Trabalhar, sinônimo de adoecer

Explodem, sob o inferno neoliberal, afastamentos por causas psíquicas. Doença é a resposta dos corpos às jornadas exaustivas, tarefas enfadonhas e insegurança permanente. Até as empresas perdem, mas o sistema não sai do abismo que criou

Arte: Joan Cornellà
.

O fenômeno do adoecimento mental massivo entre trabalhadores brasileiros, evidenciado pelos 472.328 afastamentos registrados em 2024, representa não apenas uma crise sanitária, mas uma manifestação concreta das contradições inerentes às relações de produção no capitalismo contemporâneo. Este crescimento expressivo de 68% em relação ao ano anterior constitui uma forma de insurgência silenciosa, em que os corpos e mentes dos trabalhadores registram, através do sofrimento psíquico, as tensões e pressões de um sistema produtivo cada vez mais exigente e precarizado. A experiência vivida por estes sujeitos comuns, especialmente mulheres, negros e os setores mais vulneráveis da classe trabalhadora, compõe um capítulo significativo da história social do trabalho no Brasil, revelando como as condições materiais de existência moldam não apenas as estruturas econômicas, mas a própria subjetividade dos indivíduos.

A questão do sofrimento psíquico relacionado ao trabalho não pode ser compreendida isoladamente como fenômeno médico ou psicológico, mas exige uma análise que considere as condições históricas e materiais em que se manifesta. Como argumenta Dejours, “o sofrimento mental aparece como intermediário necessário à submissão do corpo” no processo de dominação exercido pela organização do trabalho sobre o aparelho psíquico, transformando o adoecimento em consequência direta das relações laborais vigentes.1 Assim, é fundamental examinar como a precarização das condições de trabalho, a intensificação das jornadas e a crescente pressão por produtividade impactam a saúde mental dos trabalhadores brasileiros, reconhecendo que tais manifestações de sofrimento constituem respostas a um sistema que prioriza o lucro em detrimento do bem-estar coletivo.

Para além dos números impressionantes que atestam a dimensão do fenômeno – 472 mil licenças concedidas pelo INSS por questões de saúde mental, com afastamentos médios de três meses e impacto financeiro estimado em quase R$ 3 bilhões em 2024 – é preciso compreender as experiências concretas por trás dessas estatísticas. Cada afastamento representa uma história de vida, um sujeito histórico cuja experiência no mundo do trabalho culminou em sofrimento psíquico significativo. Estas histórias individuais, quando examinadas em seu conjunto, revelam padrões e tendências que emergem das condições materiais compartilhadas pela classe trabalhadora brasileira contemporânea.

O perfil dos afastamentos demonstra uma clara intersecção entre classe e gênero: 64% dos trabalhadores afastados são mulheres, com idade média de 41 anos, principalmente acometidas por quadros de ansiedade e depressão. Este dado revela como as relações de produção se articulam com estruturas patriarcais, produzindo sobrecarga específica para as mulheres trabalhadoras. Segundo Hirata, “a divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos”, manifestando-se tanto na distribuição desigual de homens e mulheres no mercado de trabalho quanto na valorização diferenciada das atividades realizadas por cada gênero.2 Na prática, isso se traduz em jornadas múltiplas, menores remunerações e maior responsabilidade no cuidado familiar, configurando experiência material específica que se reflete nos índices de adoecimento mental.

A experiência da pandemia de covid-19 opera como divisor de águas na compreensão deste fenômeno, tendo aprofundado vulnerabilidades preexistentes e exacerbado as contradições do sistema produtivo. O luto coletivo por mais de 700 mil vidas perdidas, o prolongado isolamento social, a intensificação do trabalho para os que permaneceram empregados e a escalada inflacionária criaram um cenário propício para o agravamento de quadros de sofrimento psíquico. Esse conjunto de fatores materiais, somado à insegurança econômica generalizada, produziu impacto desigual entre os diferentes estratos da classe trabalhadora, atingindo com mais força mulheres, negros e trabalhadores precarizados.

Pesquisas publicadas na revista Lancet demonstram que as mulheres foram desproporcionalmente afetadas pela crise pandêmica, enfrentando maior índice de desemprego e aumento significativo do trabalho não remunerado de cuidados domésticos e familiares.3 Este fenômeno evidencia como as crises socioeconômicas tendem a reforçar desigualdades estruturais, aprofundando vulnerabilidades preexistentes que se manifestam no adoecimento psíquico coletivo. A experiência destes grupos mais afetados constitui parte fundamental da história social do trabalho no Brasil contemporâneo, revelando as dinâmicas de poder que atravessam as relações produtivas.

As experiências individuais relatadas por trabalhadoras como Amanda Abdias, que assumiu tripla jornada após o marido perder o emprego durante a pandemia, ou Marcela Carolina, mulher negra que convive com depressão há mais de duas décadas, ilustram como as pressões econômicas e sociais se materializam em sofrimento psíquico real. Segundo Seligmann-Silva, “o processo de desgaste relaciona-se ao conjunto de tensões, desafios, dificuldades e esforços a que a pessoa é submetida na interação com o trabalho”, evidenciando a profunda conexão entre condições materiais de existência e saúde mental.4 Estes casos exemplificam como as opressões de classe, gênero e raça se entrelaçam, produzindo experiências particulares que não podem ser reduzidas a explicações monocausais ou descontextualizadas historicamente.

O adoecimento mental massivo entre trabalhadores brasileiros pode ser compreendido como forma não articulada de resistência às condições laborais cada vez mais exploratórias. Quando o corpo e a mente não suportam mais a intensidade das pressões cotidianas, o afastamento emerge como recurso último de autopreservação. Esta forma de resistência, ainda que não organizada coletivamente ou expressa em termos políticos explícitos, representa uma negação prática das condições impostas pelo capital, sinalizando os limites da exploração suportável pelo organismo humano.

Antunes observa que “a precarização estrutural do trabalho” característica do capitalismo contemporâneo manifesta-se através de múltiplas formas de desregulamentação e flexibilização, produzindo “uma processualidade contraditória que, de um lado, reduz o operariado industrial e fabril, e, de outro, aumenta o subproletariado, o trabalho precário e o assalariamento no setor de serviços”.5 Esta nova configuração do mundo do trabalho, marcada pela instabilidade, intensificação produtiva e fragilização dos vínculos empregatícios, constitui terreno fértil para o surgimento de formas específicas de sofrimento psíquico relacionadas à experiência laboral contemporânea.

A resposta estatal ao problema materializa-se em medidas regulatórias como a atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), que determina a fiscalização de riscos psicossociais no ambiente laboral pelo Ministério do Trabalho. Esta intervenção representa o reconhecimento oficial da dimensão sociopolítica do adoecimento mental no trabalho, ainda que sua eficácia permaneça questionável diante das causas estruturais do fenômeno. A implementação destas medidas reflete as disputas políticas em torno da regulação do trabalho, evidenciando como o campo da saúde mental tornou-se arena de confronto entre interesses divergentes de trabalhadores, empresas e Estado.

As multas previstas pela nova regulamentação variam entre R$ 500 e R$ 6 mil por cada situação identificada, além da determinação de prazos para ajuste do formato de trabalho visando evitar novos afastamentos. A contratação prevista de 900 novos auditores fiscais pelo Ministério do Trabalho busca dar conta desta nova demanda regulatória, representando resposta institucional às pressões sociais por melhores condições laborais. Contudo, como destaca Fontes, “o capitalismo contemporâneo tem na extração do sobretrabalho sob diferentes modalidades o seu fundamento”6, o que limita o potencial transformador de medidas meramente normativas que não alteram as relações de produção subjacentes.

A experiência da empresa Coris Seguro Viagem, que após identificar aumento de licenças por motivos psicológicos implementou medidas de apoio aos funcionários, exemplifica as tentativas empresariais de mitigar o problema sem questionar suas causas estruturais. Iniciativas como apoio psicológico, benefício de academia e orientação financeira constituem respostas paliativas que, embora possam produzir melhoras pontuais, não alteram fundamentalmente as relações de exploração que produzem o adoecimento em primeiro lugar. Estes casos ilustram os limites das soluções individualizantes para problemas socialmente determinados.

O fenômeno do adoecimento mental no trabalho manifesta aspectos de uma “economia moral” contemporânea, revelando como valores culturais e expectativas compartilhadas sobre direitos e responsabilidades moldam as relações econômicas. Quando trabalhadores brasileiros adoecem e se afastam em números recordes, expressam uma forma de avaliação moral das condições laborais consideradas injustas ou insuportáveis. O corpo adoecido torna-se, assim, testemunho material das contradições sociais que permeiam o mundo do trabalho, inscrevendo na carne e na psique os efeitos da exploração capitalista.

Para a Fundação Oswaldo Cruz, os impactos sociais da covid-19 afetaram de forma desigual diferentes estratos da população brasileira, “aprofundando vulnerabilidades preexistentes e criando novas formas de exclusão social”.7No campo da saúde mental, isto se manifestou no agravamento de quadros prévios e no surgimento de novos casos relacionados às condições materiais adversas enfrentadas durante e após a crise sanitária. A experiência traumática coletiva da pandemia combinou-se com pressões econômicas intensificadas, produzindo terreno fértil para o adoecimento psíquico massivo observado nos dados oficiais.

Os dados do Ministério da Saúde indicam que o número de suicídios é 45% maior entre pessoas pretas e pardas em comparação às brancas, evidenciando como o racismo estrutural opera como determinante social da saúde mental.8 Esta estatística alarmante demonstra a necessidade de análise interseccional que considere como diferentes formas de opressão – classe, gênero e raça – se combinam na produção de experiências específicas de sofrimento psíquico. A história social do trabalho no Brasil contemporâneo não pode ser compreendida sem considerar estas múltiplas determinações que constituem a experiência concreta dos trabalhadores.

Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde, aproximadamente 12 bilhões de dias úteis são perdidos globalmente todos os anos devido à depressão e ansiedade, representando perdas econômicas de aproximadamente US$ 1 trilhão anualmente.9 Estes números evidenciam as profundas contradições de um sistema produtivo que, ao priorizar ganhos imediatos em detrimento do bem-estar dos trabalhadores, produz prejuízos econômicos substanciais no médio e longo prazos. O adoecimento massivo emerge, assim, como sintoma das disfunções estruturais do próprio capitalismo contemporâneo.

A experiência das trabalhadoras entrevistadas pelo G1 revela como as pressões financeiras, a precariedade das condições laborais e as desigualdades estruturais se inscrevem nos corpos e mentes daqueles que vivem da venda de sua força de trabalho. Seus relatos constituem testemunhos valiosos para a compreensão da experiência da classe trabalhadora brasileira contemporânea, permitindo acessar dimensões do sofrimento psíquico relacionado ao trabalho que os dados quantitativos, por si só, não conseguem captar. Estas narrativas singulares de dor e resistência revelam os sujeitos históricos concretos por trás das estatísticas alarmantes.

A crise de saúde mental no trabalho evidencia o caráter contraditório das relações de produção contemporâneas. Por um lado, as empresas demandam trabalhadores produtivos, engajados e resilientes; por outro, submetem estes mesmos indivíduos a condições que inviabilizam sua saúde psíquica. A intensificação do trabalho, as metas inatingíveis, a insegurança permanente e a desvalorização sistemática produzem adoecimento generalizado, comprometendo a própria produtividade que o sistema busca maximizar. Esta contradição fundamental revela os limites intrínsecos do modelo produtivo vigente.

A pesquisadora Thatiana Cappellano oferece análise pertinente ao observar que “muitas pessoas foram demitidas [durante a pandemia], e as que ficaram aumentaram terrivelmente a intensidade do trabalho. Quando a pandemia acabou, isso não regrediu. Todo mundo continua trabalhando no mesmo ritmo acelerado, só que talvez a gente não tenha estrutura psíquica e física para suportar esse ritmo por tanto tempo”. Esta observação evidencia como transformações no processo produtivo impactam diretamente a saúde dos trabalhadores, estabelecendo ritmos e demandas incompatíveis com o bem-estar psíquico, caracterizando o que poderíamos denominar como processo de expropriação da saúde mental.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística registra que as mulheres recebem remuneração inferior à dos homens em 82% das áreas profissionais, enquanto simultaneamente arcam com a maior parte do trabalho não remunerado.10 Este padrão social gera sobrecarga específica para as mulheres trabalhadoras, que enfrentam jornadas múltiplas, menores salários e maior responsabilidade no cuidado familiar. A experiência material destas trabalhadoras constitui elemento fundamental para compreender os índices elevados de adoecimento mental feminino, revelando como as desigualdades de gênero se articulam com a exploração de classe na produção de formas específicas de sofrimento psíquico.

O adoecimento mental massivo entre trabalhadores brasileiros revela, portanto, não apenas uma crise de saúde pública, mas uma profunda crise nas relações de trabalho contemporâneas. Os corpos e mentes adoecidos testemunham as contradições de um sistema produtivo que, ao subordinar o bem-estar coletivo às exigências de acumulação, produz formas generalizadas de sofrimento psíquico. A história que se desenrola diante de nossos olhos exige abordagem que reconheça a centralidade da experiência dos trabalhadores comuns como sujeitos históricos que, mesmo em condições adversas, continuam a forjar sua própria história – ainda que não exatamente nas condições por eles escolhidas.


Referências:

ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão: O Novo Proletariado de Serviços na Era Digital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

CASEMIRO, Poliana; MOURA, Rayane. Crise de saúde mental: Brasil tem maior número de afastamentos por ansiedade e depressão em 10 anos. G1, São Paulo, 10 mar. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/03/10/crise-de-saude-mental-brasil-tem-maior-numero-de-afastamentos-por-ansiedade-e-depressao-em-10-anos.ghtml. Acesso em: 10 mar. 2025.

DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho: Estudo de Psicopatologia do Trabalho. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2018.

FONTES, Virgínia. O Brasil e o Capital-Imperialismo: Teoria e História. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2022.

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Os Impactos Sociais da Covid-19 no Brasil: População Vulnerável e Respostas à Pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2023.

HIRATA, Helena. Nova Divisão Sexual do Trabalho? Um Olhar Voltado para a Empresa e a Sociedade. São Paulo: Boitempo, 2018.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estatísticas de Gênero: Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2024.

LANCET COMMISSION ON GENDER AND GLOBAL HEALTH. Gender Inequalities and COVID-19: Long-term Impacts on Work and Mental Health. The Lancet, v. 399, n. 10334, p. 1457-1488, 2023.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim Epidemiológico de Suicídio e Autolesão. v. 3. Brasília: Secretaria de Vigilância em Saúde, 2024.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Saúde Mental no Local de Trabalho: Diretrizes Globais. Genebra: OMS, 2023.

SELIGMANN-SILVA, Edith. Trabalho e Desgaste Mental: O Direito de Ser Dono de Si Mesmo. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2021.


Notas:

1 DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho: Estudo de Psicopatologia do Trabalho. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2018.

2 HIRATA, Helena. Nova Divisão Sexual do Trabalho? Um Olhar Voltado para a Empresa e a Sociedade. São Paulo: Boitempo, 2018.

3 LANCET COMMISSION ON GENDER AND GLOBAL HEALTH. Gender Inequalities and COVID-19: Long-term Impacts on Work and Mental Health. The Lancet, v. 399, n. 10334.

4 SELIGMANN-SILVA, Edith. Trabalho e Desgaste Mental: O Direito de Ser Dono de Si Mesmo. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2021.

5 ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão: O Novo Proletariado de Serviços na Era Digital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

6 FONTES, Virgínia. O Brasil e o Capital-Imperialismo: Teoria e História. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2022.

7 FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Os Impactos Sociais da Covid-19 no Brasil: População Vulnerável e Respostas à Pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2023.

8 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim Epidemiológico de Suicídio e Autolesão. v. 3. Brasília: Secretaria de Vigilância em Saúde, 2024.

9 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Saúde Mental no Local de Trabalho: Diretrizes Globais. Genebra: OMS, 2023.

10 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estatísticas de Gênero: Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2024.

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *