Trabalho: a velha ladainha e a nova agenda

Mal começa o ano eleitoral, voltam os discursos que pregam “reduzir custos para garantir empregos”. Até a esquerda às vezes cede. Para fugir da regressão em que mergulhou, país precisa garantir, no mínimo, ocupações dignas e com direitos

Início da concretagem da cúpula do Senado Federal em 1958. Foto: Marcel Gautherot
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Nas últimas décadas, ao redor do planeta, empresas e seus representantes têm anunciado transformações no mundo do trabalho que obrigariam trabalhadores e instituições a se adaptar, caso contrário teriam desemprego e informalidade. Trata-se de narrativas, que têm sido repetidas como ondas, para divulgar grandes “novidades” e suas supostas consequências, a exemplo de “novas” empresas e formas de trabalho que exigiriam mudanças na legislação, ou do “empreendedorismo” como solução para o emprego1.

A primeira contradição dessas narrativas do “novo” é que seus argumentos já circulam há décadas, mas elas continuam sendo divulgadas como grandes “novidades”, com ou sem verniz. Neste ano novo, já em seus primeiros dias, continuamos a ser bombardeados com essas velhas novidades. Em entrevista ao jornal O Globo, um empresário profetizou que “nossos filhos vão trabalhar seis meses em cada lugar. Estamos entrando na era do pós-emprego, do trabalho por projetos”2. Esse presságio é repetido no Brasil há pelo menos 3 décadas, quando já era uma “novidade” importada de outros países (ver “A morte do emprego”, José Pastore, Jornal da Tarde, 15 set. 1994).

A profecia de Pastore e de tantos outros não se consumou, e nos anos 2000 houve expansão do emprego formal (com direitos) e elevação dos salários. A “morte do emprego” (enquanto relação minimante civilizada) é um projeto político e não tem nada de inevitável. Assim, e justamente porque sobrevivem alguns limites à exploração do trabalho, apesar de toda precarização, empresas e seus representantes continuam divulgando que “é tudo novo”, de novo, mais uma vez.

Aqueles que têm alguma simpatia pelas pessoas que vivem do trabalho tendem a perceber as trágicas consequências das narrativas das “novidades”. Contudo, parte do sucesso dessa retórica (no que concerne aos objetivos empresariais) decorre da sua assimilação por parcelas das instituições e dos próprios trabalhadores. Mesmo quando há críticas à precarização, é comum que as premissas dos discursos sejam aceitas, criando uma armadilha, pois o campo do trabalho fica na defensiva, e o debate circunscrito aos interesses empresariais. Desse modo, as proposições em disputa são continuamente rebaixadas em relação às condições de vida e trabalho, e se aproximam, cada vez mais, do extremismo sonhado pela utopia do livre mercado.

Exemplo dessa dinâmica precarizante tem ocorrido com a ideia de que o custo do trabalho (salários, direitos) prejudica o emprego e a formalização. Essa é, provavelmente, a mais velha das “novidades”, mas vem sendo constantemente requentada nos últimos 40 anos. A sua lógica é simples, “trabalhador, não reclame, senão será pior”, e contamina grandes parcelas da sociedade como senso comum. Em 2012, no Brasil, em plena expansão do emprego formal sem reforma da CLT, um dos principais sindicatos do país elaborou um projeto de lei para permitir “flexibilizar” (em português, reduzir) direitos, sob o argumento de que a “lei tolhe a autonomia dos trabalhadores e empresários”3. Por essas e outras não foi tão surpreendente que, mesmo completamente desmentidas pela história recente do país, as “novidades” que justificaram a chamada “reforma trabalhista” de 2017 encontraram pouca resistência.

Passados anos dessa reforma, e já sentidas suas consequências desastrosas4, suas premissas continuam contaminando o campo que o senso comum considera como esquerda, mas que mesmo não sendo, tende a delimitar o “polo” progressista dos debates5. Em texto publicado em plena pandemia por ex-ministro dos governos do PT, um dos principais quadros do partido, ficamos sabendo que “o mundo do trabalho mudou e continua mudando”, mas que “cobramos muitos encargos sobre salários, elevando o custo para as empresas sem que isso se traduza em renda disponível imediata ao trabalhador”, incluindo “penduricalhos que (…) acabam elevando o custo do trabalho formal”, resultando em alta informalidade e pejotização6.

A lógica é a mesma da velha “novidade”: tirar custo de empresa é remédio para o mercado de trabalho, no caso, para a formalização. Se até a “esquerda” admite esse raciocínio, é natural que o campo empresarial extremo, nesta primeira semana de 2022 representado no editorial de O Globo7, surfe e dobre a aposta: “mesmo depois da reforma de 2017, elas continuam bizantinas e garantem direitos a apenas 59% da força de trabalho ocupada”. A reforma foi feita exatamente como queriam os empresários, fez centenas de alterações na legislação, o custo do trabalho caiu, suas promessas de ampliação do emprego e da formalização não foram cumpridas, mas o extremismo culpa o paciente que não melhora, não o remédio que não funciona. Pior, ignora que o remédio prescrito acentua o problema, pois reduz a demanda efetiva da economia e incentiva práticas empresariais ilegais (nome correto para informalidade).

Fora da utopia do livre mercado, o campo que se pretende civilizatório precisa entender que a formalização, assim como a dinâmica do emprego, é um fenômeno político. Formalizar, por definição, traz custos para o empresário, portanto, contratar ilegalmente é sempre mais barato. Continuar a defender mais redução de custos do trabalho para aumentar o emprego formal é equívoco refutado (de novo!) empiricamente8. Formalização requer pressão e imposição sobre os empresários, de preferência pela expansão conjugada da demanda por força de trabalho e da fiscalização. São esses fatores que fundamentalmente explicam a efetividade da lei, seja ela mais protetiva ou precária. Ademais, não se pode naturalizar o descumprimento da lei justamente por aqueles que hegemonizam a ordem: a ilegalidade empresarial deve ser denunciada e punida, não aceita como “consequência de custos”. Por fim, a ilegalidade prejudica quem segue a lei e alimenta a concorrência espúria, enfraquecendo a inovação, a produtividade e o desenvolvimento.

Sair do desastre em que nos encontramos não será fácil, e uma das pré-condições para isso é a redefinição dos termos do debate. 1) O direito social tem que voltar a ser justificativa para o próprio capitalismo, e recuperado na perspectiva de sua ampliação. Para isso, é urgente superar falsas polarizações, como considerar não ter direito um extremo (este um verdadeiro polo) e ter emprego formal o outro. O polo oposto a não ter direitos é democratizar as empresas, ter liberdade para participar e decidir coletivamente sobre o processo de produção e trabalho. Direito trabalhista tem que ser encarado como o mínimo que ele é! 2) Direitos sociais têm que ser discutidos como funcionais à ampliação do emprego, uma variável a ser relacionada a outras políticas para a expansão da economia (investimentos públicos, etc.). Em suma, direito social deve ser um pré-requisito para qualquer debate em nossa sociedade que aspira ser civilizada.

Com a pandemia, há sinais de mudanças nos debates e nas políticas públicas, ainda que limitadas, em muitos países. É urgente mudar o rumo da prosa por aqui. Fora das extremas direitas, sinalizações das duas candidaturas presidenciais mais fortes contra a reforma trabalhista são positivas, mas ainda muito pouco. Também os movimentos sociais e as instituições têm que ser propositivos e tensionar o debate no conteúdo, redefinindo as fronteiras da disputa. O campo do trabalho precisa voltar a ser aquele que traz as novidades.


1 Essas narrativas são o objeto de análise do livro “É tudo novo”, de novo (Boitempo, 2021). Nele constam as fontes, indicadores e informações completas do presente texto.

2 https://oglobo.globo.com/economia/negocios/estamos-entrando-na-era-do-pos-emprego-diz-executivo-da-anima-um-dos-maiores-grupos-privados-de-educacao-1-25338617

3 Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, “ACE”, Tribuna Metalúrgica, São Bernardo do Campo, 2012, p.

4 Ver, por exemplo: https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2020/12/08/desempregado-de-carteira-assinada-e-o-fruto-da-flexibilizacao-trabalhista.htm

5 https://jornalggn.com.br/artigos/a-falsa-polarizacao-e-a-definicao-de-esquerda-e-direita-por-vitor-filgueiras-e-savio-cavalcante/

6 https://www1.folha.uol.com.br/colunas/nelson-barbosa/2020/07/desoneracao-da-folha-de-pagamento.shtml

7 https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/e-preciso-um-plano-para-reduzir-economia-informal.html

8 É possível discutir a melhor forma de financiar a Previdência, por exemplo, para pegar mais pesado com quem emprega menos. Mas não dá para estabelecer a relação causal entre reduzir custo com ampliar emprego e formalização.

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4 comentários para "Trabalho: a velha ladainha e a nova agenda"

  1. José Mario Ferraz disse:

    Como dizia Marx, os intelectuais se limitam apenas a analisar o mundo. Esta análise do professor Vítor, por exemplo, está correta quanto à indignidade em que vive quem trabalha e produz. Mas, se o povo que tem o poder de promover mudança foi convertido pelo pão e circo em aliado de quem não quer mudança, quem é que vai mudar alguma coisa? O foco deve ser a substituição da cultura do capitalismo brutal por algo socialmente mais refinado.

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