Wikifavelas: Uma autoanálise para a soberania tecnológica
A partir dos próprios verbetes, Dicionário Marielle Franco analisa as tecnologias de informação sob a ótica das favelas. Mostra como as big techs limitam a autonomia das comunidades e invisibiliza os saberes locais – e as plataformas de resistência colaborativas
Publicado 15/10/2025 às 19:08

As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) constituem, nas últimas décadas, um dos eixos centrais de reorganização das práticas sociais, econômicas e culturais. Seu desenvolvimento está associado a uma transformação profunda nas formas de acesso, produção e difusão do conhecimento, ao mesmo tempo em que gera novas modalidades de interação entre sujeitos e instituições. No entanto, a centralidade adquirida pelas tecnologias digitais não se distribui de forma homogênea. A estruturação da internet em torno de plataformas controladas por grandes conglomerados tecnológicos – as chamadas big techs – introduz um paradoxo: amplia-se o alcance das TICs, mas preserva-se a lógica de concentração de poder e de mercantilização da informação.
O caso brasileiro ilustra bem essa tensão. Segundo levantamento recente, o Brasil é o segundo país no mundo em tempo médio de permanência online, atrás apenas das Filipinas (Metrópoles, 2024)1. Esse dado sugere uma intensa incorporação das tecnologias digitais no cotidiano da população, mas também convida a refletir sobre a qualidade desse engajamento. Trata-se de um uso efetivamente emancipador, capaz de promover novas formas de participação social, ou de um consumo predominantemente mediado pelas grandes plataformas, reproduzindo padrões de alienação técnica e dependência digital?
Assim, discutir as TICs implica ir além de sua dimensão instrumental e considerar os desafios relacionados à apropriação social de suas potencialidades, considerando seu papel como mediadoras carregadas de valores, interesses e disputas (Faustino, Lippold, 2023). Torna-se fundamental questionar até que ponto a hegemonia mercantil das big techs limita a diversidade de usos e como alternativas – tanto no campo das políticas públicas quanto em iniciativas comunitárias e acadêmicas – que podem contribuir para ampliar horizontes de inclusão, autonomia e democratização do conhecimento.
Essa tensão se evidencia ainda mais quando deslocamos o olhar para as favelas e periferias brasileiras. A mesma infraestrutura digital que promete “inclusão” é também a que reforça barreiras de acesso, vigilância e estigmatização. Como destacam Fleury, Fornazin e Silva (2021), o debate sobre favelas é fragmentado e hierárquico, o que tende a invisibilizar os saberes locais e a rebaixar a produção cultural das periferias a um lugar subalterno. É essa mesma lógica que se reproduz no espaço digital, tão celebrado como território da liberdade, mas que continua a reproduzir as lógicas coloniais e excludentes do mundo físico: acesso precário, concentração de poder em poucas plataformas e apagamento sistemático de vozes periféricas. Os autores citam Arendt para lembrar que a apropriação discursiva é fundamento da condição humana, e proibir o discurso é negar o indivíduo como sujeito de ação. Nesse sentido, disputar o espaço digital torna-se parte central das lutas pela cidadania e pelo direito à cidade. Deivison Faustino (2023) propõe uma crítica hacker-fanoniana ao colonialismo digital, destacando que o horizonte emancipatório não está em rejeitar a tecnologia, mas em calibanizá-la, isto é, ressignificá-la a partir de práticas anticoloniais. Nesse contexto, abordamos o caso do Dicionário de Favelas Marielle Franco, que, por meio da plataforma WikiFavelas, age como um instrumento de resistência às práticas colonialistas de epistemicídio ao elaborar um sistema agregador de saberes múltiplos sobre espaços de favelas e periferias do Brasil e do mundo. Nesse sentido, apresentamos uma análise dos verbetes desta plataforma associados à palavra-chave “Tecnologia” e suas variações. Este mapeamento evidenciou que o desenvolvimento tecnológico nas periferias envolve tanto o uso prático como a apropriação crítica que moradores e moradoras fazem da elaboração das tecnologias.
A plataforma Wikifavelas
A WikiFavelas é uma plataforma wiki agregadora de conhecimento periférico, que conta com equipe multidisciplinar da qual fazem parte pessoas de favelas e periferias, junto a diferentes atores envolvidos na produção de conhecimento e políticas para esses territórios. O projeto, lançado em 2019, é uma plataforma aberta, gratuita e livre, que funciona de forma colaborativa, com o objetivo de apresentar conteúdos diversos sobre as histórias e memórias das favelas, contribuindo para a difusão de saberes, narrativas e práticas plurais.
A WikiFavelas.com.br é estruturada em verbetes, que representam produções autorais sobre temas relacionados a favelas e periferias, podendo ser diversos tipos de manifestações. Qualquer pessoa pode incluir um verbete e todas as entradas estão abertas para acesso e colaboração públicas, com a intenção de que diversas opiniões e visões acerca dos temas abordados sejam contempladas. O conteúdo é classificado em eixos de análise e categorias temáticas, além de haver um sistema de indexação a partir de palavras-chave. Como uma plataforma colaborativa e aberta, as palavras-chave são inseridas por pessoas usuárias, criando uma espécie de folksonomia das periferias, uma ontologia das palavras mais usadas por moradores de favelas e de vozes que rompem o silêncio. Sendo assim, o Dicionário procura construir um sistema que foge da categorização em linguagem formal – universalizante -, mas procura apresentar as epistemologias periféricas múltiplas e invisibilizadas.
Dentro desse universo colaborativo, a tecnologia surge como um tema recorrente e revelador. Ao analisar os verbetes associados à palavra-chave “Tecnologia” e suas variações (“Tecnologias”, “Tecnologia Digital”), abre-se um campo fértil para compreender como esses territórios vivenciam e reconfiguram as ferramentas digitais e comunicacionais. O mapeamento mostra que, nas favelas, a tecnologia não é apenas um conjunto de dispositivos ou softwares, mas atravessa áreas cruciais como educação, saúde, cultura, segurança e empreendedorismo.
Aqui emerge uma questão central: essas tecnologias são criadas desde as favelas, como expressões de autonomia e criatividade, ou chegam de fora, impostas por lógicas mercantis e estatais que pouco dialogam com as realidades locais? Essa distinção não é meramente técnica. Ela toca diretamente naquilo que alguns teóricos chamam de alienação técnica – a distância entre quem cria, controla e lucra com as tecnologias e quem apenas as consome ou sofre seus efeitos.
O Dicionário de Favelas, ao reunir verbetes sobre tecnologia, oferece um contraponto potente a essa alienação. Ele permite que a favela fale de tecnologia em seus próprios termos, nomeando experiências, criando narrativas e registrando usos que não cabem nas categorias impostas de fora. Ao mesmo tempo, evidencia que as periferias não são apenas consumidoras passivas de inovações, mas também produtoras de soluções criativas que desafiam a lógica dominante.
Mais do que perguntar “quem tem acesso à tecnologia?”, a provocação é: quem a define, quem a controla e quem a ressignifica? A análise dos verbetes indexados pela plataforma do Dicionário de Favelas Marielle Franco nos convida a questionar as formas dominantes de apropriação tecnológica, ao mesmo tempo em que abre espaço para imaginar outras maneiras de produzir e compartilhar conhecimento – a partir do território, da coletividade e da insurgência.
Pensando a metodologia
A WikiFavelas ultrapassou, em setembro de 2025, a marca dos 3000 verbetes, contando com cerca de 2700 usuários cadastrados. A predominância de verbetes nas categorias temáticas ‘Associativismo e Movimentos Sociais’, ‘Cultura’ e ‘Favelas e Periferias’ evidencia a relevância de temas sociais e culturais, além da presença crescente de novos territórios periféricos na plataforma. O foco geográfico da produção ainda se concentra no Rio de Janeiro, mas seguindo para maior diversificação. A maior frequência de termos indexadores como ‘Localidades’, ‘Políticas Públicas’ e ‘Direitos Humanos’ indica forte presença de temáticas ligadas aos territórios, ações estatais e direitos sociais.
A coleta dos dados da pesquisa aqui proposta foi realizada dentro do banco de dados da plataforma, que usa o software livre phpMyAdmin – alinhada com os princípios de ciência aberta adotados pela plataforma -, que permite o gerenciamento de banco de dados e extração de informação através de linguagem SQL. As palavras-chave usadas para a extração de dados foram “tecnologia”, “dados”, e suas variações.
A partir das buscas dos termos escolhidos, as palavras-chave encontradas foram: Ciência e Tecnologia (1 verbete), Tecnologia (17), Tecnologia social (2), Tecnologias (20), Tecnologias digitais (5), Dados (25), Dados cidadãos (9) e Produção de dados (1) – é importante ressaltar que a utilização das palavras-chaves não é excludente, logo, um verbete pode ter um ou mais termos indexados. Retirando duplicatas de verbetes que foram encontrados em ambas as buscas, 71 verbetes finais foram elencados. Cinco verbetes foram excluídos da análise, um deles por ser a tradução para o inglês de um dos verbetes já selecionados e outros 4 por estarem fora do escopo da pesquisa sobre tecnologias digitais e inovação. Sendo assim, 66 verbetes foram incluídos na análise.
Alguns resultados
A plataforma do Dicionário de Favelas ainda não apresenta uma categoria temática específica que reúna verbetes relacionados à tecnologia, por isso os verbetes que tratam do assunto estão dispersos em diferentes seções – sem uma que os unifique. Entre as categorias que concentram maior número de verbetes relacionados ao tema, as mais proeminentes são Associativismo e Movimentos Sociais (15), Pesquisas (13) e Mídia e Comunicação (8). Esse mapeamento indica que os verbetes que tratam sobre tecnologia e dados possuem ampla prevalência de iniciativas de movimentos sociais e comunitários, pesquisas sobre os temas a partir do ponto de vista das favelas e periferias e formas de criação, armazenamento e propagação de informação, com metodologias e processos que desafiam as lógicas hegemônicas de produção tecnológica.
Dos 66 verbetes selecionados pelos parâmetros apresentados, cinco continham a palavra-chave “Tecnologia social”: Mapeamento da Economia Criativa Enquanto Tecnologia Social, Shopping do Buraco, Dois Projetos e uma Tecnologia Social – A Construção Ativa de uma Metodologia, Amor é política e tecnologia na Luta Contra as Mudanças Climáticas e Bancos Comunitários de Desenvolvimento como Tecnologias de Resiliência.
Estes verbetes da WikiFavelas destacam experiências comunitárias que se configuram como tecnologias sociais, conceito entendido como “Conjunto de técnicas e metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela, que representam soluções para inclusão social e melhoria das condições de vida”2. O texto relativo ao ‘Mapeamento da economia criativa enquanto tecnologia social’ aborda a articulação entre cultura, criatividade e geração de renda na Mangueira, revelando como práticas locais podem impulsionar inclusão e autonomia econômica. O verbete ‘Shopping do Buraco’ narra a formação de um espaço comercial informal no Complexo de Manguinhos, onde comerciantes organizam coletivamente alternativas ao mercado formal, gerando trabalho e circulação de recursos. Já ‘Dois projetos euma tecnologia social’ descreve a construção participativa de metodologias educativas, envolvendo diretamente moradores na formulação de soluções adequadas ao seu cotidiano.
O verbete ‘Amor é política e tecnologia na luta contra as mudanças climáticas’ evidencia práticas lideradas por mulheres negras que transformam solidariedade e cuidado em estratégias de enfrentamento à crise climática e à ausência do Estado. Já ‘Bancos Comunitários de Desenvolvimento como tecnologias de resiliência’ analisa experiências de microcrédito comunitário em Niterói, demonstrando como instrumentos financeiros adaptados ao contexto local fortalecem a autonomia e a resiliência das comunidades. Em todos os casos, verifica-se a centralidade da participação popular, a apropriação coletiva das práticas e a busca por inclusão social e melhoria das condições de vida.
As experiências dialogam entre si ao enfatizarem protagonismo comunitário, organização coletiva e inovação social. Contudo, distinguem-se pelos campos de atuação: a economia criativa foca na cultura e simbologia; o Shopping do Buraco na prática comercial autogerida; os projetos educativos na metodologia participativa; as ações contra mudanças climáticas na solidariedade política; e os bancos comunitários na gestão financeira local. Assim, tratam de múltiplas expressões de tecnologias sociais enraizadas nas favelas, que combinam criatividade, resistência e transformação social. Juntas, revelam que a tecnologia social não se restringe a instrumentos técnicos, mas também envolve afetos, economia, cultura e formas de organização comunitária, mostrando a potência das favelas como espaços de inovação social e de construção de alternativas sustentáveis ao modelo excludente dominante.
Análise dos dados
O primeiro passo para a análise dos verbetes foi identificá-los como tecnologias concretas ou tecnologias como conceito, com o primeiro objetivo de compreender se o conhecimento discutido no Dicionário se concentrava mais nas iniciativas e possíveis aplicações práticas do dia a dia das favelas e periferias ou se havia maior aprofundamento nas questões conceituais e nos impactos sociais. Tal distinção também se fez importante pois permitiu mapear iniciativas reais, como aplicativos, plataformas, laboratórios e eventos que procuram impactar a vida cotidiana de moradores de áreas marginalizadas, além de identificar como as periferias interpretam a introdução massiva da tecnologia na vida social, refletindo sobre seus efeitos políticos, culturais e sociais. Esse primeiro mapeamento revela não apenas o que está sendo feito com tecnologia nos territórios, mas também como essas comunidades elaboram leituras críticas e estratégicas sobre sua presença e seus desdobramentos.
Essa estrutura de análise também serviu para evidenciar que o desenvolvimento tecnológico nas periferias, dentro do universo da WikiFavelas, envolve tanto o uso prático como a apropriação crítica que os próprios moradores fazem da elaboração da tecnologia. Ao mapear as iniciativas tangíveis, como projetos, observatórios, laboratórios e aplicativos, foi possível identificar como a tecnologia é incorporada para enfrentar desafios locais, promover inclusão e criar novas oportunidades. Simultaneamente, entender o que a periferia pensa e debate sobre o impacto da tecnologia é essencial para garantir que essas transformações ocorram de forma ética, justa e alinhada às necessidades sociais, culturais e políticas desses territórios.
Ao nos debruçarmos sobre os verbetes identificados como tecnologia concreta, encontramos ferramentas, plataformas e iniciativas que se manifestam como experiências reais, acessíveis e reconhecíveis pelas comunidades. Essa percepção surge do entendimento de que a tecnologia não é apenas um código ou um software, mas uma ferramenta ou um processo implementado para resolver problemas específicos. A Plataforma Voz das Comunidades e o Jornal Fala Roça, por exemplo, constituem instâncias concretas do uso da tecnologia na forma de mídias digitais comunitárias. Elas não apenas transmitem informação, mas também funcionam como instrumentos de mobilização, denúncia e articulação política, demonstrando como aplicativos e plataformas digitais se materializam na vida cotidiana, ocupando o lugar de veículos que dão visibilidade a realidades periféricas.
Outros exemplos de como as tecnologias se expressam concretamente se encontram em projetos e laboratórios como o LabJaca, rebatizado como Instituto Decodifica, que aparecem como espaços físicos e colaborativos voltados para experimentação, formação e geração de soluções a partir do território. O verbete Geração Cidadã de Dados – Cartografia dos Coletivos de Comunicação para promoção da saúde é um exemplo de projeto de pesquisa que utiliza a tecnologia para mapear ações de coletivos populares. Já o Dados Sem Caô é um guia prático que ensina a acessar e tratar dados, democratizando o conhecimento e as ferramentas tecnológicas para jovens de favelas. Essas iniciativas demonstram como a tecnologia não se limita ao universo digital, mas pode se materializar em espaços coletivos de aprendizagem e criação. Ao mesmo tempo, elas oferecem ferramentas concretas de empoderamento comunitário, articulando ciência, arte e política para responder a desafios locais.
Os verbetes que remetem a eventos culturais mediados pela tecnologia, como o Criptofunk e o Cripto Agosto, também são exemplos de concretude. Ambos mobilizam estruturas digitais e midiáticas para potencializar experiências culturais, ao mesmo tempo em que se tornam vitrines para talentos locais. Nesses casos, a tecnologia não aparece apenas como suporte, mas como parte constitutiva da realização e da difusão, seja pela infraestrutura de som e imagem, seja pela circulação em plataformas digitais que ampliam o alcance das iniciativas.
A essência da tecnologia concreta é sua capacidade de ser um catalisador de mudança social. Ela não se limita a um produto final, mas é o processo e o resultado de uma aplicação prática. É o oposto de algo abstrato; é o que realmente funciona no dia a dia. Ao focar em projetos, eventos e plataformas, essa categoria destaca a tecnologia como uma força ativa e palpável, diretamente envolvida na transformação das realidades comunitárias.
A classificação feita sobre as iniciativas concretas mostra ainda que as mais recorrentes são podcasts e projetos, seguidos por plataformas digitais (Mapa das Periferias, Data Favela, Tabnet Municipal3) e por formatos como laboratórios de pesquisa (Labjaca, Pipas Labs Casa Voz). Em menor escala, surgem ainda startups, observatórios e projetos de pesquisa, além de exemplos pontuais como institutos, coletivos, healthtechs ou mesmo ferramentas específicas, como o WhatsApp. Projetos comunitários de produção de dados (Rede Geração Cidadã de Dados, De Olho na Maré), e iniciativas que promovem conectividade e autonomia (Mães da Favela On, Favela Gaming) também são bastante recorrentes. E eventos como o I Seminário de Geração Cidadã de Dados criam uma experiência real de troca de conhecimento e fortalecimento de redes. Juntos, esses tipos de verbetes mostram que a tecnologia nas periferias é, sobretudo, algo interativo e participativo, manifestando-se em iniciativas que demandam ação e engajamento direto das pessoas, e não apenas o consumo de um produto digital.
Verbetes como De Olho na Maré e Geração Cidadã de Dados não se resumem a um aplicativo ou site; eles representam um trabalho contínuo de pesquisa, monitoramento e capacitação. Isso sugere que as comunidades periféricas estão priorizando abordagens sustentadas e estratégicas, onde a tecnologia é uma ferramenta para alcançar objetivos sociais a longo prazo, como a organização comunitária e a produção de conhecimento local.
Esse resultado pode indicar uma ênfase estratégica das periferias em transformar a tecnologia em meios de narrativa, visibilidade e mobilização, mais do que em soluções puramente técnicas ou mercadológicas. Os projetos, laboratórios e plataformas digitais que articulam inclusão digital, geração de conhecimento local e monitoramento social revelam uma preocupação central com a capacidade das comunidades de se apropriarem da tecnologia para transformar suas realidades, questionar invisibilizações estatísticas e construir protagonismo político-social – espaços de experimentação, articulação e fortalecimento comunitário. Assim, a predominância dessas formas concretas evidencia que a prática tecnológica nas periferias se constrói sobretudo pela produção autônoma de dados, inovação social aplicada e a participação ativa dos moradores na utilização e construção das tecnologias, refletindo uma tecnologia mais humana e territorializada.
Em contrapartida, os verbetes agrupados em tecnologia como conceito apontam para reflexões mais profundas sobre o papel estrutural e simbólico da tecnologia na contemporaneidade, como uma força que molda e é moldada pela sociedade conforme avançam conjuntamente. Tal perspectiva investiga como as tecnologias não funcionam apenas como ferramentas neutras – alheias às demandas e idiossincrasias das sociedades onde estão inseridas -, mas como estruturas capazes de provocar reflexões, disputar espaços e alterar relações de poder. Tais verbetes possibilitam uma visão crítica sobre os processos de opacidade, controle social e vieses embutidos, que extrapolam o mero funcionamento técnico para envolver desigualdades historicamente construídas.
Nessa categoria, temos como exemplo os verbetes Algoritmos e Favela e Racismo Algorítmico, que abordam questões éticas relacionadas como a falta de transparência dos algoritmos em diversas áreas e sua interferência e/ou perpetuação nas formas de (in)visibilidade, marginalização e exclusão das populações periféricas. Já o verbete Impacto da IA nas Favelas – desafios e oportunidades explora o tema da inteligência artificial, problematizando os riscos éticos, os vieses discriminatórios e as disputas por justiça social digital. Nesse contexto, a tecnologia não é uma ferramenta em si, mas um sistema de forças que pode ter profundos impactos na sociedade, especialmente em comunidades marginalizadas.
A categoria de verbete que aborda a tecnologia como conceito também inclui reflexões sobre o uso político, autônomo e emancipatório da tecnologia, como no verbete Ciberativismo Negro, que discute tecnopolítica a partir da luta por cidadania digital e fortalecimento das identidades negras. Outro exemplo relevante é o verbete Letramento Digital, que discute sobre a inclusão digital e a importância do desenvolvimento de competências críticas para o uso das tecnologias, longe de ser apenas orientar a usar um computador ou plataforma, mas utilizar o letramento para inclusão social e a cidadania digital. Essa perspectiva conceitual é reforçada em Jovens pobres e o uso das NTICs na criação de novas esferas públicas democráticas, verbete em que se argumenta que a educação e, consequentemente, ampla utilização de novas tecnologias de informação e comunicação tem a capacidade de auxiliar mobilizações sociais para a melhoria de qualidade de vida e garantia de direitos.
Como se pôde observar, a categoria de tecnologia como conceito foca na sua capacidade de intervir profundamente nas dinâmicas sociais, servindo para contextualizar e teorizar sobre o papel das ferramentas digitais no mundo contemporâneo, analisando como elas podem ser instrumentos de controle, mas também de resistência, empoderamento e transformação. Esses verbetes nos convidam a pensar sobre o porquê e o como, em vez de apenas o quê, da tecnologia, e a entender as suas implicações éticas, sociais e políticas.
Os dois eixos de análise iniciais apresentados – tecnologia concreta e tecnologia como conceito – oferecem uma abordagem que se complementa para entender as múltiplas facetas da tecnologia nas favelas e periferias, combinando a materialidade e as experiências com as dimensões simbólicas, políticas e teóricas da tecnologia e da inovação social nesses contextos.
Outro ponto de análise dos verbetes foi quanto às áreas de aplicação em que são utilizadas as tecnologias, o que revelou uma variedade de situações, voltadas principalmente em como a inovação se interliga com questões sociais e comunitárias. A saúde pública emerge como um ponto central que utiliza a tecnologia para a produção de informações e o combate a doenças. No contexto da pandemia da Covid-19, o Dicionário teve papel relevante na divulgação de associações e atividades de mitigação dos profundos danos causados pelo isolamento social nas favelas sem o apoio necessário do Estado: os verbetes CoronaTrack no Santa Marta e Painel Unificador Covid-19 nas Favelas são exemplos dessa participação. Já o projeto Dengue no Jacarezinho investiga a relação entre a doença e as favelas, mostrando o uso da tecnologia para mapear e combater a dengue.
Outra aplicação de relevância foi na área da educação, mostrando a importância da tecnologia como uma ferramenta para o desenvolvimento da cidadania e para inclusão social. A tecnologia é apresentada como um meio crucial para promover o letramento digital, que vai além do uso básico de ferramentas e abrange a capacidade de entender e utilizar a tecnologia de forma crítica e consciente. A educação, nesse contexto, é vista como um pilar para a autonomia, permitindo que as comunidades não apenas consumam tecnologia, mas também a produzam e a utilizem para a mobilização social, a criação de novas esferas de debate e a defesa de direitos.
As tecnologias elencadas são de realização de diferentes tipos de sujeitos, entre os quais se destacam os moradores de favelas e periferias, coletivos comunitários, organizações da sociedade civil, instituições acadêmicas e empresas privadas. Grande parte dessas realizações ocorre por meio de grupos organizados que atuam em favelas e periferias utilizando a produção de dados, memórias e conhecimento como ferramentas políticas e sociais para enfrentar a exclusão digital e garantir protagonismo local. Essas iniciativas frequentemente emergem de uma abordagem crítica, voltada para a justiça social e racial, o que valoriza o papel da tecnologia como instrumento de transformação.
Poucos projetos apresentam realizadores individuais, sendo a grande maioria projetos coletivos muitas vezes híbridos. Entre projetos privados, pode-se evidenciar o verbete AfroSaúde – iniciativa criada por Arthur Lima e Igor Leonardo, em Salvador – uma healthtech de impacto social, que desenvolve soluções tecnológicas em saúde especializada voltada para a população negra com a criação de uma plataforma onde pacientes e especialistas negros podem entrar em contato, para que assim a comunidade negra brasileira possa se reconhecer no atendimento em saúde e receber melhor atendimento. Outro empreendimento privado é o de Adilio Camargo de Sapucaia do Sul, no RS – fundador da Sky Key Technology, empresa destaque na Expo Favela RS 2024 -, a startup é especializada no desenvolvimento de drones inovadores, integrando motorização à utilização de combustíveis não poluentes.
Ao observar as ações coletivas das tecnologias concretas mapeadas, um destaque importante é o papel do Data Labe – sediado no complexo da Maré – que atua como um observatório de dados críticos e comunitários com foco na democratização da informação e valorização das narrativas locais. O laboratório é fundamental para o enfrentamento das desigualdades, apoiando processos de produção, análise e comunicação de dados produzidos pelos moradores das favelas e periferias, o que fortalece o protagonismo das comunidades na construção de conhecimento sobre suas próprias realidades. Nesse sentido, a equipe que mapeia, analisa e divulga os dados é formada por jovens moradores de territórios populares, introduzindo novas narrativas por meio das novas tecnologias de informação e comunicação. Esse tipo de iniciativa representa uma convergência entre coletivos, organizações da sociedade civil e até instituições acadêmicas.
Outro ator relevante na realização dessas iniciativas concretas é a Fundação Oswaldo Cruz, instituição pública de ciência e saúde de destaque no apoio e coordenação de projetos de pesquisa e promoção no uso de tecnologias nas periferias. Verbetes como Mapa das Periferias e Painel Unificador Covid-19 nas Favelas exemplificam esse tipo de atuação coordenada, além de facilitar o diálogo entre ciência, tecnologia e demandas sociais expressas por comunidades periféricas.
Além das instituições acadêmicas e de pesquisa pública, várias secretarias governamentais também criaram e realizam tecnologias concretas que atuam diretamente nas periferias. Exemplos notáveis incluem a Secretaria Nacional de Periferias, que coordena ações como o Mapa das Periferias, e a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, responsável pelo Tabnet Municipal, tecnologia desenvolvida pelo DATASUS que permite consultas a bancos de dados de sistemas de informação em saúde. Essas iniciativas revelam uma tentativa do poder público em articular tecnologias que possam atender especificidades locais, aumentar a transparência na gestão pública e promover o acesso à informação e aos direitos básicos para populações historicamente marginalizadas.
Por fim, vale destacar o protagonismo dos coletivos comunitários na realização de projetos concretos. Coletivos como o Redes da Maré, Data Labe, ONG Gerando Falcões, Voz das Comunidades, Instituto Decodifica (antigo LabJaca), Frente de Mobilização da Maré, Instituto Raízes em Movimento e a Central Única das Favelas (CUFA) atuam de forma articulada e autônoma desenvolvendo e implementando tecnologias em seus territórios. Essa atuação comunitária é essencial para garantir que as tecnologias aplicadas tenham raízes locais e respondam concretamente às necessidades das populações periféricas, representando uma resistência tecnológica que busca transformar desigualdades reais a partir do chão das favelas e periferias. Dessa forma, a realização coletiva é um aspecto central e constitutivo das tecnologias concretas nessas regiões, pois conjuga ciência, Estado e movimentos sociais numa rede colaborativa de produção de inovação e conhecimento.
Considerações finais
Longe de representar apenas ferramentas neutras ou simples dispositivos técnicos, as tecnologias constituem espaços simbólicos e práticos onde acontecem disputas por visibilidade, autonomia e reconhecimento social. A plataforma do Dicionário de Favelas Marielle Franco se apresenta, assim, não apenas como um repositório de saberes periféricos, mas como uma própria prática de emancipação tecnológica que fortalece narrativas alternativas e possibilita a apropriação crítica das TICs por seus moradores.
A análise mostra que favelas e periferias brasileiras possuem uma relação multifacetada e dinâmica com a tecnologia, que extrapola o consumo passivo para envolver usos diversos em áreas como saúde, cultura, segurança, economia e mobilização social. Essa pluralidade de usos demonstra como as comunidades não desejam ser meros receptores de tecnologias importadas, mas agentes ativos na criação e ressignificação de dispositivos e processos que dialogam com suas necessidades.
Entretanto, a pesquisa mostra que a educação e o letramento digital ainda permanecem como desafios centrais para a ampliação dessa emancipação tecnológica. O desenvolvimento de competências críticas para navegar e utilizar as TICs de maneira consciente e autônoma é fundamental para que os moradores das periferias possam não só acessar a tecnologia, mas também dominá-la e transformá-la em ferramenta efetiva de inclusão social e cidadania. Estas são reflexões presentes nos próprios verbetes que tratam desse tema, evidenciando o papel fundamental do letramento digital nestes espaços da cidade, ao enfatizar, para além do uso instrumental das tecnologias, a capacidade de compreensão crítica sobre seus impactos sociais, econômicos e políticos, bem como a necessidade de participação ativa em sua produção, gestão e regulamentação.
Para auxiliar nesse trajeto, é importante que o Dicionário de Favelas Marielle Franco amplie ainda mais seu acervo relacionado à tecnologia, fortalecendo a presença de verbetes sobre TICs, inovação tecnológica, cultura digital e práticas comunitárias de produção tecnológica. Esse crescimento contribuirá para dar mais visibilidade às múltiplas formas de apropriação tecnossocial e para sustentar a construção colaborativa de conhecimento crítico que questiona as hegemonias tecnológicas e desenvolve agendas próprias de tecnologia com raízes e referências periféricas.
Assim, pensar a tecnologia nas favelas e periferias implica reconhecer sua dimensão política e simbólica, não apenas técnica. É reconhecer que a apropriação da tecnologia pode significar um modo potente de agência e poder popular, capaz de promover transformações sociais profundas, fortalecer identidades e garantir direitos. É um convite à construção coletiva de territórios digitais de resistência e inovação, pautados na cooperação, na solidariedade e na justiça social.
Referências
FLEURY, Sonia; POLYCARPO, Clara; FORNAZIN; Marcelo; MENEZES, Palloma. O Dicionário De Favelas Marielle Franco e a Descolonização Do Conhecimento. Trabalho apresentado na 32ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 30 de outubro e 06 de novembro de 2020.
FLEURY, Sonia; FORNAZIN, Marcelo; SILVA, Caíque. Dicionário de Favelas Marielle Franco – mediações e subjetivações, Études de communication, 57 | 2021, 167-184.
FAUSTINO, Deivison; LIPPOLD, Walter. Colonialismo digital: por uma crítica hacker-fanoniana. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2023.
1 Brasil é o 2° país em que usuários passam mais tempo on-line | Metrópoles. Disponível em: <https://www.metropoles.com/colunas/m-buzz/brasil-e-o-2-pais-em-que-usuarios-passam-mais-tempo-on-line>. Publicado em: 04/04/24. Acesso em: 12 set. 2025.
2 Instituto de Tecnologia Social. Cadernos de Debates: Tecnologia Social no Brasil. Instituto de Tecnologia Social, novembro de 2004. itsbrasil.org.br/publicacoes-cadernos/. Acessado em 10/09/2025
3 Tabnet Municipal é uma tecnologia desenvolvida pelo DATASUS, que permite consultas a bancos de dados de sistemas de informação em saúde via Internet. Portanto, trata-se de uma iniciativa estatal que abrange áreas de favelas e periferias.
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