Veta, Lula! O PL da Devastação ameaça o Brasil
Projeto agravará tragédia climática que país já vive. Temperaturas disparam, especialmente em áreas desmatadas. Na Amazônia, secas e inundações alternam-se. Biodiversidade declina. Radiografia de um fenômeno negligenciado pela mídia
Publicado 18/07/2025 às 18:27 - Atualizado 18/07/2025 às 20:29

Por Luiz Marques
Título original:
Licença para matar
“A América do Sul está se tornando mais quente, mais seca e mais inflamável”.i Temperaturas de até 44,8 oC,ii ondas de calor mais longas, mais intensas e mais frequentes,iii alternância de secas e dilúvios sem precedentes, centenas de milhares de km2 de incêndios florestais criminosos, riscos agrícolas crescentes, poluição atmosférica, intoxicação por agrotóxicos (entre outros vetores de poluição). Milhares de mortes prematuras. Eis o despenhadeiro de calamidades da sociedade brasileira. Diante delas, a aprovação do PL da Devastação (Projeto de Lei 2159/21) generaliza a licença para matar. Dominado por 303 deputados e 50 senadores da Frente Parlamentar da Agropecuária, nosso Congresso abrevia, com mais essa lei nefasta, a data de validade de nossa sociedade. Neste artigo, analiso o ecocídio e a inviabilização do Brasil apenas pelo fator aquecimento.
1. Aquecimento nacional e disparidades regionais
Em fevereiro de 2025, Quaraí, no extremo sul do país, bateu em 43,8 oC e o Rio de Janeiro bateu em 44 oC, a mais alta temperatura registrada pelo Sistema Alerta Rio. No Protocolo de Enfrentamento ao Calor Extremo, esse Nível de Calor 4 (numa escala de 1 a 5) “está associado a um aumento de 50% na mortalidade por doenças como hipertensão, diabetes e insuficiência renal entre idosos”.iv Até 18 de fevereiro, o calor já havia levado mais de 5 mil cariocas a buscar atendimento médico em unidades do Sistema Único de Saúde (SUS).v E isso é apenas o começo. A Figura 1 mostra a evolução do aquecimento médio no país desde 1961.

Figura 1 – Anomalia de Temperatura Média do Ar no Brasil por ano desde 1961 em relação à média histórica de 1991 – 2020 (o nível zero desse gráfico). Fonte: “Ano de 2024 é o mais quente no Brasil desde 1961”. Inmet, 2 jan. 2025
Entre 1961 e 1997, todos os anos foram mais frios do que a média de 1991-2020. Mas a partir de 2012, com exceção de 2022, todos os anos foram mais quentes do que essa média, sendo que quatro anos no último decênio (2015 – 2024) foram mais de 0,5 oC mais quentes do que a média desse período de 30 anos. A média de temperatura nacional no período 1998-2024 foi 24,23 oC. A Figura 2 mostra a evolução do aquecimento no Brasil desde 1998.

Figura 2 – Temperaturas médias anuais desde 1998 e média histórica (1991-2020) no Brasil. Fonte: “Ano de 2024 é o mais quente no Brasil desde 1961”. Inmet, 2 jan. 2025.
Os anos 1998 – 2024 registraram um aquecimento brutal no Brasil. Na média, o ano de 2024 foi 0,79oC mais quente do que a média dos anos 1991-2020. Setembro de 2024, o mês mais quente em 63 anos, teve um desvio de 1,7oC acima da média histórica dos meses de setembro (1991-2020).vi Esse aquecimento médio nacional foi maior no Centro-Oeste e no sul da Amazônia, não por acaso as regiões mais devastadas pelo agronegócio. Em 2023 (média anual), partes do Mato Grosso e do sul do Pará estavam pelo menos 2oC mais quentes do que a média da temperatura do período 1991 – 2020. Além disso, partes dos estados do Amazonas, Pará, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul estavam entre 1,5oC e 2oC mais quentes do que a média desse período climatológico de referência. Repita-se: esses são os estados onde a vegetação nativa foi mais destruída pela soja e pela pecuária bovina. Dez capitais do Brasil sofreram um aquecimento entre 1oC e mais de 3 oC no inverno de 2023 em relação ao período 2001-2010, com ênfase em Cuiabá (+3,4 oC) e Campo Grande (+2oC). Em Manaus, o inverno de 2023 teve uma temperatura média de 30,1 oC, quase 2oC mais quente do que o registrado na primeira década deste século.vii
2. Desastres ambientais e chicotadas hidroclimáticas
Falamos acima no despenhadeiro de calamidades que assola o Brasil. Eis essas calamidades em números, desde 1990:viii
“O Brasil teve 64.280 desastres climáticos desde 1990, e há aumento, em média, de 100 registros por ano. Nos primeiros dez anos monitorados, foram 725 registros por ano. De 2000 a 2009, 1.892 registros anuais; de 2010 a 2019, 2.254 registros anuais e, nos últimos quatro anos (2020 a 2023), já são 4.077 registros por ano”.
O levantamento acrescenta que “os desastres climáticos no Brasil aumentaram 250% nos últimos quatro anos (2020–2023), em comparação com os registros da década de 1990”. Baseado em dados da Confederação Nacional de Municípios (CNM) de 2023, relativos aos anos 2013-2022, o relatório “Mudança do Clima no Brasil” (MCTI 2024) afirma:
“93% das cidades brasileiras (mais de cinco mil municípios) foram atingidas por algum desastre hidrometeorológico que culminou com o registro de emergências ou estado de calamidade pública, em decorrência de tempestades, enxurradas, inundações urbanas e/ou deslizamentos de terra. Ainda segundo a CNM, de 2013 a 2022, mais de 2,2 milhões de casas foram danificadas em todo o país devido a esses acontecimentos, afetando diretamente mais de 4,2 milhões de pessoas, que tiveram de abandonar as suas casas em 2.640 municípios de todo o país”.
Entre 2013 e maio de 2024, 94% dos municípios brasileiros haviam decretado estado de emergência ou calamidade pública. Entre 2013 e 2023, os eventos meteorológicos extremos mataram 2.667 pessoas e causaram ao país prejuízos de R$ 639,4 bilhões.ix Entre 2022 e 9 de maio de 2024, 2.709 municípios brasileiros tiveram decretos de emergência ou calamidade pública reconhecidos pelo governo federal.x Em julho de 2024, dos 5.565 municípios do Brasil, 3.587 enfrentavam graus variados de seca, dos quais 1.025 municípios com secas graves e 70 com secas extremas, sobretudo no estado de São Paulo.xi
O Brasil está sendo particularmente açoitado pelas chamadas “chicotadas hidroclimáticas”, ou seja, pelo movimento pendular cada vez mais extremo entre secas e enchentes.xii Sobre as secas, em 2024, o já citado relatório “Mudança do Clima no Brasil” advertiu:
“Considerando um aumento de 2oC na temperatura média global, o país poderá sofrer redução da precipitação anual total, a despeito do aumento de tempestades e de uma probabilidade até quatro vezes maior de ocorrerem secas severas em diversas regiões do país. Espera-se que esse nível de aquecimento global até 2050 leve à redução significativa do fluxo nos principais rios da bacia amazônica, ocasionando dificuldade no acesso à água e alimentos para as populações locais, com impacto significativo na subsistência das comunidades”.
Na Amazônia, essas secas têm se sucedido com crescente gravidade em 2005, 2010, 2015-2016 e 2023-2024, com mortandade de animais e vegetais. Mas as inundações invernais são igualmente crescentes. De 1995 a 2024, houve um aumento de 1.789% nos registros de eventos climáticos na Amazônia, com 1.425 ocorrências em 2024 contra 37 em 1995. Inundações são os eventos mais recorrentes na região, representando cerca de 64% de todos os desastres.xiii
Em 24 de janeiro de 2025, a cidade de São Paulo afogou-se em 121,8 mm de chuva em apenas duas horas (quase 122 litros de água por m2), o que corresponde a 41,7% da média histórica de precipitação de janeiro. A Defesa Civil de Minas Gerais noticiou que 135 dos seus 853 municípios estavam em seca emergencial em agosto de 2024, um número alcançado dois meses antes do que em 2023.xiv Mas em janeiro de 2025, as chuvas causaram 11 mortes em 44 cidades mineiras.xv O Rio Grande do Sul tem sofridos secas reiteradas. Mas em 2024 sofreu inundações catastróficas. Até início de julho de 2024, elas haviam afetado mais de 90% de sua área, atingido quase 2,4 milhões de pessoas e causado mais de 170 mortes humanas, além de incontáveis mortes de outras espécies. A Bacia do Guaíba recebeu acumulados de chuva superiores a 500 mm em 5 dias, com seu nível subindo 5,35 m, bem acima do da enchente de 1941.xvi É preciso situar o maior desastre ambiental do país no contexto de outros desastres ocorridos desde 2011. As enchentes e deslizamentos de janeiro de 2011 em Teresópolis e em geral na região serrana do Rio de Janeiro, mataram mais de mil pessoas entre mortes certificadas e pessoas desaparecidas, deixaram milhares de desabrigados e foram classificadas pela ONU como o 8º maior deslizamento mundial dos últimos 100 anos.xvii Em 2022, as inundações em Petrópolis (março, 534 mm de chuva em 24 horas) e em Pernambuco (maio-junho) mataram 238 e 133 pessoas, respectivamente.xviii No litoral norte de São Paulo, em fevereiro de 2023, elas deixaram um saldo de 65 mortes confirmadas e o maior acumulado de chuva até então no país: 682 mm em Bertioga e 626 mm em São Sebastião em 24 horas.xix Em suma, a emergência climática, os eventos meteorológicos extremos, as catástrofes provocadas pela Samarco, pela Vale e pela Braskem, a devastação da natureza e a intoxicação dos organismos por agrotóxicos – crimes de ecocídio e de destruição de vidas humanas e não humanas, que têm entre seus motores principais o agronegócio, a mineração e o garimpo – estão precarizando e degradando a sociedade brasileira a uma velocidade sem precedentes em nossa história.
3. Incêndios criminosos
Segundo o Global Forest Watch, as florestas tropicais primárias desapareceram em 2024 no mundo todo à taxa de 18 campos de futebol por minuto. No Brasil, a perda foi de 28,2 mil km2, sendo 67% dela por incêndios, como mostra a Figura 3.

Figura 3 – Perda de floresta primária no Brasil em 2024 em milhões de hectares. Em cada coluna, o segmento inferior (marron) mostra a perda de floresta primária por fogo; o superior, perda por outros fatores. Fonte: Elizabeth Goldman, Sarah Carter, Michelle Sims, “Fires Drove Record-breaking Tropical Forest Loss in 2024“. World Resources Institute, 21 maio 2025.
Em 2024, as queimadas no Brasil se estenderam por mais de 308 mil km2, um aumento de 79% (+136 mil km2) em relação a 2023 e a maior área desde 2019. O MapBiomas precisa que:xx
“Três em cada quatro hectares queimados (73%) foram de vegetação nativa, principalmente em formações florestais, que totalizaram 25% da área queimada no país. Entre as áreas de uso agropecuário, as pastagens se destacam, com 6,7 milhões de hectares queimados [67 mil km2] entre janeiro e dezembro do ano passado” (itálicos acrescidos).
4. Projeções do aquecimento e de seus impactos no Brasil
Cinco relatórios científicos anunciam um futuro tenebroso para o Brasil:
(1) O Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, criado em 2009 pelo MMA e o MCTI, com 345 cientistas, coordenados por Carlos Nobre e Suzana Kahn Ribeiro. Seu primeiro relatório de avaliação nacional (RAN1) foi publicado em 2013, editado por Tercio Ambrizzi e Moacyr Araújo;
(2) O relatório “Brasil 2040. Cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima”, publicado em 2015 sob a coordenação de Sérgio Margulis e Natalie Unterstell, com a participação de mais de 30 pesquisadores. O relatório foi desconsiderado pelo governo Dilma.xxi
(3) Carlos A. Nobre, José A. Marengo, Wagner R. Soares, Eduardo Assad, Roberto Schaeffer, Fabio Scarano & Sandra S. Hacon, Riscos de Mudanças Climáticas no Brasil e Limites à Adaptação, março de 2016.
(4) Carlos Nobre, Andrea Encalada (codiretores) et al., Science Panel for the Amazon, 2021, congregando mais de 200 especialistas nacionais e internacionais em diversas áreas socioambientais da Amazônia.
(5) O relatório “Mudança do Clima no Brasil – Síntese Atualizada e Perspectivas para Decisões Estratégicas” (2024), do MCTI, em parceria com o WWF, a Rede Clima e o Instituto Alana.xxii
Além disso, a evolução do aquecimento e de seus impactos no Brasil tem recebido estudos abrangentes de parte de cientistas e de instituições nacionais, como o Inmet, o Inpe, o MMA, o Cemaden, o MapBiomas (Observatório do Clima), entre outros. Eis o denominador comum desses estudos e relatórios: a inviabilização socioambiental do Brasil está cada vez mais, próxima. O estudo de 2016, acima citado, foi reelaborado em 2019 em um livro intitulado Climate Change Risks in Brazil. A primeira frase de seu Prefácio resume bem seu conteúdo: “Num cenário de altas emissões de gases de efeito estufa, o país tem alta probabilidade (acima de 70%) de aquecimentos maiores do que 4 oC antes do fim do século”.xxiii A Figura 4 mostra quatro cenários futuros de aquecimento no Brasil.

Figura 4 – Séries temporais de mudanças na temperatura média anual próxima da superfície (em oC) entre 1861 e 2300 em relação ao período pré-industrial (1861-1890) para o Brasil. As duas linhas pontilhadas verticais separam o aquecimento observado até 2005 e as projeções segundo quatro cenários até 2100 e até 2300. Fonte: Carlos A. Nobre, José A. Marengo, Wagner R. Soares (org.), Climate Change Risks in Brazil, Springer, 2019.
Essa Figura suscita quatro observações:
(1) Em primeiro lugar, é preciso entender bem seu vocabulário. Os quatro cenários descritos, adotados pelo IPCC, correspondem a quatro níveis de emissões de GEE e, portanto, de concentrações de GEE (ou CO2–equivalente, ou CO2e) em 2100, mensuradas em partes por milhão (ppm). Cada um desses cenários simula a evolução do forçamento radiativo, ou seja, o superávit de energia incidente do sol em 2100, em relação à energia dissipada pelo sistema Terra em Watts por m2 (W/m2, medido no topo da atmosfera). Essas diversas trajetórias são chamadas Trajetórias de Concentrações Representativas (de forçamento radiativo) (Representative Concentration Pathways ou RCP). A cada uma dessas trajetórias de forçamento radiativo corresponde uma dada concentração atmosférica de GEE em 2100. A Tabela 1 mostra essas equivalências, implicando diversos níveis de aquecimento médio no Brasil em 2100.

(2) Como mostra a Tabela 1, a trajetória RCP 8,5 W/m2 equivale a uma concentração atmosférica de cerca de 1.370 partes por milhão (ppm) de CO2e em 2100. Segundo o Global Monitoring Laboratory do NOAA, em 2023 essas concentrações atingiram 534 ppm (dos quais 419 ppm de CO2) e estão aumentando cada vez mais rapidamente. Entre 1994 e 2003, elas aumentaram 26 ppm; entre 2004 e 2013, 28 ppm; de 2014 a 2023, 36 ppm, e desde 2017, elas vêm aumentando 4 ppm todos os anos. Observa-se assim um salto de 2,6 ppm para 4 ppm em média por ano entre a década 1994-2003 e o quinquênio 2019-2023. A grande questão hoje para todos os brasileiros é a seguinte: essas concentrações podem atingir 1.370 ppm de CO2e em 2100? A resposta é SIM! Em primeiro lugar, obviamente, por causa do aumento da queima de combustíveis fósseis e da destruição das florestas, fatores diretamente antropogênicos. Em segundo lugar, por causa da ação crescente de diversas alças de retroalimentação no sistema Terra. Para o Brasil, a mais importante dessas alças é a decrescente capacidade de sequestro de CO2 pela fotossíntese das plantas, sob o efeito da degradação florestal, dos incêndios e do próprio aquecimento. “Em espécies tropicais, a fotossíntese começa a declinar por volta de 31°C. A 47°C, o maquinário fotossintético começa a ser permanentemente danificado”.xxiv James e Samuel Curran mostraram que “a taxa de sequestro natural de CO2 da atmosfera pela biosfera terrestre atingiu o pico em 2008. As concentrações atmosféricas aumentarão mais rapidamente do que antes, proporcionalmente às emissões anuais de CO2, já que esse sequestro natural está diminuindo em 0,25% ao ano”.xxv Além disso, diversos trabalhos científicos mostram crescente probabilidade de cruzamento iminente de pontos de não retorno (tipping points) na Amazônia e em outros biomas brasileiros. Cruzados esses pontos, a liberação de carbono por esses biomas tornará extremamente difícil, ou mesmo impossível, refrear o aquecimento e a perda de biodiversidade.xxvi
(3) A aceleração do aquecimento se evidencia também na trajetória de aumento dos forçamentos radiativos. Segundo o NOAA (AGGI),xxvii em 1979, o forçamento radiativo do planeta (o superávit de energia incidente do sol em relação à energia dissipada pelo sistema Terra, medido no topo da atmosfera) era de 1,79 Watts por m2 (W/m2). Em 2023, ele saltou para 3,48 W/m2, ou seja, um aumento de 94% em 44 anos. Mantida a atual trajetória, o forçamento radiativo do planeta até meados dos anos 2070 será de 6,92 W/m2. Ele pode, portanto, atingir 8,5 W/m2 em 2100. A aceleração em ambos os processos correlacionados – as concentrações atmosféricas de CO2e e o forçamento radiativo do planeta – mostram ser provável que o aquecimento no Brasil em 2100 seja da ordem de 6oC.
(4) A Figura 4 mostra que, em qualquer dos quatro cenários, o Brasil atinge um aquecimento médio de 2 C até 2030, em relação ao período 1861-1890. Em termos globais, esse aquecimento é previsto para o final dos anos 2030 ou nos anos 2040. O aquecimento médio no Brasil está se antecipando, portanto, em ao menos 10 anos em relação ao aquecimento médio global.
Em suma, mantido o cenário RCP 8,5 W/m2, que o PL da devastação agora aprovado pelo Congresso consolida, aquecimentos médios de 3oC, 4oC e 5oC são atingidos no Brasil por volta de 2050, 2070 e 2100, respectivamente. Yangyang Xu & Veerabhadran Ramanathan, entre muitos outros, consideram um aquecimento médio de 3oC como catastrófico e um aquecimento de 5oC a 6oC como: “desconhecido, acima de catastrófico, implicando ameaças existenciais”.xxviii
4. Conclusão
Se não houver mudança radical na composição de nosso Congresso em 2026, a data de validade da sociedade brasileira esgota-se em meados ou no terceiro quarto do século. Isso não é uma hipótese, é uma certeza, pois em um aquecimento médio de 4oC, regiões inteiras do país tornam-se inabitáveis. Mesmo num cenário otimista (RCP 4,5 W/m2), a Amazônia sofrerá até 2100 entre 250 e 365 dias por ano com temperaturas acima do limiar de letalidade (temperatura combinada com a umidade relativa do ar).xxix Carlos Nobre afirma que, no cenário 4oC, “toda a região equatorial se torna inabitável”. Salvador, por exemplo, afirma ele, torna-se inabitável durante mais de 200 dias por ano.xxx
A subserviência do poder executivo ao agronegócio deve dar lugar à defesa do povo brasileiro, não apenas pelo veto presidencial, mas sobretudo pela convocação da sociedade a reagir a um Congresso nacional que representa apenas interesses espúrios. Caso contrário, o governo se tornará cúmplice dessa licença para matar. A renúncia fiscal de R$ 158 bilhões em benefício do agronegócio (dados do ministro Fernando Haddad), um Plano Safra de R$ 516 bilhões, destinado sobretudo aos grandes proprietários, a liberação recorde de agrotóxicos,xxxi a insuficiente repressão aos incêndios florestais criminosos, bem como o negacionismo de Lula em relação mais exploração de petróleo, tudo isso mostra uma trágica incompreensão do que está em jogo: a sobrevivência de nossa sociedade. O país biologicamente mais rico do mundo é extremamente vulnerável à emergência climática e está em vias de se tornar inóspito à vida, com crescente mortandade de organismos humanos e não humanos por picos de calor, desastres ambientais, escassez hídrica, elevação do nível do mar, poluição químico-industrial e, provavelmente, novas epidemias. O ecocídio em curso no Brasil é também um genocídio do povo brasileiro. Isso porque muitos esquecem (e é importante repetir) o fato mais importante de todos: um território é um amálgama de sua diversidade civilizacional, biológica e climática e nenhuma sociedade tem chance de sobreviver sem a base geofísica e biológica que favorece sua permanência.
i Cf. Sarah Feron et al., “South America is becoming warmer, drier, and more flammable”. Communications Earth & Environment, 5, 501, 2024.
ii Cf. Phelan Chatterjee, “Brazil records its hottest ever temperature”. BBC News, 21 nov. 2023.
iii Cf. José A. Marengo et al., “Climatological patterns of heatwaves during winter and spring 2023 and trends for the period 1979–2023 in central South America”. Frontiers in Climate, 7, 12 fev. 2025; Marcos Pivetta, “Aquecimento global amplifica ondas de calor, que podem assolar cidades brasileiras até 15 vezes ao ano”. Pesquisa Fapesp, 350, 2 jun. 2025.
iv Cf. Barbara Souza, “Pesquisa relaciona calor extremo à mortalidade no Rio de Janeiro”. Agência FioCruz de Notícias, 14 fev. 2025. O artigo analisa uma pesquisa realizada por João Henrique de Araujo Morais na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), no âmbito do Programa de Epidemiologia em Saúde Pública.
v Cf. Francielly Barbosa, “Calor levou mais de 5 mil pessoas a buscar atendimento no Rio em 2025”. Agência Brasil, 20 fev. 2025.
vi Cf. “Brasil tem o setembro mais quente em 63 anos”. Inmet, 3 out. 2024.
vii Cf. “Das capitais brasileiras, 40% tiveram inverno mais quente da história”. ClimaInfo, 2 out. 2023.
viii Cf. Flávia Albuquerque, “Desastres climáticos aumentaram 250% nos últimos quatro anos no país”. Agência Brasil, 27 dez. 2024.
ix Cf. Patrícia Sinimbú, “94% dos municípios já sofreram emergência ou calamidade”. Agência Brasil, 20 maio 2024.
x Cf. Carlos Madeiro, “Chuva levou metade de cidades do país a emergência ou calamidade desde 2022”. UOL, 10 maio 2024. Agradeço a Jorge Abrahão, coordenador geral do Instituto Cidades Sustentáveis, por essa indicação.
xi Cf. “Brasil tem mais de mil municípios sob seca severa ou extrema”, ClimaInfo, 26 jul. 2024.
xii Cf. “Floods, droughts, then fires: Hydroclimate whiplash is speeding up globally”. University of California Los Angeles (UCLA), 9 jan. 2025.
xiii Cf. Thales Lima, “Desastres hidrológicos são os mais recorrentes na Amazônia Legal nos últimos 28 anos”. InfoAmazônia, 24 abril 2025.
xiv Cf. Dayres Vitoria & Guilherme Gama, “MG: 135 cidades estão em situação de emergência por conta da seca”. CNN Brasil, 4 ago. 2024.
xv Cf. Bel Ferraz, “Minas tem 44 cidades em situação de emergência devido às chuvas”. Estado de Minas, 8 jan. 2025.
xvi Cf. José A. Marengo et al., “O maior desastre climático do Brasil: chuvas e inundações no estado do Rio Grande do Sul em abril-maio 2024”. Estudos avançados, 38 (112), set-dez 2024.
xvii Cf. Amarílis Busch e Sônia Amorim, “A tragédia da região serrana do Rio de Janeiro em 2011: procurando respostas”, ENAP (Escola Nacional de Administração Pública). Casoteca de Gestão Pública, 2011.
xviii Cf. “Chuvas em Petrópolis já mataram 238 pessoas em 2022”. Poder 360, 22 mar. 2022.
xix Cf. “Litoral Norte de SP registrou maior acumulado de chuva da história”. Gov. do Estado de São Paulo, 20 fev. 2023.
xx Cf. “Área queimada no Brasil cresce 79% em 2024”. MapBiomas, 22 jan. 2025.<https://brasil.mapbiomas.org/2025/01/22/area-queimada-no-brasil-cresce-79-em-2024-e-supera-os-30-milhoes-de-hectares/#:~:text=%C3%89%20o%20que%20apresentam%20os,2019%20pelo%20Monitor%20do%20Fogo>.
xxi Cf. Claudio Angelo & Cyntia Feitosa, “País poderá viver drama climático em 2040, indicam estudos da Presidência”. Observatório do Clima, 30 out. 2015; Tatiana Dias, “Enchentes no RS: Leia o Relatório de 2015 que projetou o desastre – e os governos resolveram engavetar”. Intercept Brasil, 6 maio 2024.
xxii Cf. <https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/cgcl/arquivos/Relatorio_Mudanca_Clima_Brasil.pdf>.
xxiii Cf. Carlos A. Nobre, José A. Marengo, Wagner R. Soares (eds.), Climate Change Risks in Brazil, Springer, 2019: “In a high greenhouse gas emissions scenario, the country has a high likelihood (over 70%) of suffering a greater than 4 oC temperature rise before the end of the century”.
xxiv Cf. Erik Stokstad, “Hot zone”. Science, 12 jun. 2025: “In tropical species, photosynthesis starts to decline around 31°C. By 47°C, the photosynthetic machinery begins to be permanently damaged”.
xxv Cf. James C. Curran & Samuel A. Curran, “Natural sequestration of carbon dioxide is in decline: climate change will accelerate”. Weather, 80, 24 mar. 2025: “The rate of natural sequestration of CO2 from the atmosphere by the terrestrial biosphere peaked in 2008. Atmospheric concentrations will rise more rapidly than previously, in proportion to annual CO2 emissions, as natural sequestration is now declining by 0.25% per year”.
xxvi Cf. Gregory Munday et al., “Risks of unavoidable impacts on forests at 1.5 °C with and without overshoot”. Nature Climate Change, 15, 12 maio 2025, pp. 650–655. Outras referências em L. Marques, “Crossing Tipping Points in the Amazon Rainforest: The decisive decade”. The Highlander Journal, 3 (2), 2024, pp. 4–33.
xxvii Cf. NOAA, Global Monitoring Laboratory, Annual Greenhouse Gas Index (AGGI), 2024
<https://gml.noaa.gov/aggi/aggi.html>.
xxviii Cf. Yangyang Xu & Veerabhadran Ramanathan, “Well below 2 °C: Mitigation strategies for avoiding dangerous to catastrophic climate changes”. PNAS, 14/IX/2017: “>1.5 °C as dangerous; >3 °C as catastrophic; and >5 °C as unknown, implying beyond catastrophic, including existential threats”.
xxix Cf. Camilo Mora et al., “Global risk of deadly heat”. Nature Climate Change, 19 jun. 2017.
xxx Cf. Maysa Polcri, “Salvador poderá ficar inabitável durante 200 dias por ano”. Correio, 19 dez. 2024.
xxxi O governo Lula aprovou 663 novos produtos em 2024, os maiores números já registrados pelo Ministério da Agricultura e Pecuária. Cf. Ana Cristina Campos, “Registro de novos agrotóxicos segue em alta no Brasil, diz Mapa”. Agência Brasil, 15 dez. 2023; João Rosa, “Liberação de agrotóxicos bate recorde em 2024”. CNN, 28 jan. 2025.
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