no mundo). Desse total, 28 milhões de pessoas realizavam trabalhos forçados e 22 milhões estavam presas em casamentos forçados.
  • Em 2021, 10 milhões de pessoas a mais estavam em situação de escravidão moderna em comparação com as estimativas globais de 2016.
  • Das 27,6 milhões de pessoas em trabalho forçado, 17,3 milhões são exploradas no setor privado; 6,3 milhões eram vítimas da exploração sexual comercial forçada e 3,9 milhões do trabalho forçado imposto pelo Estado.
  • Quase quatro em cada cinco vítimas de exploração sexual comercial forçada são mulheres ou meninas, Com isso, mulheres e meninas representavam 4,9 milhões das pessoas vítimas da exploração sexual comercial forçada, e 6 milhões das pessoas em situação de trabalho forçado em outros setores econômicos, em 2021.
  • Um total de 3,31 milhões de crianças são vítimas de trabalho forçado, o que representa 12% de todas as pessoas em situação de trabalho forçado. Mais da metade dessas crianças são vítimas da exploração sexual comercial..
  • O trabalho forçado atinge praticamente todas as áreas da economia privada. Os cinco setores responsáveis pela maior parcela do trabalho forçado são: serviços (excluindo trabalho doméstico), manufatura, construção, agricultura (excluindo pesca) e trabalho doméstico.
  • As pessoas trabalhadoras migrantes são particularmente vulneráveis ao trabalho forçado.
  • A região da Ásia e do Pacífico tem o maior número de pessoas em situação de trabalho forçado (15,1 milhões) e os Estados Árabes a maior prevalência (5,3 por mil pessoas).
  • Enfrentar os déficits de trabalho decente na economia informal, como parte de esforços mais amplos para a formalização econômica, é uma prioridade para o progresso contra o trabalho forçado.
  • Para mais dados e estatísticas globais, consulte o site global da OIT.[7]

Panorama brasileiro

  • Entre 1995 e 2020, mais de 55 mil pessoas foram resgatadas de condições de trabalho análogas à escravidão no Brasil, segundo o Radar da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), vinculada à Secretaria Especial de Previdência e Trabalho (SEPRT) do Ministério da Economia.
  • As trabalhadoras e os trabalhadores resgatados são, em sua maioria, migrantes internos ou externos, que deixaram suas casas para a região de expansão agropecuária ou para grandes centros urbanos, em busca de novas oportunidades ou atraídos por falsas promessas.
  • A maioria dos trabalhadores resgatados são homens, têm entre 18 e 44 anos de idade e 33% são analfabetos.
  • Os dez municípios com maior número de casos de trabalho escravo do Brasil estão na Amazônia, sendo oito deles no Pará.
  • Tradicionalmente, a pecuária bovina é o setor com mais casos no país. No entanto, há cerca de dez anos intensificaram-se as operações de fiscalização em centros urbanos, até que em 2013, pela primeira vez, a maioria dos casos ocorreu em ambiente urbano, principalmente em setores como a construção civil e o de confecções.[7]

Dados e perfil dos trabalhadores resgatados no Brasil

Segundo o Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas – SmartLab, foram encontradas, entre 1995 e 2022, 60.251 pessoas em condições de trabalho análogas a de escravo no território brasileiro. Destas, mais da metades estão envolvidas no setor agropecuário, pelo menos 62% são trabalhadores agropecuários em geral, 64% são pardos ou pretos, e 62% são analfabetos ou possuem escolaridade apenas até o 5º ano do ensino fundamental. Também são em maioria homens e têm entre 18 a 34 anos. A média anual de trabalhadores regatados até 2022 é de 2.063,3.[14]

Casos recentes no Brasil

De janeiro a março de 2023, o Brasil já teve 918 trabalhadores resgatados. O número é um recorde para um primeiro trimestre anual, segundo o Ministério Público do Trabalho.[15]

Vinícolas do Rio grande do Sul

Dentre estes casos, destaca-se uma operação conjunta da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) com o Ministério Público do Trabalho (MPT-RS), a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal que resgatou trabalhadores em situação análoga à escravidão que atuavam na colheita da uva e no abate de frangos em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. Caso foi denunciado por um grupo de trabalhadores que conseguiu fugir do esquema e procurar a PRF em Porto Alegre.[16]

Segundo o MPT-RS, cerca de 215 homens foram encontradas em más condições de alojamento. Já a PRF calculou em 150 o número de pessoas resgatadas. Eles trabalhavam para uma empresa que fornecia mão de obra para grandes vinícolas da região, que não tiveram os nomes divulgados pelos órgãos de inspeção.

De acordo com relato aos policiais, os trabalhadores foram cooptados por aliciadores de mão de obra, conhecidos como gatos, na Bahia e trazidos para a Serra Gaúcha para trabalharem para uma empresa terceirizada que presta serviços a uma vinícola.

Os agentes fizeram buscas em galpão, na Rua Fortunato João Rizzardo, no bairro Borgo, onde os trabalhadores estavam alojados. A força-tarefa constatou precariedade nas acomodações, com pouquíssimo espaço para acomodar muitos trabalhadores ao mesmo tempo. Também há relato de muita sujeira, desordem e mau cheiro.

Segundo os trabalhadores, eles trabalhavam diariamente, das 5h às 20h, com folgas somente aos sábados. Isso representa uma absurda jornada de 15 horas de trabalho. Também denunciaram que representantes da empresa ofereciam a eles comida estragada.

Os trabalhadores também informaram que só podiam comprar produtos em um mercadinho em frente à Igreja Nossa Senhora do Carmo, com preços superfaturados e que o valor gasto era descontado no salário. Desta forma, eles acabavam o mês devendo, pois o consumo superava o valor da remuneração. E que eram impedidos de sair do local e que, se quisessem sair teriam que pagar a suposta “dívida”. Além disso, os patrões ameaçariam os familiares, que vivem no estado nordestino.

Fazenda de arroz em Uruguaiana (RS)

Uma outra operação realizada em 10 de março de 2023 resgatou 82 em situação semelhante à escravidão em duas fazendas de arroz no interior do município de Uruguaiana, na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. A operação foi realizada em conjunto pela Polícia Federal (PF), Ministério Público do Trabalho e a Gerência Regional do Trabalho.[17]

Conforme a PF, os resgatados são todos homens, sendo 11 deles eram adolescentes, com idade entre 14 e 17 anos. A operação foi realizada nas estâncias Santa Adelaide e São Joaquim.

O número oficial de resgatados inicialmente era de 56 pessoas. Porém, foi atualizado mais tarde para 82, após cruzamento de dados das variadas equipes de resgate que participaram da operação.

Eles trabalhavam fazendo o corte manual do arroz e a aplicação de agrotóxico. Segundo os órgãos de fiscalização, os resgatados não utilizavam equipamentos de proteção e caminhavam à exaustão antes de chegarem ao local em que desempenhavam as atividades.

A comida e as ferramentas de trabalho eram por conta dos empregados. Se algum deles adoecesse, teria remuneração descontada, segundo apurado pela fiscalização. Conforme os relatos, um dos adolescentes sofreu um acidente com um facão e ficou sem movimentos de dois dedos do pé.

Nova Iguaçu (RJ)

Um homem de 51 anos também foi resgatado em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, no dia 27 de março de 2023 , em condições de trabalho degradante em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. De acordo com a prefeitura da cidade, agentes da Guarda Ambiental Municipal (GAM) foram verificar uma denúncia de criação irregular de suínos e encontraram o trabalhador em situação subumana.[18]

“Segundo a própria vítima, o proprietário do terreno e dos animais lhe ofereceu trabalho em troca de abrigo. No entanto, Geovani Dias Cardoso, de 51 anos, vivia em condições precárias de higiene e se alimentava da mesma lavagem servida aos porcos havia mais de um ano”, informou a prefeitura de Nova Iguaçu.

Além da situação de trabalho análoga à escravidão, os agentes da GAM encontraram outras irregularidades: abate ilegal dos animais, dispersão de vísceras na margem de um rio, contaminação do solo por vermes e comida em estado de putrefação. O local foi interditado nesta terça-feira (28).

O caso foi registrado na 58ª Delegacia de Polícia (DP) de Posse. Além de trabalho análogo à escravidão, o proprietário do local pode ser investigado por crimes ambientais, atividade potencialmente poluidora e maus-tratos de animais.

De acordo com a nota da prefeitura, a Secretaria Municipal de Assistência Social fez o acolhimento da vítima e tenta localizar a família.

Como denunciar

Você pode realizar uma denúncia de trabalho escravo através do portal telefônico do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) – Disque 100.

A Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério da Economia (Detrae) também criou um outro canal de denúncia que você pode acessar aqui.

O Ministério Público do Trabalho também recebe denúncias via prédios da procuradoria e por meio dos sites das procuradorias regionais. O MPT possui ainda um aplicativo para denúncias, MPT Pardal, que você pode encontrar disponível para Android e iOS.


Referências:

  1. OIT, C029 – Trabalho Forçado ou Obrigatório.
  2. CONGRESSO NACIONAL, DECRETO LEGISLATIVO Nº 24, DE 1956 – Publicação Original.
  3. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, LEI No 10.803, DE 11 DE DEZEMBRO DE 2003.
  4. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica do Brasil. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006.
  5. ALFAIA, Lilian; FLEURY, Sonia. Elos que libertam: redes de políticas para erradicação do trabalho escravo contemporâneo no Brasil. O&S – Salvador, v. 21, n. 69, p. 255-274 – Abril/Junho 2014.
  6. BRASIL, Ministério do Trabalho. Resultados da fiscalização para erradicação do trabalho escravo de 1995 a 2010. Dez. 2010.
  7. Ir para:
  8. 7,0 7,1 7,2 OIT BR, Trabalho Forçado.
  9. Escravo nem pensar! – O trabalho escravo no Brasil.
  10. METRÓPOLES. Conheça o vereador que pediu para vinícolas “não contratarem baianos”. 2023.
  11. ____. 2003a [1992]. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: ed 34.
  12. In: FILGUEIRAS, Vitor Araújo. Terceirização e trabalho análogo ao escravo: coincidência? Repórter Brasil, 2014.
  13. PENNA, Camila; LOPES, Ana. Branquitude e trabalho escravo na Serra Gaúcha. Porto Alegre: Sopas, Ibirapitanga, 2023. (Série Futuros Alimentares Sustentáveis).
  14. SMARTLAB, Perfil dos casos de trabalho escravo.
  15. AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS, Brasil bate recorde de trabalho escravo e deputados sugerem propostas, força-tarefa e até CPI.
  16. BRASIL DE FATO, Operação resgata pessoas de trabalho análogo à escravidão durante colheita da uva no RS.
  17. G1, Operação resgata pessoas em condição semelhante à escravidão em fazendas de arroz no RS, diz PF.
  18. AGÊNCIA BRASIL, Homem é resgatado de trabalho análogo à escravidão em Nova Iguaçu.
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