Trabalho: Os nomes (e rumos) que ainda não temos

Projeto para uma pesquisa-ação. O controle do capital sobre corpos e mentes nunca foi tão opressor, mas as velhas formas de enfrentar este domínio perderam eficácia. De que forma a tradição operaísta e diálogos nos novos mundos do trabalho podem apontar caminhos?

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Por Stefano Rota*

A fotografia que abre este artigo foi tirada quando dum jantar na Casa Branca, onde foram convidados todos – ou quase todos – os CEOs das Big Techs estadounidenses. Representa, de forma inequívoca, o que estamos a vivenciar há mais ou menos duas décadas. Os poderes político, econômico, financeiro e informativo estão cada vez mais interligados, de uma forma sem precedentes na longa história do capitalismo.

Aqueles homens são dos mais poderosos do mundo. As riquezas que detêm superam os PIBs conjuntos de várias nações do espaço chamado de tricontinental. E não param de crescer, pelo contrário. Da mesma maneira, não pára de crescer a influência que eles exercem, direta ou indiretamente, sobre os governos e as populações de uma ampla parte do mundo.

Os instrumentos materiais e imateriais que detêm atuam no interior da vida de uma parte muito ampla da população mundial. A interligação que aqueles poderes produzem vigia cada aspecto que compõe as nossas vidas – desde as microrrelações quotidianas entre indivíduos, até as que se dão entre as múltiplas componentes de cada um de nós, inclusive os sonhos.

Não é novidade, obviamente. Existe uma literatura amplissima sobre o novo rumo do capitalismo na era digital. Uma era que – como sugerem alguns estudiosos1 – já vai para além do que, há pelo menos quatro décadas, designa-se por neoliberalismo.

Como isso tudo se tornou possível – e como se chegou ao que assume os traços de uma mutação antropológica, que diz respeito a todos nós e que parece não termos maneira de inverter – tem sido analisado pormenorizadamente por abordagens diferentes.

O termo mutação antropológica não parece exagerado. O capitalismo das plataformas está moldando o ser humano por formas desconhecidas há vinte anos. As constantes conexões com máquinas produtoras de informação – elaboradas por meio da “mineração” nos nossos corpos -, às quais todos nós pertencemos, produzem um novo ente, cuja subjetividade e identidade não podem prescindir da ligação estreita entre homem e máquina2. As peculiaridades do ente homem-máquina, no que diz respeito às funções relacionais primárias, resultam significadamente mudadas. A produção e função da linguagem, a abordagem aos saberes, a formação e gestão das relações e da afetividade, o sentido da criação artística, passam por canais e ferramentas que atuam numa “colonização epistêmica”. As consequências estão inscritas no que Dona Haraway definiu o processo de constituição da subjectividade no cyborg3.

O predomínio absoluto do digital na configuração das “formas de vida”, mudou, irreversivelmente, a velocidade imposta aos tempos das relações e do desenvolvimento dos processos, de qualquer natureza que sejam. Tudo colapsa num eterno presente. É ai onde se formam as identidades – sempre múltiplas e em transformação – e com essas, as relações e sobreposições entre as esferas do online e do offline dos sujeitos normatizados pela “maquinaria de ordinalização”4. A combinação de tecnologia, conhecimentos, organização e informação traduz-se numa planificação minuciosa das nossas vidas, como nunca foi experimentado antes. O terreno para a extração, produção e gestão das informações – a sua transformação em informação “abstrata” – é a vida em si, em todos os seus aspectos.

Nesse cenário – que não tem nada de distópico, pois é já o nosso quotidiano – o que temos à nossa frente é a questão que marca a história do capitalismo e das suas estruturas de governação desde do início. De que ferramentas precisamos para captar os pormenores, os pontos de fraqueza e as fissuras que – do ponto de vista de quem se opõe às condições de vidas atuais – permitam levar a luta para o interior da “caixa preta”? Tal como sempre foi no passado, trata-se dum desafio muito complexo.

Um desafio que só pode passar por uma pesquisa ativista, que deve ter como ponto central da análise a constituição de novas subjetividades. Isso porque – como sempre foi no passado – a subjetividade é a consequência das relações entre as forças que definem um dado contexto5. Precisamos, portanto, investigar como nos constituimos no cenário da plataformização da sociedade, entre “técnicas de domínio” e “técnicas do si”. Uma pesquisa desta natureza alcança o seu objetivo se assentar teórica e praticamente na co-pesquisa (conricerca). Romano Alquati cunhou esse termo nos anos 19606, quando de suas investigações acerca dos “operários-massa” – os operários da fábrica fordista – da Fiat, em Turim. A ideia central era produzir conhecimento não acerca deles, mas com eles e para eles. Cada participante deixava de ser um “objeto de estudo”, para se tornar um co-pesquisador. O trabalho ficava por ali, não ia parar na academia. Continuava ali o seu percurso de valorização de conhecimentos que se transformavam logo em ferramenta de luta quotidiana.

Alquati e os outros operaístas compreenderam que o cenário tinha mudado drasticamente em relação ao primeiros anos do pós-guerra. Era preciso atualizar teoria, prática política, relações, linguagem, conforme a nova subjectividade que o “operário-massa” – imigrantes do Sul da Itália – exprimia. Isso para poderem desafiar o capital no seu próprio terreno, e antecipá-lo. Essa foi a grande lição e o legado que o operaísmo nos deixou. Cabe a nós dar continuidade a esse trabalho.

Trata-se – como já foi dito – de um trabalho pormenorizado. Implica, para nós, uma pesquisa focada nas características que parecem mais relevantes, no que diz respeito às relações que estão na base do funcionamento das plataformas, e que estas, por sua vez, reproduzem e multiplicam. São as relações entre indivíduos e coletividades, nos domínios do corpo social, econômico e político. São também relações que envolvem o indivíduo consigo mesmo, a percepção do seu ser, as múltiplas identidades que constrói no dia-a-dia, os objetivos e as prioridades que escolhe.

Uma pesquisa deste gênero não é simples, tampouco rápida. A dificuldade maior será, talvez, abandonarmos os nomes com que estamos habituados a lidar. Deixá-los significa desprendermo-nos dos laços que nos ligam a uma época onde aqueles nomes representavam significantes úteis, vivos, abrangentes. Deixá-los significa sair de uma comfort zone onde tudo estava bem colocado em lugares conhecidos, prestes a ser inquiridos pela ferramenta ideológica e semântica habitual e eficaz que outrora serviam.

Deixar aqueles nomes significa, em suma, não prestar ouvidos às sereias historicistas que nos sugerem tomar como ponto de partida os significados de nomes e observar de que maneira a história os modula e os coloca em relação entre si.

Do que precisamos, portanto, é de novos nomes, que ainda não temos. Nomes que nos facilitem a compreensão dos processos de constituição das subjetividades na era do digital. Só a partir dai poderia ser possível recostruir uma articulação de microestratégias que nos permitam reconquistar espaços de atuação no terreno que a nova forma do capitalismo nos impõe.

Será, por exemplo, que nomes como emprego precário – contraposto a uma estabilidade cada vez mais anacrônica e pouco desejada –, ou futuro – como projeção dum presente que permita vislumbrar um percurso baseado na confiança num ciclo que envolve as diferentes esferas pessoais – nos permitem ainda captar as especificidades que – sobretudo entre os mais jovens – definem alguns dos elementos da produção de subjetividades? Qual é, hoje, o espaço físico e mental para termos como solidariedade, comum, proximidade, num contexto dominado pela centralidade do indivíduo, das relações virtuais, do empobrecimento de contactos físicos?

Captar os “comos” e os “ondes” se desdobram formas de valorização, às quais os sujeitos dão relevância, constitui o papel fundamental que temos à nossa frente. É a condiçaõ de possibilidade para voltarmos a exercer uma força de reivindicação e produção de espaços de vida subtraídos à “maquinaria de ordinalização” do capital.

Neste sentido, consideremos a metrópole – mais do que o lugar de trabalho – o contexto de referência prioritário para encetar uma análise de longo prazo. Isso não significa que interesse apenas o que acontece ou aparece naquele espaço, pelo contrário. A metrópole é, de fato, onde se mostram com mais clareza as contradições inerentes à ordem global de valorização e das suas cadeias; isto é, muito mais para além do seu perímetro sócio-territorial.

Seguindo a linha traçada, há doze anos, por Mezzadra e Neilson em Border as a Method7, a referência à metrópole na sua interligação – e sobreposição – com os territórios “periféricos” evidencia a relação entre digitalização e multiplicação do trabalho.

Importa salientar que divisão e multiplicação do trabalho não se opõem – ainda que soem como antagônicas. São duas faces da mesma medalha: o processo de valorização do capital. Todas as inovações tecnológicas – desde a altura de Babbage até hoje – sempre foram focadas na divisão do trabalho, em função da procura de uma crescente racionalização dos processos produtivos. Matteo Pasquinelli esclarece esse ponto de forma brilhante no seu último livro8.

A digitalização e plataformização da economia segue o mesmo percurso, puxando-o a níveis antes inimagináveis. Isso ocorre em dois sentidos.

O primeiro tem a ver com o trabalho em si: os processos produtivos vêem uma multiplicação das funções e dos dispositivos que os normatizam. Alastrando-se para a inteira superfície global, aqueles processos criam diferentes formas de “cidadanias laborais”, diferentes níveis de inclusão, conforme as “fronteiras” que os constituem. Essas produzem áreas que atravessam os continentes e os paises, criando continuidade entre espaços geograficamente longínquos. São também áreas imateriais, correspondentes a mercados do trabalho que se colocam um ao lado de outro, até nas mesmas empresas, sem que haja possibilidade de passagem entre eles. Aqueles mercados baseiam-se em distinções entre etnias, idades, gêneros, e produzem hierarquias e construções identitárias, geridas por específicas políticas.

O segundo sentido diz respeito às vidas em si. O trabalho multiplica-se enquanto a vida inteira é tempo e espaço de produção. Qualquer atividade que nos conecte às redes é uma atividade produtora de valor, os dados que todos geramos sem interrupção. O sujeito plataformizado, portanto, não passa de un produtor total. A sua “ilha de edição” obriga-o a uma conexão contínua, onde entram em jogo técnicas de divisão por camadas e escalões de contatos, e de multiplicação, por meio de “máscaras” e “encenações”9. Essas – na medida em que necessitam constantemente de partilhas, likes – têm a função de reproduzir ao infinito o encadeamento de gostos, atitudes, preferências.

Em suma, na medida em que as nossa vidas, os nossos trabalhos, tornam-se objeto de divisão, produz-se uma multiplicação das tarefas através das quais produzimos quotas variáveis do valor complexamente extraido da totalidade dos processos que nos incluem.

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Dois exemplos contidos em pesquisas levadas a cabo nos últimos dois anos permitem-nos pôr em evidência alguns pontos úteis para uma melhor explicação.

Bhavin é um motorista TVDE, a entidade operadora em que a Uber se apoia para operar em Lisboa. A sua história de migração desdobra-se em diferentes paises, da India, à Península Arábica, à Europa.

A experiência apresentada na nossa conversa condiz com um padrão de vivência – comum a muitos migrantes, sobretudo os recém-chegados – designável por exploração e auto-exploração. Um trabalho sem horário, dias e noites a fio, voltado únicamente à maximização dos rendimentos, e com condições habitacionais aceitáveis só pela necessidade de reduzir ao mínimo indispensável as despesas. Não fala português, porque não precisa; a app trata de tudo o que Bhavin necessita para cumprir as tarefas de motorista. As sua preocupações e os seus projetos, não têm nada a ver com Lisboa. Estão a milhares de quilometros de distância – no sul da Índia, de onde ele é originário.

A sua vida está vinculada à sua habilidade – muito elevada – de interagir com as apps, que lhe permitem de trabalhar ora num âmbito, ora num outro. Na Índia trabalhava – por mais ou menos um dolar por hora – por uma agência internacional de “limpeza” de uns dos sites mais vulgares das vig techs. Chegado a Lisboa, Bhavin conseguiu levar consigo o mesmo emprego, utilizando a lingua hindi (um exemplo do fenômeno chamado de migração das infraestruturas por Xiang e Lindquist10). Não obstante uma remuneração horária mais digna, aquele emprego não lhe permitia levar a cabo o seu projeto, face aos custos mais elevado da vida em Lisboa. Dai, a escolha, junto com um seu amigo, de alugarem um carro da TVDE e começar a vida de motorista.

Nos períodos de elevada presença turística, o carro nunca pára. Bhavin alterna-se na condução do automóvel com o seu amigo dia e noite. À pergunta se achava sustentável aquela condição laboral – e, em geral, de vida – a médio-longo prazo, a resposta foi sem hesitação “não”. Ao mesmo tempo, porém, não conseguia ver como poderia mudar algo naquele tipo de trabalho. A razão que deu foi muito clara e não deixou espaço para contestá-la: cada um olhava para si mesmo. “Estamos estimulados em acreditar que nós não somos trabalhadores, mas, sim, empreendedores. Temos de suportar tudo ao máximo”.

O transporte de pessoas por meio de apps pertence ao que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) clasifica como trabalho em “plataformas baseadas localmente” (Location-based platforms)11. A mesma tipologia inclui os riders que entregam comida e outros bens de bicicleta. Para esses trabalhadores, porém, a situação está em evolução, com mudanças que variam de paises a paises, de empresas a empresas.

Essa diferença tem, para Bhavin, uma razão simples. “Eles encontram-se frequentemente; conversam, trocam experiências, dicas, truques, que tornam o trabalho mais partilhado. É mais fácil serem contactados por sindicalistas, ou alguém que lhes explique os seus direitos. Nós, não: para além de uns amigos, não nos é fácil estabelecer contatos com outros motoristas ao longo do dia de trabalho. Não há locais de encontro entre nós. Essa é a minha experiência, mas eu sou estrangeiro e não falo português; não sei como é a situação para os portugueses”.

Na altura da nossa conversa, Bhavin tinha tomado a decisão de tentar entrar na Inglaterra, onde já vivem familiares e amigos, com a hipótese de arranjar emprego numa empresa que presta serviços ao Facebook. “Para além do emprego, a coisa mais importante é que ali terei um verdadeiro ambiente de referência, a coisa que aqui faz mais falta”.

O que importa salientar do testemunho do co-pesquisador é a clareza com que apresenta os vários problemas e percalços enfrentados. Desses, Bhavin evidencia as causas, geradas tanto por escolhas impostas, quanto por elementos que pertencem inteiramente à esfera da subjetivação. Em outras palavras, o que pertence às técnicas de domínio, num lado, e às técnicas do si, no outro. Daí, uma subjetividade que se constitui no espaço que, num outro artigo12, foi designado como Quarto Mundo. É o espaço onde a economia das plataformas exercem o seu poder imenso de “conduzir as vidas”, num movimento sem fim entre empregos, paises, apps. Onde, enfim, a multiplicação do trabalho é a referência direta do sujeito das plataformas.

Aqueles trabalhadores podem ser definidos precários, ou, talvez, a sua condição seja mais razoavelmente descrita como nómade? Quando as mudanças interessam não apenas à vida laboral, mas à vida em si – num continuum que prevê múltiplas migrações13, acompanhadas por apps iguais em todo o mundo – o nomadismo parece ser o nome mais adequado.

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Os segundo testemunho que se pretende apresentar está ligado à outra grande área de trabalho desempenhado nas plataformas. O mencionado relatório da OIT define-o como trabalho em modalidade remota em plataformas online.

Ângelo trabalha no âmbito da BPO (Business Process Outsourcing). Licenciado em Geografia Humana, escolheu de deixar o seu pais de origem, chegando a Lisboa em 2018. Peixe limpador do aquário: assim descreveu, de forma feliz, o seu trabalho: limpa o aquário onde todos nós – navegantes na rede – nadamos, sujando-o.

A BPO é um serviço externalizado pelas big techs. Essas precisam de atividades (serviços aos clientes, desenvolvimento tecnológico, controle sobre a violência em rede, cyber security, etc.) indispensáveis ao seu funcionamento14. As empresas às quais é externalizado o projeto/serviço –todas de grande tamanho, que operam a nível internacional – adquirem-no e gerem-no através de filiais espalhadas em paises europeus e extraeuropeus, onde o custo do trabalho é mais baixo.

Os trabalhadores das BPOs constituem uma multidão de mil nacionalidades diferentes, contratados para trabalhar na sua própria língua materna, qualquer seja o país onde se encontram. Ângelo trabalhava em Portugal, utilizando o italiano.

“Os contratos são ou temporários, de dois meses até um ano, ou permanentes. Na realidade, o sentido dado a permanente indica que os contratos não têm um prazo preestabelecido, como os precedentes, mas, sim, estão vinculados à duração do projeto”.

As atividades laborais desempenhadas nesse âmbito são inúmeras e abrangem o inteiro leque do suporte técnico que as big techs e as plataformas por elas gerenciadas precisam. Entre elas, “o content moderator controla tudo o que se passa na rede, o rater analiza quantitativa e qualitativamente os produtos comerciais, assim como são apresentados nas pesquisas, por exemplo, do Google Search. Acima deste nível operativo, colocam-se o team leader, o quality analyst e o supervisor. No topo desta pirâmide, encontra-se o project co-ordinator: ele é o sujeito que coordena mais projetos e que relaciona-se diretamente com o top management”.

As tarefas mais básicas, nomeadamente o content moderator e o rater, são as que servem principalmente para avaliar as respostas que a IA dá aos usuários que pedem informações, no que diz respeito à sua aplicação em todas as atividades de pesquisa em rede.

“A relação entre trabalhador e empresa é bastante pobre: tudo o que tem a ver com as condições laborais está delegado ao Team Leader, que funciona em interface com a direção dos Recursos Humanos. As contratações são sempre a nível individual: não existe uma contratação coletiva, que se refira, por exemplo, às condições gerais de um país”.

O trabalho em si tem ritmos intensos: “é necessário clicar na tela a cada dois minutos, para não incorrer em penalidades de quinze minutos de trabalho perdido. Isso produz um grande stress e ânsia no trabalhador. No caso se escassa satisfação das performances de um trabalhador, são frequentes as ações de mobbing, que induzem-no a deixar o emprego por iniciativa própria. Aquelas empresas, em termos gerais, não despedem, mas “acompanham” o trabalhador a tomar a decisão de ir embora”.

A subida dos custos da habitação tornou Lisboa uma cidade insustentável para quem trabalha em condições não muito favoráveis e, sobretudo para quem não é proprietário de uma casa. Por essa razão, Ângelo decidiu “migrar” rumo a um país onde as suas receitas sejam mais compatíveis com o custo da vida.

Assim como foi para Bhavin, o emprego – e a sua ferramenta material e imaterial – migrou com ele. Volta aqui, mais uma vez, a pergunta de qual seria a definição mais adequada – admitindo, sem conceder, que seja necessário achá-la – que permita às dezenas de milhares de Ângelos descreverem a relação que têm com as suas vidas de trabalhadores. O fato de eles passarem de uma tarefa para outra – content moderator, rater, quality analyst – dependendo do país onde se encontram parece confirmar o que foi dito mais acima acerca da multiplicação do trabalho induzida pelas tecnologias – e, portanto, da organização do trabalho e social – que sustentam as redes digitais.

* * *

Para concluirmos – provisoriamente – este artigo, importa salientar alguns pontos que nos parecem bastante significativos, para os quais são necessários aprofundamentos que estão fora do nosso alcance.

Estamos cada vez mais convencidos que o terreno onde temos de levar o conflito é a rede. Felizmente não é e não será o único terreno possível de conflito, pelo contrário. As lutas que atravessam o mundo afora indicam que as praças, os portos, os armazéns, as florestas, continuam sendo lugares de confrontação entre duas visões contrapostas de vida. Levar o conflito para a rede, porém, tem um sentido complementar e valorizante em relação àquelas lutas. Atacar o poder onde ele tem a maior força de produção e gestão de “informações abstrata” não pode ser uma opção. Por isso, é essencial a participação de co-pesquisadores, como os nossos dois amigos.

Foram feitas experiências para tornar a internet mais “democrática”, ou pública – como relata Tarnoff -, por meio de projetos como Mastodon ou Fediverso15. Da mesma maneira, está sendo experimentada a promoção de uma gestão cooperativa de plataformas, que favoreça um trabalho mais digno, para “co-empregados” que sejam sustentados nas suas atividades por serviços partilhados16.

Por sua vez, Nick Srnicek tinha apresentado essas oportunidades já no 2017, no seu livro Platform Capitalism, salientando, porém, alguns limites. “Se também a totalidade do seu software fosse de livre acesso, uma plataforma como Facebook manteria o peso dos dados atuais em sua posse, livre dos efeitos de rede e de recursos financeiros para derrotar qualquer cooperativa rival”. A confiança que Srnicek repõe, de outro lado, no papel do Estado para travar plataformas públicas e regulamentar as plataformas das grandes corporações, parece, porém, pouco viável, sobretudo à luz do que ocorre hoje. “De forma mais radical – escreve Srnicek – pode-se empurar para plataformas pós-capitalistas, que utilizem os dados recolhidos por essas plataformas com o fim de partilhar recursos, facilitar a participação democrática, e gerar mais desenvolvimentos tecnológicos”17.

Também Tim Berners-Lee, o criador da World Wide Web, contribuiu para este debate, salientando a necessidade de “um órgão sem fins lucrativos semelhante ao Cern (acrônimo para Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear), para impulsionar a pesquisa internacional em IA”. É preciso “resgatar a IA das mãos da big techs”, porque – escreve Berners-Lee – “em muitas plataformas, já não somos os clientes, mas sim o produto”18.

São todos elementos que podem contribuir à composição do quadro das iniciativas possíveis, embora continuem as dúvidas acerca da eficácia dessas hipóteses e da possibilidade de representarem uma alternativa realística.

Para além disso, parece-nos que no cerne da questão esteja um assunto mais problemático, mais complicado. Um assunto também difícil de ser claramente definido, pelo menos no que nos diz respeito. Por essa razão, o que se propõe é apenas a tentativa de formulá-lo sob a forma de quesito, ou pouco mais.

O sucesso das plataformas enraíza-se na capacidade peculiar do sistema geral de funcionamento do capitalismo – em qualquer altura – de se apropriar da cooperação social, o alicerce dos processos produtivos e reprodutivos. A característica do capitalismo digital, plataformizado, baseia a subsunção da cooperação social no “conectivismo”, ou seja, na prática de extrair informações – a serem transformadas em “auto-organização” do sistema cibernético19 – do homem-máquina social, constantemente conexo e produtivo. O “intelecto geral” amplia-se, em consequência de uma cooperação social que já não tem limites; a sua subsunção torna a maquinaria de ordinalização cada vez mais sofisticada.

Isso representa – parece-nos – as modalidades com que as relações sociais e as suas consequências entram e animam a “caixa preta”. Ora, o problema principal que temos à nossa frente poderia ser traduzido nos seguintes termos: como se pode intervir no sistema do conectivismo? Como subtrair à maquinaria quotas de cooperação social, de tal forma a produzirem outras conexões entre os múltiplos sujeitos que intervêm na cadeia de processamento das plataformas? Os crowdworkers, os “peixes limpadores”, os controlores, os estafetas e os motoristas, podem encontrar ligações digitais que lhes permitam de agir de forma comum, para reinvindicarem melhores condições de trabalho e não só?

Mas – puxando um pouco mais para frente as nossas expectativas – o problema poderia extender-se a um outro nível. Como promover formas de luta que envolvam, para além dos sujeitos digitalizados, todos os que operam, principal o unicamente, na esfera do analógico, ou seja, nos domínios onde hoje já se pode enxergar um nível elevado de conflitualidade? Dito de outra forma: como conectar a cooperação social do digital com a do analogico, produzindo saberes que não sejam facilmente presas da maquinaria da ordinalização e que se articulem – como força antagônica – ao longo da inteira cadeia de valorização?

As experiências acima mencionadas para tornar a internet mais democrática, pública e livre representariam com certeza um valor acrescentado nesta perspectiva. O Turkopticon mencionado por Pasquinelli, criado por “interromper a invisibilidade dos trabalhadores”20, vai também na mesma direcção.

A certeza que temos, para além disso, é que levar a luta para a “caixa preta” seja cada vez mais a condição para começarmos novamente a respirar, uma vez que, hoje em dia, “respirar é tão diffícil como conspirar”.

*Stefano Rota é pesquisador independente. Administra o blog “Transglobal”. A sua mais recente publicação coletiva é La fabbrica del soggetto. Ilva 1958-Amazon 2021 (Sensibili alle foglie, 2023). Colabora ocasionalmente com revistas online italianas e lusófonas.

1 S. Chignola, S. Mezzadra, Neoliberismo: che cosa c’è in un nome?, Euronomade, 26 Maio 2025, https://www.euronomade.info/neoliberalismo-che-cosa-ce-in-un-nome/ , Neoliberalismo. “O que è que há, pois, num nome?” Le Monde Diplomatique Brasil 4 Junho 2025, https://diplomatique.org.br/neoliberalismo-o-que-e-que-ha-pois-num-nome/

2 Entre as muitas contribuições que tratam do novo ente homem-máquina, S. Rota, Nós e o Cyborg Minorias e políticas da identidade, Outras Palavras, 29 março 2025, https://outraspalavras.net/descolonizacoes/nos-e-o-cyborg-minorias-e-politicas-da-identidade/ e o excelente artigo de J. A. Roza, A engegharia do eu na era das redes sociais, Revista Cult, 19 Setembro 2025, https://revistacult.uol.com.br/home/engenharia-do-eu-redes-sociais-e-construcao-da-subjetividade-contemporanea/

3 D. Haraway, A Cyborg Manifesto, Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century, em Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature (New York; Routledge, 1991), pp.149-181.

4 Essa eficaz definação (machinery of ordinalization) foi dada por M. Fourcade e K. Healy ao sistema de informatização das vidas, no artigo Authenticate thyself, publicado na revista online AEON, https://aeon.co/essays/the-sovereign-individual-and-the-paradox-of-the-digital-age

5 Mario Tronti e Toni Negri são os estudiosos militantes “operaistas” que mais aprofundaram teoricamente esta ligação. Em Operai e Capitale, Einaudi, Torino, 1966, Tronti fala de fábrica social, descrevendo como nos finais dos anos Sessenta muda o espaço produtivo e o sentido de jornada de trabalho, em relação ao que foi uma mudança do paradigma no padrão da exploração do trabalho. Em consequência disso, Negri elaborou ulteriormente essa passagem, nomeando o novo sujeito produtivo como operário social, no seu livro Dall’operaio massa all’operaio sociale. Intervista sull’operaismo, Multhipla Edizioni, Milano, 1979. Em função disso, quer-se sustentar aqui é que “a subjectivação apresenta-se como a condição de existência do capital”, como relatou Negri, aquando dum seminário em Milão para os 50 anos de vida do citado livro de Tronti, no 2016. https://www.euronomade.info/operai-capitale-50-anni/

6 R. Alquati, Per fare conricerca, Calusca Edizioni, Padova, 1993

7 S. Mezzadra, B. Nielson, Border as a Method. Or the multiplication of Labor, Duke University Press, Duhram, 2013

8 M. Pasquinelli, Nell’occhio dell’algoritmo, Storia e critica dell’intelligenza artificiale, Carocci, Roma, 2025.

9 J. A. Roza, A engegharia do eu na era das redes sociais, Revista Cult, 19 Setembro 2025, https://revistacult.uol.com.br/home/engenharia-do-eu-redes-sociais-e-construcao-da-subjetividade-contemporanea/

10 B. Xiang, J. Landquist, Migration Infrastructure, International Migration Review, Volume 48, n. 1, 2014, p. 122-148. https://globaldecentre.org/wp-content/uploads/2020/07/Biao-Xiang-Johan-Lindquist-Migration-Infrastructure-2014.pdf

11 ILO, Realizing decent work in the platform economy, Report V (2), 113th Session, 2025, https://www.ilo.org/sites/default/files/2025-02/ILC113-V%282%29-%5BWORKQ-241129-001%5D-Web-EN.pdf

12 M. Codebò, S. Rota, As Fissuras na fortaleza do Ocidente, OutrasPalavras, 2025, https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/as-fissuras-na-fortaleza-do-ocidente/

13 S. Rota, Cittadinanze postmigratorie nella crisi dell’Europa dei confini, Transglobal, 02-10-2016, https://associazionetransglobal.jimdofree.com/2016/04/26/cittadinanze-postmigratorie-nella-crisi-dell-europa-dei-confini/

14 O processo de externalização de serviços pelas Big Techs não acaba aqui. Mais abaixo – ou ao lado – do que Ángelo apresenta, existem milhões de trabalhadores localizados nos paises do Sul-Este asiático e – em números inferiores – na África e na América Latina. Eles são os que duas jornalistas do Washington Post investigaram nas Filipinas. Trata-se de trabalhadores que utilizam as apps, para cumprirem os assim chamados microtasks. É nas casas, cafes, caves superlotadas onde eles trabalham – que as duas jornalistas chamam, justamente, de sweatshops – que a AI está sendo alimentada por biliões de imagens, textos, anotações e categorizações. Os trabalhadores, eufemisticamente chamados de freelancer, ganham dois-quatro dólares por dia, na melhor das hipôteses. R. Tan, R. Cabato, Behind the AI boom, an army of overseas workers in ‘digital sweatshops’, Washington Post, 23 Agosto 2023, https://www.washingtonpost.com/world/2023/08/28/scale-ai-remotasks-philippines-artificial-intelligence/

15 B. Tarnoff, O sonho duma internet pública não acabou, Outras Palavras, 23 dezembro 2022, https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/sonho-de-uma-internet-publica-nao-acabou/

16 L. Bruno, Cooperativismo de plataforma e o trabalho digno, Outras Palavras, 22 dezembro 2023, https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/cooperativismo-de-plataforma-e-o-trabalho-digno/

17 N. Srnicek, Platform Capitalism, Polity Press, Cambridge, 2017, p. 69-70 da edição online. https://mudancatecnologicaedinamicacapitalista.wordpress.com/wp-content/uploads/2019/02/platform-capitalism.pdf

18 T. Berners-Lee, Da Internet que nos prometeram à distopia em que vivemos, Outras Palavras, 01 Otubro 2025, https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/da-internet-que-nos-prometeram-a-distopia-em-que-vivemos/

19 Pasquinelli, cit. pp. 129-155.

20 Pasquinelli, cit. p. 240

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