Quem ganha com o fim do licenciamento ambiental?

Devastar é uma ordem. Eis o desejo da máquina transnacional de extração, processamento e exportação de commodities, num país regredido à periferia do capitalismo tardio. Mas estão reservadas surpresas aos que tentam silenciar o que é vivido e rememorado de forma coletiva

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É o que anunciam os votos da distorcida maioria parlamentar no Brasil que derrubaram os vetos presidenciais ao PL da devastação (Projeto de Lei 151.90/2025). Presente de Natal antecipado de valor incalculável oferecido para os patrocinadores do capitalismo brasileiro de desastres: um licenciamento ambiental mormente declaratório. 

Esta lei de exceção, em vias de ser promulgada, foi feita sob medida por advogados da Frente Parlamentar do Agronegócio e das grandes empresas de mineração para legalizar a apropriação de bens públicos nacionais e seu butim generalizado. Trata-se de um acordo estrutural entre frações do grande empresariado neoextrativista e oligarquias regionais conexas para amortecer a democracia por dentro, desativando potenciais mecanismos de regulação e controle das grandes empresas pela sociedade.

O truco está posto pelos Presidentes da Câmara e do Senado: depois de presos os líderes do golpismo e investigados os elos do centrão e do bolsonarismo com o crime financeiro organizado, vejam quem manda agora. As grandes empresas de commodities e suas bancadas de estimação no Congresso não querem admitir sequer marcos mínimos para regulamentar sua corrida desenfreada por terra e território – que vai atropelando povos, biomas e cidades.

Para evitar recortes e caixinhas convenientes, é preciso ressaltar que as dinâmicas de destruição, características da agenda anti-ambiental são replicadas e se redobram em agendas anti-indígena, anti-quilombola, anti-cidade e anti-povo. Por isso não se trata de defender um “tema” ou algo separado. Não há como separar a desenvoltura dos negócios intensivos em recursos naturais do retraimento prático das normativas ambientais, elas mesmas culpadas e incômodas, mesmo quando caladas e inoperantes. Por isso aprovaram este vale-tudo, sem mais cinismos, mesuras ou temores de represálias judiciais.

Basta ver o começo e o fim dessa história: o que era aceito proforma como premissa de legitimidade e soberania nacional entre as décadas de 1980 e 1990 passou a ser representado no discurso empresarial como trava e custo adicional, notadamente a partir do boom de commodities nos anos 2000. Processos de privatização, desregulamentação e liberalização econômica nas últimas três décadas aferraram o país a um modelo de especialização produtiva em suprimentos de matérias-primas. E assim como o hábito faz o monge, o nosso regressivo modelo econômico modula a legislação ambiental à sua imagem e semelhança.

O sequenciamento de arranjos de poder em que agentes privados e agências públicas fundem-se no intuito de intensificar a exploração incondicionada de recursos naturais, implica em uma política de tábula rasa de regulações atinentes ao uso e função não apenas da terra e do território como um todo. Território reconcebido como zona de livre exploração e comércio, não como lugar de sociabilidades diversas e infindas.

Ataque em bloco e simultâneo, para ampliar o alcance dos vetores da pilhagem e extermínio, ensinam os manuais dos estrategistas da guerra assimétrica. Basta criar um bode expiatório que cole: IBAMA, FUNAI, indígenas, ongs, movimentos sociais etc. Qualquer espantalho que sirva para conduzir alguma bolha enraivecida contra estruturas regulatórias incompletas ou sucateadas que passam ser as vilãs do momento. 

O emblema que adquiriu o PL lhe caiu como luva: devastar é uma ordem. Eis o desejo da máquina transnacional de extração, processamento e exportação de commodities. A agenda antiambiental, que prossegue e se aprofunda, é a agenda do mundo corporativo que se expande contra todos os outros mundos sociais e ecológicos possíveis. E é por isso este Brazil Inc. tanto depende da livre implantação de minas, pastagens e plantations no tamanho e no volume que forem definidos pelas geometrias cambiantes das chamadas cadeias globais de valor.

A pergunta “Qual democracia?” é necessariamente antecedida pela pergunta “Qual soberania?”. Durante a vigência do Tarifaço imposto pelo Império, setores do agro e da mineração receberam sobejas compensações com recursos públicos. Um enorme esforço diplomático foi empreendido para a retirada de sobretaxas que minariam a pujança da “economia brasileira”. Desfeito o Tarifaço, por meio de acordos sub-reptícios envolvendo terras raras e sobreoferta elétrica para datacenters, e mantidas as benesses concedidas tarifaço, o resultado é um “fogo amigo”, de volta aos “inimigos internos”, uma espécie de tarifaço antiambiental e antinacional, que manda às favas qualquer tipo de contrapartida em termos de emprego, reconhecimento de comunidades tradicionais e proteção dos nossos biomas.

A institucionalização dos interesses diretos dos conglomerados especializados na degradação ambiental e social demonstra que a única competitividade que os capitais fincados no Brasil conhecem é a competitividade espúria, uma competição baseada na minimização dos padrões de reciprocidade – o que dá vazão para limpezas étnicas e sociais profundas.

A trajetória do autolicenciamento dos megaempreendimentos privados chega agora ao clímax da diligente e domesticada chancela “pública” que os imuniza contra eventuais contestações jurídicas, técnicas e sociais. Emplacado este dispositivo de força, nada mais poderia de abalar acordos financeiros e setoriais previamente estabelecidos, apostam. Prognósticos de lucratividade nos marcos desta institucionalidade ambiental rebaixada viram quase-certezas, comemoram.

Surpresas estão reservadas para os que apostam no silenciamento do vivido e rememorado de forma coletiva. Diante deste mortífero presente natalício, despontam novos futuros de vida à vista.

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