Um mapa da devastação do Trabalho no Brasil

Na estreia do ciclo de diálogos de Outras Palavras, diagnóstico da crise: explosão da informalidade, alta rotatividade, desalento e desemprego evidenciam a precarização da vida. Uma esquerda voltada ao passado perderá o bonde da História

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A gravíssima crise do trabalho que o Brasil atravessa não será compreendida apenas com os números oficiais sobre o desemprego. Isoladamente, eles se mantêm estáveis, flutuando em torno de 12,7 milhões de pessoas. Mas, fora dessas estatísticas, está a realidade desoladora: mais de 31 milhões de pessoas poderiam estar inseridas no mercado de trabalho, mas estão subutilizadas – seja porque desempenham tarefas de cuidado, estão enfermas ou desistiram de procurar emprego. O fato é que emerge, nos últimos anos, um oceano de pessoas que estão na periferia do sistema econômico: os que estão na informalidade, aqueles que trabalham por conta própria, os que enfrentam elevada rotatividade (mesmo sendo assalariados) e os que amargam o desemprego prolongado, por mais de seis meses. Para se ter ideia, em 2013, apenas 57,3% das pessoas em idade de trabalhar estavam ocupadas; com a pandemia, chegamos ao catastrófico patamar de 47,9%, segundos dados Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada pelo IBGE em agosto. Ou seja: mais da metade das pessoas estão de fora da força de trabalho.

Essa detalhada radiografia da devastação, que se aprofunda nos últimos anos, foi exposta pela economista Marilane Teixeira, na estreia do ciclo de debates “O Futuro do Trabalho no Brasil”, organizado por Outras Palavras com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo. Pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT/IE), da Unicamp, ela analisa: o mercado se tornou incapaz de gerar postos de trabalhos com proteção, certo grau de qualificação e salários decentes, alterando o perfil de ocupação no país – o que tem levado à explosão da informalidade.

Com o aumento da terceirização na década de 1990, as mudanças tecnológicas no mundo do trabalho, a regressão produtiva do país e o desmantelamento das políticas públicas de seguridade social, o trabalho com carteira assinada declinou – e já não corresponde, majoritariamente, a quem está no setor industrial. Hoje, as cinco ocupações que mais empregam com carteira são: condutores de caminhões, balconistas, escriturários, guardas de segurança, porteiros e zeladores.

Já entre homens que trabalham por conta própria, as cinco principais ocupações são condutor autônomo, comerciante de loja, pedreiro, agricultor e condutor de motocicletas; entre as mulheres, são serviços como comerciantes de lojas, vendedoras a domicílios, especialistas em tratamento de beleza, cabeleireiras e costureiras – isso sem falar no trabalho doméstico, que gera renda a cerca de seis milhões de pessoas.

Esse chocante novo perfil da classe trabalhadora brasileira, característica das crises econômicas agudas, retrata o avanço da precarização da vida — e tem recorte de gênero e raça. O nível de ocupação das mulheres está em 39,4%, segundo a Pnad — um dos menores nas últimas duas décadas, sublinha a economista. Antes da pandemia, 67 milhões de pessoas estavam de fora da força de trabalho – dois terços, eram mulheres. Hoje, chegamos a 77,7 milhões. Cerca de 45% das mulheres negras que poderiam trabalhar, mas estão sem empregos, são de famílias com renda per capita domiciliar de meio salário-mínimo.

“Ou seja: o trabalho produtivo, a atividade econômica e de mercado, também se nutre do trabalho reprodutivo, que é o trabalho doméstico não remunerado. E essa relação determina, inclusive, formas de inserção de homens e mulheres de forma distinta no mercado de trabalho”, aponta a economista.

Uma esquerda desconectada do espírito do tempo

O trabalho cada vez menos assalariado e protegido, a estagnação da renda per capita e o desmonte da estrutura corporativa das relações de trabalho, fruto de um capitalismo em decomposição. Esses foram alguns dos diagnósticos sobre a nova configuração do trabalho no Brasil, feito pelo economista Márcio Pochmann, professor da Unicamp e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2007 e 2012), que aponta: já não se trata mais de uma época de mudanças, mas de uma “mudança de época”. Segundo ele, na década de 1890, o Brasil passou de um modelo escravista para o trabalho livre e, na de 1930, uma sociedade agrária deu lugar a uma urbana e industrial, o período que vivemos, início dos anos 2020, representa uma terceira fase do trabalho no Brasil — e que a ultradireita, as igrejas evangélicas e até o crime organizados estão à frente do campo progressista no oferecimento de perspectivas à massa sobrante.

“Hoje, acreditamos que é possível retomar a velha industrialização, que degrada o meio ambiente. Que é possível retomar a estrutura corporativa das relações de trabalho, desejando que sindicatos financiados da maneira com a qual sempre criticamos. Ou seja, estamos, de alguma forma, lutando para uma continuidade de uma República corrupta e empobrecida”, aponta o economista. “As mudanças são pouco compreendidas pelo campo da esquerda e nossa capacidade de liderar essa transição tem sido pequena. A saída não é a manutenção de uma época, mas iniciar outra. Precisamos de uma visão do que seria um pós-capitalismo no Brasil”.

Danilo Pássaro, morador da Brasilândia, periferia de São Paulo, e um dos organizadores do movimento Somos Democracia, trabalha como motorista de aplicativo e estuda História na USP. Ele conta: a cada dia, recebe menos chamadas para corridas em aplicativos, como Uber e 99Taxi. A promessa das corporações-aplicativo, de mero “complemento de renda”, passou a ser a única alternativa de sobrevivência para milhões de trabalhadores, frente a crise do trabalho. Como então, recuperar empregos, com salários dignos e proteção, em um contexto em que governos, como de Temer e Bolsonaro, pedem cinicamente que população escolha entre direitos ou emprego?

“Quando a gente olhar para os livros de história, vai ter o pós-pandemia – e vai depender de como nós vamos escrevê-lo hoje, das nossas lutas nas ruas”, analisa Pássaro. “E a primeira coisa que precisamos desmistificar é a falsa ideia de que não tem dinheiro para garantir direitos e solidariedade. Emprego não é favor do mercado, é direito do brasileiro – e, para isso, é preciso uma reorganização e fortalecimento das lutas populares”.

“Qual o modo de produção que vai girar o excedente?”, questiona a economista Marilane Teixeira. “Diariamente, somos bombardeados com toneladas de coisas inúteis que consomem recursos e tecnologias, que servem apenas para o processo de acumulação e devastação da Natureza. Temos que colocar o bem-estar no centro: ter tempo para o lazer, para o estudo, para a mobilidade. O eixo da economia deve ser a sustentabilidade da vida em todas as suas perspectivas. É necessária uma ruptura nesse padrão de acumulação. Nem tudo deve virar mercadoria”.

Renda Básica, uma polêmica

No debate, quando questionado sobre a possibilidade de implantação de políticas pós-capitalistas relacionadas ao trabalho e a redistribuição de renda, como a Renda Básica, Pochmann destacou que, apesar de defender ações nesta direção, a distribuição da renda gerada pelo Estado representa a manutenção do capitalismo e de um sistema falido: permite que trabalhadores e trabalhadoras sobrevivam, mas não que tenham uma vida decente. Será preciso pensar outros caminhos, que abale as estruturas da produção e reprodução econômica.

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