Infeliz radiografia do trabalho em plataformas

IBGE conclui sua mais vasta pesquisa sobre a situação de 1,6 milhão de brasileiros. Situação segue dramática e em muitos casos piorou. Trabalham mais, ganham menos e vivem insegurança permanente. Exclusão previdenciária precisa ser enfrentada já

São Paulo (SP), 14/05/2024 – Motorista de aplicativo dirige na Avenida Brigadeiro Luís Antônio durante chegada da frente fria. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
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Por José Dari Krein1

Acabam de ser divulgados (em 17/10) os resultados de nova pesquisa do IBGE sobre trabalhadores de empresas em plataformas digitais. Os dados referem-se a 2024. É a segunda edição do estudo, e um marco na produção de estatísticas sobre o mundo do trabalho contemporâneo. O levantamento atualiza os dados de 2022 e oferece um retrato mais amplo sobre quem são esses trabalhadores, quanto ganham, quantas horas trabalham e em que condições exercem suas atividades.

A incorporação dessa temática pela principal instituição de estatística do país é um passo fundamental para compreender as mudanças estruturais nas relações de trabalho e subsidiar políticas públicas, debates sobre regulação e ampliação da proteção social. O IBGE foi uma das instituições pioneiras no mundo a incluir o tema nas suas pesquisas regulares, tornando-se referência internacional. O avanço só foi possível graças a uma articulação inédita entre o Ministério Público do Trabalho (MPT), o IBGE e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que viabilizou a construção do módulo de pesquisa e a sua execução em âmbito nacional.

Os novos dados mostram que o trabalho em empresas de plataformas digitais segue em expansão. Entre 2022 e 2024, a proporção de pessoas que trabalham para empresas de plataforma passou de 1,5% para 1,9% do total de ocupados (exclusive os empregados no setor público e militares), saindo de 1,32 milhão para 1,65 milhão de trabalhadores, um crescimento de 25% em apenas dois anos. Ainda que as atividades de transporte de passageiros e entrega de mercadorias continuem concentrando a maior parte das ocupações (mais de 70% do total), há uma expansão para os serviços gerais ou profissionais, sinalizando que a plataformização se espraia para novos segmentos do mercado de trabalho.

Fonte: IBGE

No entanto, o avanço numérico não veio acompanhado de melhoria nas condições de trabalho. Os resultados de 2024 revelam uma realidade muito semelhante à observada em 2022 – e, em alguns aspectos, até pior.

Mais horas, menor rendimento

A pesquisa confirma que os trabalhadores de plataformas seguem trabalhando mais horas do que os demais ocupados. Em 2024, trabalham em média 5,5 horas semanais a mais do que os não plataformizados, o que reforça a prevalência de uma ocupação com sobrejornada de trabalho.

Mesmo com jornadas mais extensas, o rendimento por hora dos plataformizados é menor. Em 2024, eles receberam, em média, R$ 15,40 por hora, valor 8,3% inferior ao dos demais trabalhadores (R$ 16,80). No rendimento mensal, a diferença também diminuiu: em 2022, os plataformizados ganhavam 9,4% mais do que os não plataformizados; em 2024, essa vantagem caiu para apenas 4,2%.

Esses números escondem desigualdades importantes. O cálculo considera apenas o rendimento habitual, sem incluir benefícios trabalhistas e previdenciários, como férias remuneradas, 13º salário, FGTS, auxílio-doença ou seguro-desemprego – garantias de que esses trabalhadores, em sua maioria informais, estão excluídos. Ou seja, embora pareçam ganhar um pouco mais na média nominal, o seu rendimento efetivo e sua proteção são muito menores.2

Fonte: IBGE

Informalidade estrutural e ausência de proteção social

A informalidade permanece em patamares alarmantes. Em 2024, 71% dos trabalhadores de plataformas estavam em situação informal, ante 43% entre os não plataformizados, considerando a mesma base dos ocupados. Entre os entregadores, o quadro é ainda mais dramático: 84% vivem na informalidade e apenas 21,6% contribuem para a Previdência Social. Apenas 3,2% eram empregados com carteira e, portanto, possuíam direitos do trabalho.

O número de trabalhadores sem contribuição previdenciária subiu 2,2 pontos percentuais entre 2022 e 2024, atingindo 64% do total. É uma situação que deixa ao próprio trabalhador todos os custos e riscos da atividade, sonegando os direitos de um assalariado formal.

Esses dados reforçam o caráter estrutural da informalidade dos trabalhadores plataformizados: jornadas longas, rendimentos instáveis e ausência de proteção previdenciária tornam essa forma de ocupação uma das expressões mais evidentes da precarização contemporânea.

Autonomia limitada e controle digital

Um dos resultados relevantes da pesquisa de 2024 diz respeito à autonomia dos trabalhadores. Embora muitos afirmem ter liberdade para definir seus horários, o estudo mostra que essa autonomia é fortemente condicionada pelos mecanismos de controle das plataformas. São as empresas que determinam o valor do serviço, a forma de pagamento, o acesso aos clientes e os critérios de avaliação.

Mais de 30% dos entrevistados declararam sentir-se pressionados a aumentar a jornada por medo de bloqueio ou punição nos aplicativos, o que revela uma subordinação econômica e tecnológica mascarada pelo discurso da liberdade. Os “prêmios” e “incentivos” servem, na prática, para induzir comportamentos e ampliar o tempo de conexão, transferindo riscos e custos para o trabalhador.

O desafio da regulação e da proteção social

O levantamento do IBGE de 2024, ao lado do de 2022, consolida um diagnóstico incontornável: o trabalho por plataformas é uma realidade estrutural do mercado de trabalho brasileiro, mas sua expansão tem se dado sob as bases da informalidade, da insegurança e da ausência de direitos.

Diante disso, o grande desafio é incorporar esses trabalhadores ao sistema de proteção social, reconhecendo a sua condição de trabalhador que presta serviço a outrem, que ganha a partir da atividade realizado por eles. A exclusão previdenciária, além de agravar a vulnerabilidade individual, compromete o financiamento coletivo da seguridade social baseada na solidariedade intergeracional (ver Marconi, 2025). Estudos do CESIT sobre a pejotização e a liberalização das formas contratuais mostram que a não regulação afeta também negativamente o crescimento do PIB, a taxa de desocupação e a desigualdade social.

A pesquisa do IBGE, com o apoio do MPT e da Unicamp, representa um avanço notável na compreensão das novas dinâmicas do trabalho e reforça a necessidade de políticas públicas que enfrentem a precarização com base em evidências.

Notas


1 Professor do IE/UNICAMP e pesquisador do CESIT. [email protected]. Agradeço a equipe da Unicamp (CESIT, Grupo de Pesquisa do Ricardo Antunes, Ricardo Dahab), a Clarissa Schinestck, do MPT e os comentários ao presente texto de Pietro Borsari e André Krein.

2 Além disso, a atividade plataformizada envolve despesas que recaem inteiramente sobre o trabalhador, como a compra e manutenção de aparelhos digitais, custos com internet, seguros e, sobretudo, no caso do setor de transportes gastos com combustível, manutenção, aluguel ou financiamento do veículo. Mesmo quando esses custos são parcialmente conhecidos, itens como depreciação e manutenção do veículo raramente são devidamente computados. Esse cenário faz com que o rendimento declarado tenda a ser superior ao ganho efetivo, negligenciando o grau de precarização e a real remuneração do trabalho mediado por plataformas.

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