Mudanças climáticas: assim as favelas se preparam

Vítimas maiores do aquecimento global, as comunidades vão à luta. Multiplicam-se hortas comunitárias, cooperativas de reciclagem, aplicativos de alertas contra desastre e cinemas a céu aberto. Vale conhecê-los e perceber: falta, agora, a ação do Estado

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Por Gizele Martins, Juliana Pinho e Clara Polycarpo, no Wikifavelas

Título original:
Os impactos climáticos nas favelas e nas periferias do Brasil e as soluções que vêm do povo!

O dia 16 de março foi escolhido, no Brasil, como o Dia Nacional de Conscientização sobre as Mudanças Climáticas, instituído pela Lei nº 12.533/2011. Neste contexto, e em ano de Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 no Brasil (COP30), o Dicionário de Favelas Marielle Franco traz para discussão a emergência das favelas e periferias diante das injustiças ambientais e o agravamento da crise climática. Esses territórios já são afetados pelos mais variados extremos climáticos — tragédias que afetam diretamente o funcionamento normal de uma comunidade, causando perdas materiais, danos ao ambiente e à saúde da população. Vimos isso acontecer, por exemplo, pelos extremos de chuvas torrenciais que assolaram estados como Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, e por uma das maiores secas da história, que acometeu diversas regiões, do Sudeste ao Nordeste. Por ainda não sermos cidades resilientes — e nossas favelas muito menos —, as pessoas sofrem cotidianamente com essa realidade.

Além disso, os primeiros meses do ano de 2025 têm também registrado um aumento assustador das temperaturas nas grandes cidades: o dia mais quente do Rio de Janeiro em 2025 foi em fevereiro, quando a temperatura chegou a 44°C. Este foi o maior valor registrado na cidade desde 2014, quando começaram as medições do Sistema Alerta Rio. O recorde de sensação térmica foi de 62,3°C, em Guaratiba, Zona Oeste da cidade. Enquanto isso, as praias lotadas da Zona Sul do Rio viraram manchetes, com fotos e narrativas romantizadas pela mídia comercial.

Não há mais como negar. Populações de todo o mundo vivem hoje sob graves consequências das mudanças climáticas, resultado das explorações de recursos que, principalmente, países ricos e suas empresas cometeram e ainda cometem ao longo dos séculos. Estudiosos sobre o tema, organizações sociais e populações originárias por anos fazem alertas e lutam contra essas explorações e impactos nos seus devidos territórios. É preciso falar sobre o racismo ambiental, sobre quem são os povos mais atingidos pela negligência do Estado, pela ausência de políticas e de soluções concretas, para além das discussões técnicas, caras, futuristas e, em geral, fora da realidade.

As responsabilidades dos governos e das empresas

Segundo a campanha da Organização das Nações Unidas com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), registros dão conta que, desde 1800, as atividades humanas têm sido o principal impulsionador das mudanças climáticas, principalmente devido à queima de combustíveis fósseis como carvão, petróleo e gás. “A queima de combustíveis fósseis gera emissões de gases de efeito estufa que agem como um grande cobertor em torno da Terra, retendo o calor do sol e aumentando as temperaturas. Exemplos de emissões de gases de efeito estufa que estão causando mudanças climáticas incluem dióxido de carbono e metano, vindos do uso de gasolina para dirigir um carro ou carvão para aquecer um prédio, por exemplo”. O desmatamento de terras e florestas também pode liberar dióxido de carbono, assim como aterros para lixo são uma das principais fontes de emissões de metano. Energia, indústria, transporte, edificações, agricultura e uso da terra estão entre os principais emissores.

No Brasil, um país de tamanho continental, conhecido mundialmente pela região amazônica, os impactos são diversos. Apesar de ter passado por um processo de desindustrialização no início deste século, o agronegócio segue como uma das principais fontes de produção e exportação, um dos maiores emissores de gases poluentes — junto ao petróleo, energia não renovável. Nos últimos anos, inclusive, em razão da manutenção de uma política de investimento ao agro, desmatamentos e queimadas devastaram florestas e populações. Por isso, o país possui muitas responsabilidades.

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram a dimensão das mudanças climáticas — que se manifestam, por exemplo, em ondas de calor. “No período de referência, entre 1961 e 1990, o número de dias com ondas de calor era de sete e se ampliou para 52 dias no período entre 2011 e 2020. As precipitações nos últimos anos reduziram em uma média de 10% a 40% no Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste, contribuindo para a severa seca de 2024”. Nesta mesma pesquisa, é revelado que, por outro lado, “o Sul e parte de São Paulo e Mato Grosso do Sul apresentaram um aumento de 10% a 30% nas chuvas”. Ainda de acordo com o Instituto, essa distribuição irregular das precipitações, combinada com outros fatores como queimadas provocadas, intensificou os incêndios florestais em mais de 60% do território nacional. Além disso, “o número de dias seguidos sem chuva no país cresceu 25% em 60 anos, passando de 80 para 100 dias, em média. Fato que reforça como caminhamos para uma piora no âmbito climático é que a maior parte desse aumento se deu nos últimos 30 anos, com o acréscimo de 15 dos 20 dias adicionados à média”.

Um estudo da Coppe/UFRJ sobre estratégias de adaptação às mudanças climáticas na cidade do Rio de Janeiro identificou o potencial de exposição e avaliou a vulnerabilidade de várias zonas da cidade. Diante de um cenário de mudanças climáticas e crise ambiental, é notório que favelas e periferias de todo o país tendem a ser ainda mais afetadas, entendendo que se trata de espaços negligenciados pela ausência de políticas públicas e que têm constantemente seus direitos violados, principalmente, os direitos à saúde, à educação e ao saneamento. A falta de infraestrutura adequada, aliada à escassez de áreas verdes e serviços públicos, intensifica os efeitos das mudanças climáticas nas favelas, perpetuando um ciclo de desigualdade ambiental. Isso quer dizer que os moradores dessas áreas vulneráveis enfrentam dificuldades constantes para ter acesso a benefícios ambientais essenciais, como ar limpo, água potável e espaços verdes. Ao mesmo tempo, eles estão continuamente expostos a riscos ambientais maiores, como poluição, enchentes e deslizamentos.

Gabriela Santos, moradora do Complexo do Alemão, na Zona Norte do município do Rio de Janeiro, e co-fundadora da ONG Voz das Comunidades, graduanda em geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), dedica-se a investigar potencialidades dos territórios e mudanças climáticas, com foco em mobilização e criação de soluções inclusivas. Ele afirma, em entrevista ao InVivo – Museu da Vida Fiocruz: “as favelas enfrentam desafios únicos, como alta densidade populacional, infraestrutura precária e condições de habitação inadequadas, que as tornam especialmente suscetíveis aos impactos das mudanças climáticas”.

A questão habitacional e de saneamento básico são históricos problemas enfrentados pela população favelada e periférica. Além dos impactos climáticos, essa falta de estrutura habitacional prejudica a saúde da população favelada, pois a falta de acesso à água potável e a um ambiente com luz solar, aumentam os riscos de doenças como a tuberculose, por exemplo. Segundo o Boletim Epidemiológico da Tuberculose do Ministério da Saúde divulgado em 2022, pela primeira vez em uma década, a taxa de óbitos por tuberculose a cada 100 mil habitantes aumentou. “Pelos dados de 2021, o Rio de Janeiro é o segundo estado com maior incidência da doença, com 67,4 casos a cada 100 mil habitantes, atrás apenas do Amazonas, com 71,3. O aumento registrado não foi somente na taxa de mortalidade; a de letalidade também subiu”. Segundo o Ministério da Saúde, em 2019, a letalidade no Rio de Janeiro era de 6,58%; em 2021 a taxa subiu para 6,72%.

A essas históricas ausências de direitos que tornam a vida dos favelados e periféricos do país mais vulneráveis diante da grave crise climática atual, são nomeadas como “racismo ambiental”. Desde 2010, o Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, um projeto da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) cujo objetivo é apresentar a visão das populações atingidas por essas pautas, suas demandas, estratégias de resistência e propostas de encaminhamento, faz um levantamento de conflitos socioambientais no país. Até abril de 2022, os pesquisadores já haviam contabilizado 615 conflitos. A análise desses dados evidencia o racismo ambiental: São 184 casos de lutas de povos indígenas por seus direitos, 134 de quilombolas, 74 de ribeirinhos, 68 de comunidades urbanas, entre outros. O Mapa, ao ser construído, levou em consideração o tipo de população atingida e o local do conflito, como por exemplo: povos indígenas, operários, quilombolas, agricultores familiares, moradores em encostas, ribeirinhos, pescadores, população periférica, tanto em áreas urbanas quanto rurais. Ainda segundo o estudo, foi considerado “a síntese do conflito e o contexto ampliado do mesmo, apresentando os principais responsáveis pelo conflito, as entidades e populações envolvidas na luta por justiça ambiental, os apoios recebidos ou não (como participação de órgãos governamentais, do Ministério Público e de parceiros da sociedade civil), as soluções buscadas e/ou encontradas”.

Quais as soluções criadas pelas favelas e periferias?

Diante de tantas circunstâncias que deixam escancaradas a negligência e a falta de políticas públicas para as favelas e periferias, os moradores – como é o movimento natural da comunidade – encontram meios de sanar algumas dessas questões. Como exemplo disso, Lorena Froz, nascida e criada na Maré, favela localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro, é fundadora do ‘Faveleira’, Coletivo cujo objetivo é produzir conteúdos ligados ao meio ambiente com pessoas que moram em favelas. “Quando começam a falar de justiça climática sempre falam de algo muito externo, algo muito de fora, e a gente esquece de discutir o que está acontecendo aqui no micro. No Conjunto de Favelas da Maré, por exemplo, é muito preocupante quando a gente pensa na crise climática que acontece na região.”, diz a engenheira ambiental. Para Lorena, é importante que se aborde a problemática do tema ao dia a dia da população: “A gente pode falar sobre crise climática e sustentabilidade falando sobre absolutamente qualquer coisa, está inserido em absolutamente tudo. Não tem como a gente viver ignorando essas duas temáticas.”, complementa.

Outro exemplo é a Rede Favela Sustentável, um projeto da Comunidades Catalisadoras (ComCat) desenhado para construir redes de solidariedade, dar visibilidade, e desenvolver ações conjuntas que apoiem a expansão de iniciativas comunitárias que fortalecem a sustentabilidade ambiental e a resiliência social em favelas de toda a região metropolitana do Rio de Janeiro. A Rede é formada por 700 integrantes, sendo mobilizadores comunitários de mais de 300 favelas do estado do Rio de Janeiro, com objetivo de trabalhar integrados na luta por justiça climática através da realização do potencial das favelas como modelos de comunidades sustentáveis.

Reaproveitando resíduos e recriando a partir de sucatas, Valdirene Militão, também do Conjunto de Favelas da Maré, trabalha em prol da sustentabilidade e da emancipação econômica das mulheres. Por meio de oficinas, ela as ensina a reaproveitar restos de materiais das mais variadas origens para comercializá-los de diferentes formas, o que possibilita a geração de renda para as artesãs. Além disso, Valdirene fomenta outras iniciativas sustentáveis, sendo uma das idealizadoras do Projeto Ricardo Barriga, que surgiu na pandemia do coronavírus, em 2020, cujo atividades desenvolvidas têm por objetivo promover a cultura da sustentabilidade, como a oficina de sabão feito com óleo de cozinha usado.

Outra iniciativa que usa óleo de cozinha usado é de Begha Silva, também morador da Maré, que recolhe o material para financiar seu projeto de cinema a céu aberto. A ideia surgiu em 2013, enquanto Begha, que trabalha usando uma caixa de som e uma bicicleta fazendo anúncios pela favela, notou a curiosidade com que os pequenos acompanhavam o seu trajeto. O ‘Cinema do Beco’, como ficou oficialmente conhecido, é itinerante e transita por todas as favelas que compõem a Maré, compartilhando cultura e conhecimento com crianças e jovens do território. Assim como Bhega, temos também trabalhos sobre sobre sustentabilidade e ação ambiental nas favelas, como uma campanha que transforma óleo reciclado em cestas básicas, o uso de energia solar no Vidigal, a Horta-Escola Comunitária Maria Angu na Favela da Kelsons e o biossistema de saneamento ecológico do Vale Encantado, que trata 100% do esgoto da comunidade.

Inclusive, em junho 2022 aconteceu um encontro para construção da “Carta de Direitos Climáticos da Maré”, organizado pelo The Climate Reality Project Brasil em parceria com as organizações e iniciativas Cocô Zap, Data_Lab, Faveleira, Raízes da Mata Maré e Redes da Maré. O evento contou com a presença de 29 moradores do território e facilitadores. Eles debateram os impactos do clima em suas vidas e selecionaram 4 eixos temáticos para criar demandas que buscam construir um futuro melhor para a comunidade em tempos de emergência climática. Este eixo foi também considerado no Plano de Ação Popular do CPX, do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, mobilizado pelo Instituto Raízes em Movimento, em parceria com o Ibase, a Agência do Bem e a Casa Fluminense.

A constatação sobre os efeitos catastróficos do atual modelo agrícola praticado pelo agronegócio suscitou, desde a segunda metade do século passado, debates sobre um modelo de desenvolvimento econômico que não ponha em risco a sociedade, a vida humana e o meio ambiente. Inúmeros esforços vêm sendo empreendidos para evitar as tragédias ambientais, cada vez mais comuns, e que atingem especialmente as populações mais vulneráveis. Falar em “agroecologia”, portanto, deve levar em consideração questões sociais, políticas, ambientais, culturais, energéticas e éticas ao modo de produzir e se relacionar com a natureza. Hoje, as áreas verdes nas favelas são raras, como o Parque Ecológico da Maré, única área verde no Complexo da Maré (RJ) e a Serra da Misericórdia, patrimônio ambiental na Zona Norte do Rio de Janeiro. Diante desse contexto, há diversos projetos agroecológicos em favelas e periferias que atuam na preservação dos espaços verdes e têm promovido, historicamente, iniciativas que envolvem saúde, educação, cultura, infraestrutura e meio ambiente.

Os mutirões são um exemplo de prática comum a esses projetos, onde moradores se encontram para fazer a limpeza de espaços públicos, cuidar das hortas, realizar o plantio de mudas nativas e outras atividades, fortalecendo assim a participação comunitária e o sentido de pertencimento àquele território. Já as hortas comunitárias são uma importante ferramenta de garantia da segurança alimentar, com a produção de alimentos saudáveis e sem venenos para o consumo dessas populações. E o excedente geralmente é doado para famílias vulneráveis ou vendido em feiras do território ou do entorno, impulsionando a geração de renda dos envolvidos.

Além disso, muitos projetos agroecológicos nas favelas promovem rodas de conversas e oficinas sobre práticas como o plantio de mudas, a produção de hortas, o desenvolvimento de tecnologias agroecológicas, constituindo-se em espaços de partilha de saberes populares entre os moradores. Muito mais do que novas práticas e técnicas, a agroecologia é justamente o resgate dos saberes dos mais velhos, dos antepassados que produziam seus alimentos nas hortas e roçados de forma agroecológica.

Nas favelas da Babilônia e Chapéu Mangueira, na Zona Sul do Rio de Janeiro, existe desde 2011, o Favela Orgânica, uma iniciativa pioneira que trabalha com uma abordagem holística que engloba conceitos como consumo consciente, gastronomia alternativa, compostagem caseira e hortas em pequenos espaços, o projeto já levou suas oficinas e palestras para diversos estados do Brasil, bem como países como França, Itália e Uruguai. “O Favela Orgânica também promove uma mudança na cultura de consumo e desperdício: compra-se menos e gera-se mais comida com a mesma quantidade de alimentos quando esses são aproveitados integralmente. As partes não aproveitadas na produção da refeição passam a ser vistas como matéria prima para a produção de adubo e não mais como lixo”.

O Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), movimento social de quase três décadas e de alcance nacional, que tem como objetivo organizar o campesinato brasileiro e lutar por soberania alimentar, realiza em diversos estados brasileiros, junto às favelas, periferias, quilombos e campos, eventos, congressos e formações sobre agroecologia e clima para reversão das mudanças climáticas. Para eles, “a soberania alimentar e agroecologia é a grande chave para incluir milhões de famílias camponesas na produção sustentável de alimentos, promovendo produção de alimentos, protegendo a biodiversidade, as fontes de água e ampliando a oferta de comida de verdade, diversificada e nutritiva para o povo brasileiro”. Neste trabalho, eles criam ainda espaços de diálogo nas comunidades, cidades, escolas, institutos e universidades, a fim de debater com diferentes setores sociais, sobre os problemas da fome e das mudanças climáticas, assim como apresentar as alternativas estratégicas que o movimento propõe.

Temos ainda exemplos de soluções quando falamos de reciclagem. Em 2008, foi criado o Projeto Coletando, empresa criada por Saulo Ricci que possui 12 pontos de coleta distribuídos em comunidades de 6 estados do país. Nascido e criado na região do Jaraguá, Saulo encontrou inspiração na profissão da mãe para criar o “Coletando”, uma startup que incentiva a prática de reciclagem nas favelas do Brasil por meio de ecopontos itinerantes dentro de comunidades da periferia. “Esses ecopontos operam como franquias e são financiados por grandes corporações que, de acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), são obrigados a reciclar pelo menos 30% das embalagens que distribuem no mercado. Desse modo, os materiais recicláveis coletados são trocados por dinheiro creditado em uma conta digital no nome dos recicladores”.

Havendo percebido a importância existencial de as próprias favelas coletarem dados para incidência durante a pandemia, as Comunidades Catalisadoras (ComCat) promoveram, em 2022, o curso ‘Pesquisando e Monitorando a Justiça Hídrica e Energética nas Favelas’, no âmbito das discussões do Painel Unificador das Favelas e da Rede Favela Sustentável. O curso foi construído com o objetivo de desmistificar o processo de coleta e compreensão de dados e garantir o controle na geração de dados pelos próprios territórios, mirando a incidência política. O tema definido para o curso inaugural foi justiça hídrica e energética, pela natureza fundamental de ambos para o pleno desenvolvimento e inclusão das favelas.

Como resultado desses movimentos que vêm sendo feitos dentros dos territórios mais tradicionais do nosso país, organizações e movimentos sociais lançaram, em 2024, uma campanha por justiça climática no Rio de Janeiro e cobram mudanças na legislação municipal: “Rio, Capital do Caô Climático leva em pauta ondas de calor insuportáveis e enchentes causadas pelo colapso climático, que mais uma vez atingem com maior força as comunidades mais vulneráveis. Além disso, existem a Coalizão pelo Clima SP e a Coalizão pelo Clima RJ, ambos grupos de articulação de ativistas que desejam reverter o colapso climático em seus respectivos estados. A Marcha Global pelo Clima é realizada mobilizando iniciativas de lideranças, coletivos e ativistas da área ambiental e a sociedade civil para se reunirem em prol do direito de um futuro mais justo e saudável. Para conhecer melhor cada uma destas iniciativas apresentadas aqui no artigo, leia o Dicionário de Favelas Marielle Franco.

Mas o que os governos têm feito?

O Brasil está se preparando para receber a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, a COP30, que ocorrerá em novembro no estado do Pará, na região Norte. Entre os temas discutidos durante todo o evento, destacamos: 1. Adaptação às mudanças climáticas; 2. Preservação de florestas e biodiversidade; e 3. Justiça climática e os impactos sociais das mudanças climáticas. Mas, para além dos discursos e das mesas de debate, o que temos efetivamente?

Quando falamos de políticas públicas pensadas para sanar esse problema, é difícil mapear o que de fato é executado por parte do estado. Em Manguinhos, no Rio de Janeiro, há a maior horta comunitária da América Latina. Ocupa espaço equivalente a quatro campos de futebol e chega a produzir duas toneladas de alimentos por mês. Foi criada em 2013. É originária do programa Hortas Cariocas, desenvolvido pela Prefeitura do Rio de Janeiro. Ainda sobre a cidade carioca, foi desenvolvido o PDS – Plano de Desenvolvimento Sustentável e Ação Climática da Cidade do Rio de Janeiro, documento cujo objetivo central é a construção das políticas municipais alinhadas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, e assim nortear as ações da Prefeitura ao longo das diferentes administrações.

No âmbito federal, o Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) para 2025 reduz os recursos que serão empregados nas áreas de saneamento e urbanismo, segundo análise do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Segundo o estudo, o orçamento de iniciativas para o saneamento foi reduzido de R$3,1 bilhões em 2024 para R$1,9 bilhão em 2025, enquanto os projetos de urbanismo passarão a contar com R$2,8 bilhões este ano ao invés dos R$3,2 bilhões do ano anterior. A análise frisa que o programa Periferia Viva, voltado ao “apoio à urbanização de assentamentos precários” vai sofrer um corte de 30% em seu orçamento para o ano de 2025, enquanto o programa Cidades Melhores, que requalifica áreas urbanas e leva em conta a adaptação climática, será cortado pela metade; passará a contar com R$60 milhões para gastar em 2025, contra R$116 milhões que estavam a disposição em 2024. Os dados se referem a projetos do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e do Ministério das Cidades.

Em entrevista para o InVivo – Museu da Vida Fiocruz, a pesquisadora Julia Rossi destaca algumas ações que poderiam ser realizadas para solucionar alguns dos problemas encontrados. Suas linhas de pesquisa são desigualdade espacial e a luta por justiça ambiental, principalmente o acesso ao saneamento básico em favelas no Rio de Janeiro. “(…) ​​implantar sistemas de drenagem que utilizem técnicas como bioengenharia (área de atuação que une os conceitos de engenharia aos da biologia), valas de infiltração (vala escavada no solo utilizada no tratamento e manejo sustentável de águas residuais) e chão permeável para reduzir alagamentos”. Trazendo para a tecnologia, Julia aponta que “outra estratégia é desenvolver aplicativos que ajudem os moradores a reportar problemas, como alagamentos ou deslizamentos, permitindo o compartilhamento de informações sobre riscos. Sem falar na possibilidade de implementação de sistemas de monitoramento em tempo real para alertar sobre condições climáticas extremas e riscos potenciais”.

O certo é que, para cidades e favelas resilientes frente à emergência da crise climática, é necessário o reconhecimento das várias iniciativas de moradores e moradoras na conscientização e denúncia sobre o racismo ambiental e na mitigação de seus efeitos em seus territórios. Porém, a vida das populações é responsabilidade do Estado e seus governos, sendo o direito à natureza e ao meio ambiente um direito fundamental de cidadania. Para tanto, apenas mudanças estruturais a nível macro, como as relacionadas a políticas públicas de saúde e habitação para populações vulneráveis, bem como políticas de transição energética em consideração ao atual processo produtivo, serão capazes de garantir direitos básicos às populações. Os movimentos sociais são atores importantes no desenvolvimento de estratégias, mas não podem ser ainda mais onerados pela falta de ação dos poderosos. Como aponta Ailton Krenak, líder indígena, ambientalista e filósofo, o futuro é ancestral. Não teremos futuro sem o resgate das cosmovisões sustentáveis do passado e a responsabilização daqueles que historicamente nos destroem.

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