Diante dos de fora que miram a Amazônia

Reflexão a partir dos Diálogos Amazônicos. Aliados, ciência e saberes ancestrais podem produzir outro desenvolvimento – e se contrapor ao extrativismo. Justiça ambiental e o Cuidado são essenciais. Floresta é pulmão – e corpo, rosto, desejos…

Foto: Sebastião Salgado/Exposição Amazônia
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A Amazônia é o pulmão do mundo. A frase badalada em matérias jornalísticas e discursos ocasionais – em geral, não proferidos por aqueles que ali habitam, para quem o território é corpo e espírito – soa como um pedido de socorro ofegante. Mas são os que habitam, afinal, que dão rosto a um pulmão que pulsa mais do que respira, que é mais vida do que meio de fotossíntese.

Um pulmão sem rosto é o que a narrativa exótica requer da Amazônia. Que ela seja o sopro de sobrevida para eles, para nós, para quem está fora. O olhar do fora não vê gente, não vê corpo, e insiste no mito que orienta seus séculos euro-referenciados, o mito da salvação.

Quem estará a salvo? Os corpos que olham de fora para uma Amazônia sem rosto.

Puro pulmão dissecado de um organismo complexo, as florestas perdidas em países do sul global, cuja irresponsabilidade, pressuposta pelas mentes por trás daqueles olhares, sugere uma inconveniente localização geográfica do paraíso perdido, na América do Sul.

Por ironia, a preservação desse paraíso perdido da salvação cristã depende dos corpos dispostos pelo território; pelo território cujo espírito habita igualmente a terra, as gentes, a floresta e as águas. Mas as fronteiras que o de fora traçou em uma organização colonial fez com que também ali a disputa econômica ditasse as possibilidades de vida e de morte.

Enquanto o lucro da mutilação desse corpo amazônico for maior do que a disposição econômica da narrativa, espécie de dízimo da salvação da humanidade, não haverá saída. Promessas e esmolas cheias de juízos, do alto de uma sabedoria autodeclarada, assentada sobre os cofres do mundo, não serão suficientes para fazer inspirar e expirar esse bioma cheio de riquezas, pelas quais brilham os olhos desses mesmos juízes. Ou seja, mesmo do ponto de vista do capital, uma contradição: a riqueza só é valor traduzido em vida se preservada, mas a riqueza é valor imediato traduzido em morte. Quase como em uma desigualdade temporalmente situada. Quando a benevolência endereça dólares e euros, é o Estado ainda tutelar, na prática, que faz a gestão dos trocados em um orçamento pouco participativo. Não bastasse a dicotomia entre riqueza porque preservada e riqueza porque apropriada, ainda se impõe um terceiro vértice econômico: o desenvolvimento – este que gera renda, trabalho, inovação, conforto – já está demasiadamente apoiado em modos energéticos que não podem prescindir de serem exceções à preservação pura e simples.

Mas será que se quer mata virgem pura e simplesmente? Ignorância da pretendida civilização frente ao que ainda vê como homem selvagem, para quem bastaria – supõe-se – estar ali, nu, livre, cru. E assim a salvação não dependeria de nenhum outro modo de vida. Um bom selvagem é a melhor alternativa para a plenitude dos homens (do fora, é claro). Porém, admitindo – por preguiça de explicar – que a existência daqueles está temporalmente localizada na atualidade do capitalismo moderno, sugerem muitas vezes uma espécie de mesada; sabe-se bem a violência semiótica que vincula vida selvagem e infância, minoridade.

É urgente que o fora dê ouvido às vozes que ecoam da floresta, que hoje se assemelham mais a gritos de povos moribundos diante da grilagem de todo território – e, literalmente, dos corpos. É preciso que os diálogos amazônicos não sejam um solilóquio para inglês ver. Trata-se de ouvir. A participação social é mais do que falar, é saber para quem se fala e se fazer ouvir e ver. Não há compreensão fora desse movimento dialógico – porém, para o diálogo é preciso abrir-se à linguagem, e sem linguagem não há sujeito, apenas objeto de um sujeito universal1. Como o sujeito Amazônia pode ser – se é que precisa ser – sujeito de direitos no mundo da subjetividade neoliberal?

De um lado, extrativismo, garimpo, exploração sexual, racismo ambiental. De outro, universidades, tecnologia, conhecimento partilhado, renda, alimento. Estas demandas ecoadas em diálogos amazônicos estão longe de serem contra-econômicas ou obstáculos a um tipo de crescimento. Um tipo de desenvolvimento é possível. Um modo de vida outro, um bem viver que não separa natureza e cultura na forma da crítica moderna. Por isso, coloca-se a demanda por conhecimentos científicos que considerem saberes amazônicos, em uma cooperação que re-situe esse órgão no organismo inteligente e criativo do qual faz parte.

Talvez a criatividade recomposta assim, em suas bases mais gerais e complementares, possa, finalmente, participar de uma transformação genuína capaz de gerar – a partir da vida concreta – um modo de estar ambiental e socialmente justos, responsáveis e solidários (muito mais do que sustentáveis). Soa como revolução, é verdade. Mas o que significa o ponto de não retorno senão o limite temporal das possibilidades de reinvenção? Mais do que limpar a energia, pensar em modos energéticos; mais do que não desmatar, reflorestar; mais do que não deixar morrer, uma política do cuidado. É isso que os diálogos ensinaram, para que uma luta política possa, se puder, entender: mais do que um respirador pulmonar injetado por violenta traqueostomia desesperada, deixar fluir o sopro que atravessa tudo e todos.

O termo “justiça ambiental” revela a desigualdade que o termo “sustentável” esconde. Haveria então espaço para justiça ambiental diante de um desenvolvimentismo renovado? Não como raio no céu azul. Nem como banho rápido ou muda de planta na garrafa pet. Para começo de conversa, de diálogo, isso mesmo, por mais banal que pareça: participação social permanente de quem tem na Amazônia sua morada, com mecanismos reais de elaboração de políticas públicas, troca de conhecimentos-saberes e gestão de recursos. Não parece ainda que, segundo dizem, bastem selos de biorresponsabilidade e economias solidárias próprias, para consumos próprios, enquanto qualquer outro lhes é negado. Que seus saberes estejam agregados ao conhecimento e tecnologia de modo que o fora atravesse a linguagem e os corpos não como intruso, mas como parte de uma mesma pedagogia para o futuro do comum.

Se é difícil estabelecer o fora e o dentro da Amazônia – senão pelo olhar exótico que circunscreve a função pulmonar à floresta crua –, se não é sem violência que se pode dispor de linhas fronteiriças que cortam parentescos ao meio, outras cisões do mundo eurocentrado moderno acumulam fissuras. Campos e cidades, terra e água, natureza e cultura, saber ou educação. Como em uma enciclopédia chinesa2, em que elementos destacados de um organismo se sobrepõe em organização estranha. É aí que o mito se desfaz, e o céu desaba sobre as cabeças de todos, sem exceção.

O binômio “proteger a Amazônia” para “ salvar o mundo” nunca foi tão irônico. O cinismo que vê ali uma fonte de ar e chuvas ignora que a proteção, o cuidado, exige uma economia efetivamente reformulada, para que sua energia vital se transforme em bem viver universal. A sensação de utopia que se tem quando se lê esta frase não poderia ser sintoma mais sensível da certeza de que vamos sucumbir à força da grana destruindo coisas belas. Se belezas são coisas acesas por dentro, precisamos de olhos, ouvidos e corpos que digam e que se compreendam, para que tudo não se apague numa vitória épica de Zeus sobre Prometeu – o roubo grego do fogo do mundo marca o início de uma propriedade do povo do fora: o mito de uma história, história dos vencedores.

Mais uma vez a utopia do universal livre e comum colide com a realidade de uma heterotopia insistente. A utopia é sem lugar, é invenção do futuro, mas parece que já não encontra espaço entre nós. Os limites definem lugares distintos, e esse lugar outro, amazônico, torna-se mero espaço – não morada – de uma relação de poder-saber3. Os saberes amazônicos permanecem subjugados pelas mentes pensantes do desenvolvimento veloz, que atropela a vida como um tufão, mas que reparou que alguma vida há de persistir por ali para que o vento mantenha o ciclone girando indefinidamente.

Pulmão não tem rosto. Respira, mas não aparece, não tem face, não tem pés que pisam o chão onde a cabeça pensa. E não tem bolso. Só podemos renascer quando (e se) o organismo for saudável, sem funções cindidas por uma desigualdade econômica, social e política que limita sentidos e fronteiras. Ou seja, quando (e se) o fora perceber a morte do outro dentro de si, atravessando suas entranhas já sem oxigênio; pois não há fora possível.


1 “Quer chamemos de ‘semiótica’, ‘semiologia’ ou ‘vertente linguística’, todas estas filosofias têm como objeto tornar o discurso não um intermediário transparente que colocaria o sujeito humano em contato com o mundo natural, mas sim um mediador independente tanto da natureza quanto da sociedade.” (Bruno Latour, 2013)

2 Esas ambigüedades, redundancias y deficiencias recuerdan las que el doctor Franz Kuhn atribuye a cierta enciclopedia china que se titula Emporio celestial de conocimientos benévolos. En sus remotas páginas está escrito que los animales se dividen en (a) pertenecientes al Emperador, (b) embalsamados, (e) amaestrados, (d) lechones, (e) sirenas, (f) fabulosos, (g) perros sueltos, (h) incluidos en esta clasificación,

(i) que se agitan como locos, (j) innumerables, (k) dibujados con un pincel finísimo de pelo de camello, (l) etcétera, (m) que acaban de romper el jarrón, (n) que de lejos parecen moscas. (Jorge Luis Borges).

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