Wikifavelas: o avanço do racismo algorítmico no Brasil

Dicionário Marielle Franco analisa o uso do reconhecimento facial na segurança pública. Tecnologia é espécie de lombrosianismo 2.0: usa tecnologia para reeditar a ideia de “perigosos natos”: pobres, negros e periféricos

Imagem: Ponte Jornalismo
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Em diferentes cidades do Brasil, avançam propostas de utilização de mecanismos de reconhecimento facial nas políticas públicas de segurança. Em Vitória, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e vários outros locais, com preocupação vemos o sistema de reconhecimento facial servir como uma ferramenta de impulsionamento do encarceramento em massa.

Pesquisadores e ativistas apontam que tais mecanismos têm um problema estrutural: são alimentados por bases de dados que reproduzem desigualdades raciais, fazendo com que mais pessoas negras sejam identificadas como suspeitas, descortinando uma discussão em torno do “racismo algorítmico”.

Um breve retorno à história da criminologia no Brasil nos revela que não é nova a constituição de um perfil que seria considerado criminoso apenas por existir; um arquétipo suspeito. E, com um olhar cuidadoso aos atores mobilizados pelas políticas contemporâneas de segurança pública, podemos notar que Lombroso, Garófalo e Ferri [pensadores da Escola Positiva Italiana] não morreram; pelo contrário: se fazem presentes nos bancos de dados que alimentam os sistemas de reconhecimento facial, se fazem presentes nos operadores das políticas públicas de segurança e se fazem presente na estrutura de Estado. Em 2019, mais de 90% dos presos por reconhecimento facial no Brasil eram pessoas negras. O combo racismo + proibicionsimo segue tornando a liberdade um horizonte distante da vida de jovens negros e pobres no nosso país.

No Dicionário de Favelas Marielle Franco, podemos entender alguns dos efeitos do encarceramento na vida da população pobre, negra e moradora de favelas e periferias. Um dos exemplos é o verbete “Lutar não é Crime”, onde fica explicitado como a estrutura de estado, por meio de sistema de justiça e sistema prisional, age nas favelas e periferias em um horizonte de violação de direitos e inviabilização da existência digna de determinadas populações, notadamente negros e negras. Nem sempre tais ações foram arquitetadas a partir das tecnologias de reconhecimento facial, mas, sem dúvidas, os receios tornam-se ainda maiores com o desenvolvimento tecnológico do aparato de repressão.

Cabe-nos ampliar a discussão, deslocando os olhares que pensam que, a priori, a tecnologia de reconhecimento facial é boa ou ruim, convocando todos e todas a discutirem do que é constituída tal tecnologia, descortinando jogos de interesse, entendendo quem as controla e quais objetivos diferentes tecnologias podem assumir numa sociedade estruturada pelo racismo. Muitas discussões tentam abrir caminhos para o tema, seja pensando uma moratória no reconhecimento facial, seja pelas acusações de tecnoautoritarismo. Talvez, para o começo de uma conversa franca sobre o assunto, a gente tenha que assumir duas bandeiras como comuns: não podemos aceitar reedições da ideia de “perigosos natos” nem podemos aceitar movimentações no campo da segurança pública que aprofundem desigualdades e injustiças sociais. (Seleção e Introdução realizadas pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco)


Leia na íntegra o texto “Encarcerados por reconhecimento fotográfico e a seleção penal que condena inocentes”, de Dani Monteiro, disponível no Dicionário de Favelas Marielle Franco:

Jefferson, Gabriel, Ângelo, Raoni. Quatro homens, quatro histórias de prisões arbitrárias com base apenas em reconhecimento fotográfico. Há mais. A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj tem recebido e acompanhado pelo menos sete casos de encarceramento que se confirmaram injustos. Além das vítimas, sofrem as famílias, padece o Estado, que, ao não resguardar o devido direito à presunção de inocência, permite que parte dos seus cidadãos agonize sem sequer saber como suas fotografias passaram a integrar o álbum de suspeitos da Polícia Civil.

Segundo dados levantados recentemente pelo Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege), o Rio é o epicentro da injustiça causada pelo reconhecimento por foto. Mais que isso, o estudo demonstra veementemente que classe social até pode variar, mas a raça, nunca. Em 80% dos casos, são presos por reconhecimento fotográfico homens negros e sem passagem pelo sistema prisional. Metade desse contingente nunca tinha tido passagem pela polícia, ainda assim, suas fotografias estavam entre os suspeitos. Nesses casos, o tempo médio de prisão, tendo o reconhecimento fotográfico utilizado como único elemento de prova, foi de 277 dias. Mais de nove meses, imagine se fosse com você.

A criminalização, está mais do que demonstrado, não atinge da mesma forma todos os corpos, uma vez que é impossível para o Estado, através das agências do sistema penal, fiscalizar e criminalizar todas as condutas tipificadas, já alertava o juiz argentino Raul Zaffaroni, referência no assunto. Por isso mesmo, o Estado obriga-se a escolher quais condutas efetivamente serão passíveis de criminalização. Seguindo esse viés, não há aleatoriedade nas escolhas do Estado, existe, sim, uma orientação para uma política criminal com fundamentos racistas e classicistas.

O projeto de criminalização de corpos negros, como nem mesmo o tempo nos deixa esquecer, iniciou-se ato contínuo à abolição da escravatura, momento em que foram criadas normas penais destinadas exclusivamente aos negros. Reconheçamos, de uma vez por todas, que o fim da escravidão como modo de exploração de mão de obra não significou o fim do ideal racista. Pelo contrário, é o que estruturou a sociedade brasileira e permanece em pleno funcionamento ainda hoje, tratando de posicionar grupos específicos como responsáveis pela perpetração da violência no país e consolidando estereótipos negativos associados às pessoas pretas, sobretudo à juventude que está nos territórios de favela.

E assim chegamos ao ponto em que a prisão ou a morte desses que são tratados como “inimigos” não despertam sequer empatia de boa parte da sociedade. Trocando em miúdos, para quem ainda não entendeu a gravidade do que está posto, as práticas policiais se mantêm racistas e violentas, ainda que não se fale aqui de individualizada, deliberada e convicta. Mas fato é que o racismo opera por meio das instituições e estrutura o sistema de Segurança Pública.

Discutir o reconhecimento fotográfico exige, portanto, ir à sua raiz e encarar as verdades como elas são na realidade: o sistema de Segurança Pública e de Justiça não é igual para todos, assim como a democracia racial não existe. Resta saber se estamos dispostos a conceder o benefício da dúvida a nós mesmos.


Veja mais verbetes sobre a temática “sistema prisional” presentes no Dicionário de Favelas Marielle Franco:

  1. Coronavírus e prisões
  2. Minha carne: diário de uma prisão (livro)
  3. Estudos sobre prisão: um balanço do estado da arte nas Ciências Sociais nos últimos vinte anos no Brasil (1997-2017) (resenha)
  4. Lutar não é crime
  5. Lei de drogas
  6. Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos (resenha)
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