Trabalho: a maldição das zonas cinzentas
Agora, o capital não se limita a informalizar. Mesmo as ocupações “com carteira” são precárias: prontidão sem fim, tarefas em casa, trabalho não pago, insegurança constante. Para um contra-ataque, é preciso recalibrar conceitos – e lutas!
Publicado 25/03/2025 às 20:15 - Atualizado 25/03/2025 às 20:23

Por Tiago Magaldi e Matheus Silveira de Souza
A ofensiva capitalista das últimas décadas tem produzido transformações profundas no mundo do trabalho, das quais a flexibilização das leis trabalhistas são a principal expressão. Levada a cabo seja com o auxílio entusiasta de governos aliados, seja a contragosto por governos que se dizem progressistas, nos últimos anos o capital e seus prepostos atuaram agressivamente para reorganizar o mundo conforme o seu espírito mais recente. No Brasil, a Lei 13.467/2017, assinada a golpes de mesóclise pela elegante caneta de Michel Temer, é o melhor exemplo do primeiro caso; o PLP 12/2024, proposto pelo atual governo Lula, que visa regulamentar o trabalho de motoristas subordinados a aplicativos, o é do segundo.
A “uberização” é fruto reluzente dessa ofensiva. Embora apresente várias facetas, ela significou, sobretudo, a instituição de novas formas de controle e a atualização de velhas formas de organização. Se a “flexibilização” havia se tornado palavra de ordem onipresente no mercado de trabalho a partir da década de 1970, essas mudanças foram hoje cristalizadas na rotina dos trabalhadores, ganhando fôlego renovado com o fenômeno da plataformização.
Nesse novo cenário, categorias de análise que nos ajudavam a compreender o universo laboral parecem, por vezes, não serem mais suficientes para explicar as relações sociais de trabalho reconfiguradas. O arcabouço teórico e o horizonte de proteção social que temos hoje têm por origem a chamada “regulação fordista”, que tinha por base a experiência do Estado de bem estar social dos países capitalistas centrais. A perspectiva do trabalho “livre”, mas protegido, é o alvo preferencial da blitzkrieg neoliberal da última década, em Estados do norte e do sul global. O Brasil, que buscou tardiamente estabelecer um Estado Social a partir da redemocratização na década de 1980, com a promulgação da Constituição de 1988, nunca entregou plenamente esse conjunto de direitos sociais à população.
A noção de zonas cinzentas de trabalho, desenvolvida, entre outros, por Rizek1, Azais e Kesselman2, oferece uma análise mais precisa do conjunto de fenômenos explicitados por esse processo de desmonte, justamente por não se limitar a categorias binárias – formal ou informal, autônomo ou subordinado – para explicar o mundo do trabalho atual. O conceito de zonas cinzentas demonstra que há uma série de relações laborais surgidas nas últimas décadas que correm por dentro e por fora da regulação estatal, desafiando o arcabouço teórico criado tendo o fordismo como horizonte.
É importante ressaltar que mudar os termos da interpretação do fenômeno não significa renunciar ao horizonte de proteção social construído no último século; é evidente a importância desses direitos e garantias para a melhora das condições de vida dos trabalhadores e trabalhadoras. Praticamente toda a literatura sociológica brasileira é unânime neste ponto. Entretanto, se a intervenção política eficaz exige uma leitura precisa da realidade, é importante termos à disposição categorias de análise finamente ajustadas às mais recentes transformações no mundo do trabalho.
A informalidade virou a regra do trabalho formal?
O descompasso entre realidade e conceito pode ser observado, por exemplo, na binariedade trabalho formal / informal: hoje, a flexibilização parece ocupar todos os poros do mundo do trabalho, a despeito da formalidade ou não dos empregos. Conforme argumenta Ludmila Abílio, uma das características da uberização é a tendência a trazer para dentro de trabalhos formais elementos típicos da informalidade3. Ser flexível e estar permanentemente à disposição, confundindo o que é tempo de trabalho e tempo de não-trabalho, é um requisito generalizado, independentemente da sua carteira estar ou não assinada. Isto se aplica a todos os âmbitos da relação formal de emprego, e não apenas em sua jornada: Sophie Bernard mostrou como, mesmo nos países europeus de tradição fordista mais estabelecida, como a França, a própria remuneração passou por um processo de ampla flexibilização no interior de relações de emprego “protegidas”4. Em síntese, como argumentou Chico de Oliveira: “pede-se ao trabalhador formal os atributos do informal: flexibilidade, polivalência e iniciativa”5.
Assim, a informalidade pode ser enxergada como um processo realizado no interior de uma zona cinzenta; o próprio trabalho formal está passando progressivamente por um movimento de informalização. A noção de zonas cinzentas dialoga com a perda de formas estáveis do trabalho. Tal perda implica em “dificuldade em mapear e discernir quais são os custos do trabalho e quem arca com eles; o que é e não é tempo de trabalho; e o que é e não é trabalho pago e não pago; o que são meios de produção e instrumentos do trabalho”6.
Uma das características centrais desse processo de informalização é o fim dos limites da jornada de trabalho e a consequente institucionalização do trabalho sob demanda. O modelo “ideal” deixa de ser a remuneração de acordo com uma jornada fixa de trabalho, passando para o pagamento de acordo com a realização de demandas, o que permite ao “empregador” – agora um “parceiro” que “solicita” um “serviço” a um “colaborador” – um salto de produtividade, ao passo que não precisará remunerar o tempo de trabalho ocioso7. O fato de muitos trabalhadores plataformizados calcularem sua jornada a partir de metas que pretendem atingir no dia, e não de horas de trabalho, é um reflexo dessa forma de remuneração do capital, cujo embrião encontramos no salário por peça, modalidade já comentada por Marx no século XIX.
Desafios para a proteção social no pós-fordismo
Temos hoje um novo mundo do trabalho. Sem dúvida, é antiga a estratégia, por parte das empresas, de buscar formas alternativas de contratação, com o objetivo de evitar a aplicação da legislação trabalhista e reduzir os custos da força de trabalho contratada. Desde a consagração do grande pacto de classes que foi o fordismo, que estabeleceu uma cesta básica de direitos sociais e trabalhistas como contrapartida à aceitação pacífica de uma inclusão subordinada na sociedade capitalista de massas por parte dos trabalhadores – a feliz expressão é de Robert Castel8 –, as diferentes frações da burguesia foram pródigas em tentativas de violação do acordo, seguindo seu ímpeto estrutural pelo incremento da taxa de lucro. Do lado dos trabalhadores, a luta passou a ser a do reconhecimento dos termos básicos do acordo: trabalho livre (para ser explorado pelo comprador da mão de obra), mas protegido.
Os termos da disputa entre capital e trabalho seguem, portanto, válidos no interior dos parâmetros fordistas. Mas há algo novo despontando nas pesquisas: se, de um lado, é preciso retirar o trabalho subordinado às plataformas da tendência à objetificação puramente mercadológica em função dos evidentes prejuízos ao trabalhador que a desregulação provoca, sobretudo quanto à rede mínima de proteção (salário mínimo, limitação da jornada, férias remuneradas, etc.), a plataformização vem também explicitando os “pontos cegos” da relação formal de trabalho “realmente existente”.
Embora ainda não haja um levantamento definitivo a este respeito, os achados empíricos quanto aos trabalhadores subordinados a plataformas de transportes (TPTs) – símbolos da plataformização no país – vem tornando cada vez mais inarredável a conclusão de que há não só uma mudança na prática laboral, mas também uma transformação nos horizontes acoplados ao trabalho9. Guinada semelhante já vinha sendo apontada no âmbito do trabalho informal nos mercados populares: embora ainda mantenha grande força, o horizonte do trabalho “de carteira assinada” vem perdendo, ano a ano, a capacidade de mobilizar as esperanças de grandes conjuntos de trabalhadores; de lhes apresentar uma opção desejável de futuro10. (Vale lembrar que, além de boa parte dos empregos formais no país resultarem em ganhos de até 1,5 salários mínimos, é comum e rotineira a prática de assédio moral nesses ambientes).
É este, hoje, o grande nó analítico e político a ser desatado quanto à plataformização do trabalho. Analisar a adesão de uma parte dos trabalhadores ao horizonte da plataformização pela chave da manipulação ideológica, isto é, da consciência enganosa de seus melhores interesses, não parece ser a melhor forma de captar as nuances e contradições implicadas nessas relações de trabalho.
Por outro lado, se tal adesão – frise-se, ainda não empiricamente estabelecida de maneira definitiva, mas encontrada em muitos estudos de caso no país – for lida na chave da legitimidade de uma nova dominação no mundo do trabalho, como apontou Luiz Antônio Machado da Silva11 e como Jacob Lima vem reiterando nas últimas duas décadas12 – inspirados pelos escritos de Boltanski e Chiapello13, hoje canônicos na literatura crítica de corte weberiano –, então onde situar a dimensão do interesse do conjunto da classe trabalhadora, isto é, até que ponto a nova dominação comporta as contradições entre seu horizonte normativo (autonomia e liberdade no trabalho sem regulação estatal do mercado) e seus resultados precarizantes para a classe trabalhadora em seu conjunto?
O problema analítico e político permanece: como ler a situação concreta produzida pela plataformização do trabalho, e como se posicionar diante da realidade de uma ofensiva mundial avassaladora que tem a capacidade real de oferecer uma nova utopia do capital? O certo é que, se os estudiosos do trabalho pretendem desatar esse nó, será necessário levar a sério a leitura dos agentes diretamente envolvidos na transformação. Se eles certamente não a produzem, por outro lado estão cotidianamente as ressignificando e adequando ao seu mundo prático e axiológico, mudando, com isso, o próprio conjunto das relações. São os sentidos desse novo conjunto que precisamos compreender, reconhecendo os limites históricos de categorias tornadas antigas.
Tiago Magaldi é professor substituto no Departamento de Sociologia da UFRJ; Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da mesma instituição.
Matheus Silveira de Souza é doutorando em Sociologia pela Unicamp e mestre em Direito pela USP. Professor universitário e advogado.
REFERÊNCIAS
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BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2020.
FESTI, Ricardo; PELEJA, João Pedro Inácio; SANTOS, Kethury Magalhães dos; GONTIJO, Laura Valle. O que pensam os entregadores sobre o debate da regulação do trabalho por aplicativos? Resultados de survey aplicada em 2023. Mercado de trabalho: conjuntura e análise (IPEA), v. 30, 2024.
LIMA, Jacob Carlos. Participação, empreendedorismo e autogestão: Uma nova cultura do trabalho?. Sociologias, v. 12, n. 25, p. 158–198, 2010.
LIMA, Jacob Carlos. Sobre empreendedorismo e cultura do trabalho. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 39, p. 1–18, 2024.
LIMA, Jacob Carlos. Trabalho e novas sociabilidades. Caderno CRH, v. 17, n. 41, p. 167–171, 2004.
MAGALDI, Tiago; AZAÏS, Christian; RAZAFINDRAKOTO, Mireille; ROUBAUD, François. Uma “escolha muito difícil”: CLT versus plataformas na avaliação dos trabalhadores brasileiros em uma abordagem quali-quanti. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, n. 28, p. 1–41, 2024.
OLIVEIRA, Francisco de. O Estado e a exceção ou o Estado de exceção? Estudos Urbanos e Regionais, maio de 2003.
RIZEK, Cibele. S. The emerging figures of the platform economy: the reign of the grey zones of labour , SASE Rio de Janeiro, July, 2023.
SILVA, Luiz Antonio Machado da. Da informalidade à empregabilidade (reorganizando a dominação no mundo do trabalho). Caderno CRH, n. 37, p. 81–109, 2002.
1 RIZEK, Cibele. S. « The emerging figures of the platform economy: the reign of the grey zones of labour », SASE Rio de Janeiro, July, 2023.
2 AZAIS C., DIEUAIDE, P ; KESSELMAN, D. « Zone grise d’emploi, pouvoir de l’employeur et espace public : une illustration à partir du cas Uber », Relations industrielles / Industrial Relations, 72 (3), pp. 433-456, 2017.
3 ABÍLIO, Ludmila Costhek. Empreendedorismo, autogerenciamento ou viração?: Uberização, o trabalhador just-in-time e o despotismo algorítmico na periferia. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, v. 11, n. 3, 2021.
4 BERNARD, Sophie. Le nouvel esprit du salariat. Paris : Presses Universitaires de France (PUF), 2020.
5 OLIVEIRA, Francisco de. O Estado e a exceção ou o Estado de exceção? Estudos Urbanos e Regionais, maio de 2003.
6 ABÍLIO, Ludmila Costhek. Empreendedorismo, autogerenciamento ou viração?: Uberização, o trabalhador just-in-time e o despotismo algorítmico na periferia. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, v. 11, n. 3, 2021.
7 ABÍLIO, Ludmila Costhek. Empreendedorismo, autogerenciamento ou viração?: Uberização, o trabalhador just-in-time e o despotismo algorítmico na periferia. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, v. 11, n. 3, 2021.
8 CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.
9 MAGALDI, Tiago; AZAÏS, Christian; RAZAFINDRAKOTO, Mireille; ROUBAUD, François. Uma “escolha muito difícil”: CLT versus plataformas na avaliação dos trabalhadores brasileiros em uma abordagem quali-quanti. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, n. 28, p. 1–41, 2024; FESTI, Ricardo et al. O que pensam os entregadores sobre o debate da regulação do trabalho por aplicativos? Resultados de survey aplicada em 2023. Mercado de trabalho: conjuntura e análise (IPEA), v. 30, 2024
10 RANGEL, Felipe Martins. A empresarização dos mercados populares: trabalho e formalização excludente. Belo Horizonte: Fino Traço, 2021.
11 SILVA, Luiz Antonio Machado da. Da informalidade à empregabilidade (reorganizando a dominação no mundo do trabalho). Caderno CRH, n. 37, p. 81–109, 2002.
12 LIMA, Jacob Carlos. Participação, empreendedorismo e autogestão: Uma nova cultura do trabalho?. Sociologias, v. 12, n. 25, p. 158–198, 2010. LIMA, Jacob Carlos. Sobre empreendedorismo e cultura do trabalho. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 39, p. 1–18, 2024. LIMA, Jacob Carlos. Trabalho e novas sociabilidades. Caderno CRH, v. 17, n. 41, p. 167–171, 2004.
13 BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2020.
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