Entregadores: Quando o Estado agirá?
Audiência em Brasília revela as dimensões bizarras da exploração e a urgência de enfrentar corporações. Acidentes e mortes multiplicam-se. Há perseguições, violência contra motogirls e falsas promessas. Mas debate no Planalto naufragou e STF veta reconhecer direitos
Publicado 28/05/2025 às 18:34 - Atualizado 29/05/2025 às 16:08

Em março de 2025 foram retomadas as manifestações populares dos que trabalham com entregas por plataforma no Brasil. Diante disso, no dia 22 de maio, ocorreu na Câmara de Deputados uma audiência pública sobre as condições de trabalho e de saúde dos trabalhadores de delivery por plataformas digitais. Esta audiência, convocada pela deputada Erika Kokay (PT/DF), contou com a participação de entregadores, lideranças sindicais e políticas, profissionais do direito, ministério público e pesquisadores de universidades públicas. Um mês antes ocorreu outra audiência, convocada pelo Deputado Boulos (PSOL/SP), para debater as demandas expressas pelos trabalhadores em sua paralisação nos dias 31 de março e 01 de abril. Ambas as audiências tiveram como propósito a construção de projetos de lei, com a participação dos trabalhadores, de modo a atender às suas demandas e estabelecer formas de regulamentação desse trabalho.
As audiências – e o debate público provocado por elas – ocorrem num contexto de ascensão e demonstração de força do movimento político e sindical dos entregadores de aplicativos. O Breque dos APPs de 2025 mobilizou um contingente significativo, paralisando as atividades de entrega dos aplicativos. A partir da Aliança Nacional de Entregadores por Aplicativos (ANEA), entidade criada em 2023 pelas principais lideranças que surgiram com os primeiros Breques de 2020, foi feito o chamado para a construção de um Comando Nacional envolvendo novas lideranças nacionais, regionais e locais. Assim, de forma horizontalizada, o movimento organizou as paralisações dos dias 31 de março e 01 de abril de 2025.
O Breque dos APPs de 2025 não foi um evento isolado, mas sim o resultado de um processo contínuo de resistência e organização da categoria. Apesar de os últimos anos não terem sido marcados por propostas de rua, as discussões dos trabalhadores seguiram efervescentes nos grupos estruturados, tanto a nível local como nacional. Ou seja, o sucesso da mobilização não esteve apenas na forma democrática de organização da categoria. Ele foi reflexo de um acúmulo de ações, organizações, mobilizações e articulações anteriores. Ele é fruto das lutas moleculares dos entregadores de aplicativos que acontecem cotidianamente em todo país contra todas as formas de exploração, humilhação e violência a que são submetidos.
Um dos fenômenos mais importantes que surgiram dessas mobilizações moleculares e das articulações ocorridas nos últimos anos foi o aparecimento de inúmeros coletivos de mulheres entregadoras. Insatisfeitas com a falta de representação – durante o GT de 2023 com o governo federal, nenhuma mulher participou – e sentindo a necessidade de expor suas demandas, elas começaram a se organizar em seus locais de trabalho, por meio de redes sociais virtuais, que logo passaram a dar origem a encontros presenciais e à formalização de coletivos e até mesmo associações (na Paraíba, foi formalizada a primeira associação de mulheres, a Associação de Motogirls e Entregadoras da Paraíba – AMEN-PB). Na audiência em questão, estavam presentes, além da AMEN-PB, o Coletivo Moto Brabas (DF), Coletivo de trabalhadoras por aplicativos de João Pessoa – Motogirls JP e o coletivo Garota Motoka (GO). Pela dificuldade de deslocamento, outros coletivos foram convidados, mas não conseguiram estar presentes.
Representando o Coletivo Moto Brabas, Maria Carolina relatou que começou trabalhando na modalidade OL do iFood, mas que logo teve que passar a trabalhar no modelo conhecido como ‘Nuvem’, em razão da necessidade de cuidar de seu filho. A flexibilidade na jornada, apesar das extensas horas trabalhando em cima de uma moto, é apresentada pelas mulheres como uma das vantagens desta atividade. Como Nuvem, sabe-se que a remuneração tende a ser menor, pois as demandas tendem a ser menores em relação às distribuídas àqueles que estão na modalidade OL. Além disso, Carolina também relatou o drama vivido por sua família por conta dos vários acidentes sofridos, uma vez que seu marido também é motoboy. Eles não obtiveram nenhum auxílio da empresa e seguem endividados por conta dos gastos com os cuidados médicos. Atualmente, além de trabalharem como entregadores, eles abriram uma lojinha no iFood para vender dindin (geladinho), doces e salgados por encomenda. Carol trabalha ainda, em regime de 30 horas semanais, como motociclista celetista em um hospital importante de Brasília. Ela perdeu 50% da mobilidade de seu braço depois que se acidentou. Não por acaso, o maior desejo dela é deixar a condição de motogirl e seguir numa outra profissão. Em seu relato, nos disse que não deseja servir de exemplo para o seu próprio filho: “Já passei por tudo, acidente, assédio, já fui presa em apartamento por cliente, humilhada em restaurante. Só não fui roubada. No entanto, meu filho uma vez virou para mim e disse que queria ser motoboy do iFood para me ajudar a pagar a sua faculdade. Este é o meu maior medo!”.
Acerca das discriminações enfrentadas pelas entregadoras, a audiência contou com a participação da pesquisadora e doutoranda da UnB, Kethury Magalhães, que apresentou dados da sua dissertação de mestrado em Sociologia, intitulada “Meu capacete já viu muitas lágrimas”: o trabalho feminino plataformizado a partir das experiências do coletivo Moto Brabas. Kethury mostrou que as entregadoras são majoritariamente pardas e pretas, possuindo em geral entre 18 e 33 anos, mas também com percentual considerável delas possuindo mais de 39 anos. Ela identificou alto índice de evasão escolar e dificuldade de acesso ao mercado de trabalho formal por parte dessas trabalhadoras. Elas trabalham entre 72 e 90 horas por semana e possuem condições de trabalho ainda piores que os colegas homens, sendo frequentemente vítimas de assédio moral e sexual, especialmente quando sobem aos apartamentos para entregar os pedidos, e possuindo ainda mais dificuldade no acesso a banheiros em estabelecimentos comerciais. Além disso, enfrentam problemas de má alimentação e infecções urinárias. A pesquisadora ressaltou que há uma dificuldade enorme delas em conseguir acessar os espaços de poder e representação para poder apresentar suas demandas.
Enquanto o Brasil segue pressionado pelo lobby das empresas-plataformas, que acabam por impor suas demandas sobre as dos trabalhadores nas negociações com o governo e dentro do parlamento, atrasando qualquer forma de regulamentação que assegure direitos aos trabalhadores, em outros países, a regulação e o reconhecimento da subordinação laboral seguem conquistando espaços importantes. Este é o caso de Portugal, em que a suprema corte do país reconheceu a existência do vínculo de emprego entre quatro trabalhadores com a UberEats (o Acordão foi publicado no dia 15 de maio de 2025). Esta decisão foi tomada com base no artigo 12-A do Código de Trabalho português, aprovado em 2023, que reconhece a subordinação laboral e impede os “falsos autônomos”. Casos semelhantes têm ocorrido na Espanha, tomando-se como referências as Diretivas aprovadas na União Europeia.
Estes e outros casos demonstram que não é preciso elaborar novos estatutos para os trabalhadores, como pretende o PL 12/2024, pois a legislação trabalhista brasileira já contém inúmeras possibilidades para enquadramento destas novas categorias surgidas com as plataformas digitais, mantendo-se a tal flexibilidade e assegurando todos os direitos fundamentais do trabalho. O Procurador Regional do Trabalho e Professor da UFRJ, Rodrigo Carelli, ressaltou, na audiência, que o Brasil possui uma legislação protetiva mínima, que é a CLT e o artigo 7º da Constituição que garante os direitos fundamentais do trabalho. No entanto, é como se essa legislação não existisse: “Aqui apresentam-se trabalhadores pedindo o mínimo do mínimo do mínimo como se não houvesse instituições de proteção, como se não houvesse leis, como se não houvesse uma constituição, como se não houvesse pactos internacionais que defendem e já dispõem quais são os direitos mínimos que todo trabalhador possui”.
Também foi evidenciada pela audiência a situação de insegurança alimentar vivida por esses trabalhadores. Como foi lembrado por Ricardo Festi, segundo o relatório Entregas da fome, resultado de pesquisa coordenada por Daniela Frozi e Taís Lopes, 3 em 10 entregadores abordados numa significativa amostra nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro apresentaram algum nível de insegurança alimentar.
Representando o Ministério do Trabalho e Emprego, Carlos Alberto Grana, falou que há, de um lado, países, sobretudo os europeus e africanos, que têm buscado a classificação desses trabalhadores como empregados e, de outro lado, países, como os Estados Unidos, que pressionam para que não haja qualquer reconhecimento de vínculo desses trabalhadores. No caso brasileiro, ele afirmou que a Justiça do Trabalho tem possuído o entendimento favorável ao reconhecimento do vínculo, mas esbarra na resistência do Supremo Tribunal Federal. Afirmou que se espera um posicionamento mais claro do parlamento para que esse imbróglio se resolva. Apesar do desastroso resultado do GT de 2023 que discutiu a regulamentação do trabalho em plataformas digitais e que apresentou o PL 12/2024, que cria uma categoria nova de trabalhador que acabar por regular o “falso autônomo” como um subordinado com menos direitos que os previstos pela CLT e a Constituição Federal, ainda assim o representante do MTE afirmou que o governo apoiaria a regulamentação desse trabalho garantindo direitos trabalhistas a todos. Ele sugeriu que um projeto de lei deveria prever uma política de saúde para a categoria, com um prazo para inclusão desses trabalhadores no regime previdenciário.
Um aspecto importante ressaltado por todos os participantes da audiência foi a alta incidência de acidentes de trabalho nessa categoria. Janaína Siqueira, doutoranda na Faculdade de Medicina da UFBA, membro do grupo de pesquisa Episat Entregadores, evidenciou dados de pesquisa que revelam que a cada 10 entregadores, 4 sofreram ao menos 1 acidente de trabalho no período de um ano. Além disso, essa categoria apresenta uma frequência de transtornos mentais de 25%, 10% superior à estimada pela OMS em adultos economicamente ativos. A escassez de apoio para resolução de problemas durante o expediente de trabalho, baixa remuneração, o ritmo acelerado de trabalho, as condições insalubres, as jornadas extenuantes e os conflitos com os clientes estão entre as principais causas desses índices. A pesquisadora enfatizou que esses profissionais atuam com medo constante de sofrer novos acidentes de trabalho e em condições adversas e inseguranças.
Aspecto que foi também confirmado por Laura Valle Gontijo, doutoranda em sociologia na UnB, que ressaltou como a forma de remuneração sobre a qual esse trabalho se organiza incide de maneira particularmente negativa sobre a subjetividade desses trabalhadores. Ela sublinhou a existência de uma cadeia de intermediários que ganham uma porcentagem sobre a remuneração desses trabalhadores, atuando como agenciadores para as plataformas digitais. Também apontou que essa forma de remuneração por produção é uma fonte de dedução salarial, evidenciada no caso das plataformas nas quais o trabalhador paga uma taxa semanal para trabalhar.
Entre as dificuldades enfrentadas pelas lideranças para representar a categoria, são encontradas perseguições na forma de processos judiciais. Jr. Freitas, liderança dos entregadores de São Paulo, denunciou que vem se tornando réu em ações judiciais ajuizadas por parte do governo estadual e da prefeitura de São Paulo por ter feito críticas, em uma de suas exposições, ao governador Tarcísio de Freitas. Trabalhadores denunciaram que, ao contrário do que o iFood afirma, houve uma diminuição no valor do seguro em caso de invalidez parcial.
Um momento marcante da audiência foi quando os trabalhadores começaram a apresentar vídeos e depoimentos de vítimas de acidentes graves de trabalho que não receberam nenhum tipo de indenização. Foi relatado na audiência o caso de uma trabalhadora que recebeu uma indenização em caso de Invalidez Permanente por Acidente no valor de R$ 15.000,00, em março deste ano. A base de cálculo da indenização se deu sobre seguro no valor de R$ 60.000,00 e não R$ 120.000,00, como a plataforma afirmou garantir na audiência ocorrida no mês anterior. Advogados afirmaram que ela apenas teria direito ao seguro nesse último valor se tivesse amputado ambos os pés.
Quando a audiência estava prestes a ser encerrada, Henrique Carneiro, representante da Federação de Bares, Restaurantes e Hotéis do Estado de São Paulo (FHORESP), pediu a palavra para ressaltar o aspecto deletério da monopolização do segmento de delivery no Brasil para estes estabelecimentos e a economia brasileira, ressaltando as dificuldades que engendra particularmente para os estabelecimentos comerciais menores. “Os bares e restaurantes hoje sofrem de um sócio que tomou conta destes estabelecimentos, que não foi convidado a ser sócio e toma conta da atividade-fim hoje. E tem algo mais grave, a caixa preta do banco de dados: a gente não sabe quem são os entregadores, não sabe como eles qualificam o algoritmo para ranquear os bares e restaurantes…”.
Como encaminhamento da audiência pública, a deputada Érika Kokay constituirá um grupo com os entregadores e as entregadoras, juristas e membros do ministério público, além dos pesquisadores para elaborar uma proposta legislativa que garanta as condições mínimas para o exercício profissional desta categoria, protegendo a sua saúde física e mental
Apesar dos esforços de parlamentares progressistas em ouvir por meio das audiências públicas as pautas dos trabalhadores, representantes de movimentos, pesquisadores e juristas, há um longo caminho a ser percorrido até uma regulamentação séria e efetiva da atividade. Nesse espaço de tempo, é comum que as pautas sejam cooptadas por representantes corporativos, reduzindo-a a uma ‘regularização’ da ausência completa de direitos. Por esse motivo, é preciso estar atento para as demandas das massas trabalhadoras, para que estas possam refletir em conquistas reais de melhorias à categoria.
[Autoras e autores deste artigo integram o Fairwork Brasil, movimento por uma economia de plataformas mais justa. Saiba mais sobre ela]
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