Carta aberta dos economistas do IFFD a Lula

“É necessário que o Estado se responsabilize por criar empregos a todos que estejam dispostos a trabalhar por um salário digno e com direitos trabalhistas garantidos. Nunca faltou dinheiro para o governo federal realizar gastos na moeda que ele mesmo cria”

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Pelo Instituto de Finanças Funcionais do Desenvolvimento | Imagem: Fernand Léger, Os construtores (1950)

MAIS: Leia texto sobre a importância fundamental desta carta aberta para um Brasil pós-Bolsonaro

Prezado Presidente Luiz Inácio Lula da Silva:

É com ânimo e esperança que nós, do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD), lhe dirigimos aqui a palavra. Nosso Instituto reúne economistas e outros pesquisadores comprometidos com a divulgação das possibilidades abertas – para a garantia de direitos, o desenho de políticas públicas e a gestão macroeconômica – pelo reconhecimento da soberania monetária do Estado brasileiro, cujas finanças não se pode e não se deve pensar em analogia às finanças domésticas. Visamos responder em termos diretos, mas não simplórios, à questão colocada pelo sr. Presidente sobre o que fazer para resolver o problema do desemprego.

Sabemos todos que a riqueza apropriada pelo capital nada mais é que a riqueza produzida pelos trabalhadores. Sabemos que, ao longo dos séculos, o desemprego tem sido um fenômeno inerente ao sistema capitalista. Testemunhamos que, no Brasil atual, o desemprego atinge uma vasta camada dos nossos trabalhadores, e que muitos outros trabalhadores estão sujeitos à precarização das condições de trabalho, à informalidade e ao subemprego – e também às consequências pessoais e socialmente deletérias dessa circunstância.

Foi com muita clareza que, em evento recente, o senhor situou o problema do desemprego em vista dos consideráveis avanços tecnológicos que marcam a experiência contemporânea. Por um lado, não é possível ou desejável impedir os avanços tecnológicos, os quais têm potencial para gerar, além de ganhos de produtividade nas mais diversas atividades, a ampliação da oferta de bens e serviços e o advento de inovações aptas a facilitar e, até mesmo, a prolongar a vida humana. Por outro lado, é fato que na atual fase do capitalismo e na ausência de crescimento econômico e regulação estatal, os benefícios gerados pelo avanço tecnológico tendem a se concentrar, e têm se concentrado cada vez mais, nas mãos dos grandes empresários em detrimento dos trabalhadores e do conjunto da sociedade, num processo que amplia a desigualdade social e enfraquece a democracia. Assim, de maneira aparentemente paradoxal, os ganhos tecnológicos, ao invés de produzirem uma libertação da humanidade, podem agravar a deterioração do mundo do trabalho!

O desemprego tende a deteriorar o tecido social em diferentes esferas: piora dos índices de fome e pobreza; agrava problemas relacionados à segurança pública; desestrutura as famílias e sabota a formação de nossas crianças; aumenta a incidência de problemas de saúde mental, inclusive acompanhados da elevação do número de suicídios e da dependência química. Tais efeitos são ainda mais cruéis para parcelas da população já marginalizadas por uma série de fatores estruturais, como as mulheres, as populações negras e indígenas e a comunidade LGBT+.

Do ponto de vista macroeconômico, o desemprego significa um inadmissível desperdício do mais importante recurso produtivo de qualquer sociedade, o trabalho, que poderia ser direcionado para a resolução das nossas inúmeras carências sociais e de infraestrutura. Todos os brasileiros e brasileiras devem ter o direito de comer três refeições por dia com tranquilidade, tendo a segurança de sempre poderem alcançar seu sustento material com dignidade. Para isso, é necessário que o Estado se responsabilize por criar, ele mesmo, os empregos necessários a todos aqueles que estejam dispostos a trabalhar por um salário digno e com direitos trabalhistas garantidos. Programas de transferências de renda podem e devem vir em socorro dos que não têm condições de trabalhar, ou que não devem fazê-lo. Mas para o caso daqueles que podem e querem trabalhar, mas não encontram emprego digno, cabe ao Estado empregá-los diretamente em um Programa de Garantia de Emprego (PGE), desenhado e gerido para esses fins.

O Programa de Garantia de Emprego é uma política pública permanente que fornece oportunidades de emprego para qualquer pessoa que deseja trabalhar, independentemente de origem social ou étnica, gênero, faixa etária (respeitada a legislação restritiva do trabalho infantil) ou mesmo de qualificações profissionais ou experiência laboral prévia, qualquer que seja a situação da economia. Ainda que seja uma política permanente, o número de pessoas absorvidas no Programa deve variar inversamente ao comportamento do ciclo econômico: em momentos de expansão da economia, espera-se um número menor de trabalhadoras e trabalhadores façam parte do Programa, que deverá se expandir novamente quando a economia mostrar sinais de desaceleração.

As atividades a serem desempenhadas dentro do Programa de Garantia de Emprego visam produzir bens e serviços públicos em diversas áreas não concorrentes com os serviços e empregos públicos tradicionais, de acordo com as carências locais e avaliadas a partir das preferências democráticas dos membros de cada comunidade. Entre as atividades que podem ser desenvolvidas estão: o reflorestamento, a manutenção de árvores e bosques urbanos; o cuidado de idosos, adolescentes e crianças; as aulas de reforço escolar; as aulas de atividades lúdicas, de esportes e artes; a manutenção e melhoria de espaços públicos; a realização de pequenas obras de infraestrutura e zeladoria; a produção e distribuição de alimentos orgânicos em centros urbanos, e demais atividades demandadas pela comunidade local e que não agridam o meio ambiente.

O Programa de Garantia de Empregos também é uma solução para os desafios impostos pela acelerada fragilização das relações trabalhistas decorrentes da nova forma de gestão do trabalho através de plataformas digitais – a chamada “uberização”, na qual o trabalhador presta serviços conforme a demanda e sem que haja vínculo empregatício ou qualquer direito garantido. Isso porque o Programa de Garantia de Empregos, ao ser implementado, assegura não só a concretização e efetividade do salário mínimo na economia, mas, também, consolida os direitos trabalhistas, como o respeito pela carga horária semanal, férias e todas as demais previsões trabalhistas consolidadas. Aliás, a possibilidade de determinação do teto de carga horária para um dado salário pode ser um poderoso instrumento para a repartição dos ganhos de produto resultantes das novas tecnologias.

Ainda que nenhuma experiência pretérita tenha sido tão ousada como a que estamos propondo, vários países já fizeram experiências com programas de garantia de emprego. EUA, Índia e Argentina já implementaram, cada um à sua maneira, programas similares visando assegurar o direito ao emprego e à seguridade social. O exemplo americano vem do New Deal de Roosevelt (1932). Em 2005, a Índia implementou o NREGA, em vigor até hoje, empregando mais de 128 milhões de pessoas nas áreas rurais – uma lei que, de tão relevante, recebeu o nome da mais destacada personalidade indiana do século XX, Mahatma Gandhi. Em 2002, a Argentina implementou o plano Jefes y Jefas de Hogar — mais modesto do que os casos citados anteriormente, mas muito efetivo no combate à fome e à miséria. Mais recentemente, tivemos a implementação de um experimento de garantia de empregos na Áustria, inicialmente desenvolvido na cidade de Marienthal, onde é oferecida a garantia de um emprego devidamente remunerado a todos os residentes que estejam desempregados há mais de 12 meses.

O Programa de Garantia de Emprego brasileiro poderá ser financiado sem dificuldade pelo governo federal, que goza de soberania monetária e pode, portanto, gastar o que for necessário para evitar o desperdício de sua força de trabalho e o sofrimento de pessoas desempregadas e de suas famílias. Como foi possível verificar de maneira cristalina durante o combate à pandemia em 2020, não falta e nunca faltou dinheiro para que o governo federal realize gastos na moeda que ele mesmo cria. E enquanto houver mão de obra desempregada em nossa economia, será sempre possível utilizar a capacidade irrestrita do Estado brasileiro de realizar seus pagamentos para dar proveito pleno ao potencial produtivo de nossos trabalhadores. Um governo verdadeiramente responsável com sua população deve encarar o desemprego como uma epidemia inclemente que, sem a devida proteção, espalha suas consequências nefastas sobre o conjunto da sociedade. Acreditamos que a vacina mais eficaz contra a epidemia do desemprego é o Programa de Garantia de Emprego como uma política permanente.

Certos de que o seu futuro governo representará significativos avanços para o Brasil em nossa caminhada em direção à justiça social.

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