Epidemias e a queda do céu

De doenças de branco morreram, desde a chegada dos primeiros europeus, milhões de indígenas. Agora vem, com a Covid, novo ataque – inclusive às nações isoladas. É preciso agir: não podem estar indefesos, os que protegem as florestas

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Por Angela Pappiani

“Antes do contato era muita casa, muita gente … cinco mil pessoas. Morreram, morreram assim, rápido, ninguém enterrava. Morreram como se fossem animais, o urubu tomava conta. Apareceu a febre que não conhecíamos, feridas no corpo como se estivesse queimado. O pajé e os mais velhos não sabiam como tratar daquela doença, não tinham remédio. A doença atacava o pulmão. Os guerreiros que eram muito fortes, que tinham sido curados com nossos remédios até de ferimento de bala, quando essa doença chegou, não tinham mais cura. A pessoa morria na rede, de febre, de fome, outro ia buscar remédio na floresta e morria lá. Muita morte, muita morte mesmo! … Essa foi a história Suruí… Aquele que não viu esse sofrimento, que não conhece a história e acha que é o dono do mundo, nunca vai ser o dono do mundo.”

(Relato de Anine Gaami Suruí no livro Histórias do começo e do fim do mundo – o contato do povo Paiter Suruí (Editora Ikore, 2017). Os primeiros contatos com o povo Paiter Suruí e outros povos de Rondônia ocorreram no final da década de 1960 com a invasão de seu território por garimpeiros, seringueiros, colonos e a construção da BR 364. Em alguns meses, cerca de 2/3 da população indígena morreu por epidemias e ataques diretos. )

Esse mesmo relato poderia ter sido feito por qualquer pessoa sobrevivente às epidemias que acompanham os povos indígenas desde a chegada dos primeiros europeus. Milhares de pessoas, povos inteiros, sucumbiram aos males que não conheciam, transmitidos pelo contato físico, muitas vezes de forma intencional com a distribuição de roupas contaminadas para promoveram o extermínio “dessa gente que só atrapalha o progresso”.

Os vírus e bactérias são armas poderosas numa guerra injusta que infelizmente continua a serviço de sistemas político-econômicos que nunca consideraram a vida como prioridade.

Mais uma vez em nossa breve história de país os povos originários estão sob grande ameaça diante da política de ocupação dos últimos redutos de floresta e cerrado. Mais uma onda de invasão às áreas de patrimônio natural que os povos indígenas conseguiram proteger com sua própria vida, consome o que resta de vida usando as frentes do agronegócio, grandes obras, garimpo e mineração, numa visão equivocada de progresso que beneficia uma elite irresponsável.

Os povos que se mantêm em isolamento voluntário, vivendo totalmente integrados à natureza e fugindo sistematicamente dos perigos representados por nossa sociedade, são os mais vulneráveis. Tanto pela ausência de anticorpos para nossas doenças, quanto por estarem em áreas isoladas, sem qualquer proteção a seus territórios e direitos, muito pelo contrário, sofrendo o ataque sistemático de grupos insuflados pelo discurso do presidente que 1/3 dos brasileiros escolheu.

Na semana passada Paulo Kenampa Marubo, coordenador geral da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, denunciou a ação de pastores ligados ao Movimento Novas Tribos do Brasil, que vem atuando junto a povos isolados ou de recente contato desde os anos 1940 e que agora mudou sua denominação para Ethnos360. Esses pastores, com a cooptação de alguns indígenas convertidos, ameaçaram lideranças para conseguirem autorização para entrada em área no Vale do Javari (AM) que é uma das que mais abriga povos em isolamento voluntário. Segundo a denúncia, essa organização tem até helicóptero para facilitar o acesso às áreas. Essa investida coloca em sério risco todos os seis povos de recente contato dessa área além dos 16 grupos isolados. Essas denúncias não têm recebido atenção dos órgãos que deveriam proteger esses povos e não chegam à grande mídia.

Mesmo os povos indígenas de contato mais antigo, que já passaram por outras epidemias e foram atendidos por campanhas de vacinação, ainda são vulneráveis às doenças que seus organismos não conhecem.

Precisamos estar atentos e acompanhar os desdobramentos dessa pandemia para tentar proteger esses povos e denunciar qualquer ação intencional de aproximação maldosa com essa população. Assim como estar atentos aos efeitos da pandemia sobre outros povos que vivem e protegem as florestas e áreas naturais como os ribeirinhos, extrativistas, quilombolas.

Muitas aldeias estão se mobilizando, conscientes dos perigos. Fecham suas fronteiras à entrada de pessoas de fora, cuidam do retorno de estudantes que viviam nas cidades, protegem os idosos e se informam. Um tempo de reclusão do povo todo, com atenção especial aos conhecimentos tradicionais, aos valores culturais, fortalecendo novamente o coletivo e a forma de viver em conexão com a natureza e os espíritos protetores. Movimento que pode também trazer grandes transformações a muitas aldeias que criaram dependência dos bens e valores dos “brancos”.

Tempos de grande aprendizado para todos nós. Como nos rituais de iniciação dos jovens, a reclusão e as provas físicas e emocionais preparam o corpo e o espírito para a vida adulta, com o aprendizado dos valores e conhecimentos mais fundamentais, estamos todos vivendo um ritual de passagem. É nossa responsabilidade transformar este momento em oportunidade para rever nossa trajetória neste planeta, escutando, aprendendo e respeitando mais os povos originários. É hora de ações concretas de redução do consumo e das desigualdades, de valorização da convivência respeitosa entre as pessoas e com a natureza. Nossa chance de ajudar a segurar o céu para que não desabe sobre todos nós.

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