Trabalho: como descolonizar as tecnologias?

Cooperativismo de plataforma exige envolver trabalhadores na produção de conhecimento e redemocratizar a internet. A chave: organização, pressão sobre o Estado e relações internacionais solidárias. Considerações sobre as lacunas do novo livro de Trebor Scholz

Um exemplo de cooperativismo de plataforma no Brasil: Cataki conecta catadores e gera renda. Foto: Divulgação
.

Título original: Por cooperativismos de plataformas mais plurais

Como podemos imaginar, projetar e desenvolver alternativas mais inclusivas e justas para a economia digital? Em Own This! How Platform Cooperatives Help Workers Build a Democratic Internet, Trebor Scholz demonstra como isso é possível e se materializa em vários projetos concretos em andamento em todo o mundo.

O novo livro de Scholz dialoga com seu livro anterior de 2016, Platform Cooperativism. Originalmente publicado pelo escritório da Fundação Rosa Luxemburg em Nova Iorque, a obra foi traduzida para vários idiomas, e posteriormente publicado no Brasil pelo escritório da Fundação Rosa Luxemburgo no Brasil, causando um impacto significativo na região. Enquanto seu trabalho anterior destacava os limites da então chamada “economia do compartilhamento”, apresentando as alternativas emergentes à economia de plataforma convencional, a ultima obra de Scholz aprofunda as ideias e os conceitos do cooperativismo de plataforma, ilustrando-os por meio de exemplos. O livro é voltado para um público diversificado, não apenas para especialistas no assunto, e serve como uma excelente introdução ao tema. Scholz demonstra como construir economias digitais alternativas por meio de experimentos em andamento em relação ao cooperativismo de plataforma, destacando tanto os desafios quanto suas potencialidades

Um dos maiores méritos do livro é estimular a imaginação sobre modelos alternativos democráticos no contexto da economia digital. Além disso, Scholz ilustra que essa imaginação vai além de meras ideias, com vários experimentos práticos sendo realizados em todo o mundo. Em comparação com seus trabalhos anteriores, em Own This! Scholz destaca o papel central dos dados – tanto em termos de cooperativas de dados quanto de data commons ou bens comuns relacionados a dados – como um caminho importante para iniciativas autogestionadas. Além disso, ele oferece uma compreensão mais nuançada do papel da escala no cooperativismo de plataforma – nem toda plataforma cooperativa precisa ter escala grande! Outro ponto importante levantado no livro é como as infraestruturas compartilhadas e as federações podem servir como respostas cooperativas à economia de plataformas. Como Paulo Freire nos lembra, a imaginação não é apenas ficção: ela está relacionada à nossa realidade concreta e aos nossos projetos políticos.

Nós, autora e autores desta resenha, estamos construindo um movimento coletivo desde e com a América Latina, especificamente no Brasil, em relação ao cooperativismo de plataforma, articulando pessoas trabalhadoras, pesquisadoras, movimentos sociais e formuladores de politicas publicas. Nesta resenha, levantamos algumas questões, em um espírito fraterno, com o objetivo de enriquecer o movimento do cooperativismo de plataformas em todo o mundo. Embora Scholz reconheça os limites do cooperativismo de plataformas, ressaltando que ele não pode lidar com todas as questões que envolvem a economia digital, às vezes, o argumento do livro poderia ter se beneficiado ao destacar as nuances, multiplicidades e dissonâncias do próprio movimento, a fim de apresentar uma história mais autorreflexiva. Em nossa resenha, perguntamos: como podemos construir histórias e análises mais nuançadas e múltiplas do cooperativismo de plataforma?

Historicizando e contextualizando tecnologias e disputas

Para avançar em direção a uma discussão mais ampla e diversificada sobre as histórias e análises do cooperativismo de plataforma, é fundamental historicizar os processos relativos tanto à história da Internet quanto à economia solidária em termos globais. Isso poderia ter sido abordado quando o autor questiona, por exemplo, se as infraestruturas de internet podem ser de propriedade pública ou como um híbrido público-cooperativo.

A historicização também ajuda a entender melhor os elementos do presente. Um exemplo disso é quando Scholz apresenta nomes do mainstream da internet, como Vint Cerf, como uma referência importante para convencer as organizações a usar o protocolo TCP/IP, especialmente na década de 1970. No entanto, o livro não menciona o fato de que o mesmo Cerf é hoje um membro importante da Alphabet/Google. Isso poderia ter sido um bom lembrete de que os esforços progressistas na história da Internet foram continuamente cooptados pelas grandes empresas de tecnologia.

Outro ponto importante a ser observado é o papel das tecnologias nos processos de desenvolvimento do cooperativismo de plataforma, incluindo Web3 e blockchain. Entendemos aqui a tecnologia como um conjunto de processos – seguindo as tradições históricas dos estudos de ciência e tecnologia, inclusive na América Latina – e não como um gadget digital ou uma solução mágica. Assim, entendemos que a tecnologia não significa apenas software, aplicativos ou códigos, mas também constitui processos de organização social e econômica de uma perspectiva que é fundamentalmente política. Reconhecer que tecnologias como essas não são neutras é um passo importante para a construção de economias digitais alternativas. Precisamos nos perguntar quais interesses e lutas (de classes) estão em disputa, mesmo quando queremos construir mundos alternativos. Essa é uma pergunta desafiadora para um livro que pretende reunir exemplos e formulações de diferentes regiões, com contextos políticos e econômicos variados.

Aqui, Scholz apresenta o surgimento de organizações autônomas descentralizadas (DAOs) como um caminho significativo para remodelar as cooperativas tradicionais para que operem de forma semelhante às startups de base tecnológica. No entanto, embora o autor considere criticamente o hype em torno das DAOs (que estão surgindo há mais de 10 anos), ainda não há evidências suficientes para estabelecer sua importância genuína para o cooperativismo de plataforma.

Embora haja observações sobre as limitações do poder das plataformas cooperativas na economia atual, às vezes o livro não oferece o equilíbrio necessário entre o potencial real das plataformas cooperativas e o papel do poder das plataformas, inclusive o poder infraestrutural. Por exemplo, ao discutir a plataformização em áreas rurais, o livro ignora o poder da Big Tech no grande agronegócio, como a plataformizacao do campo. Além disso, as definições de cooperativismo de plataforma estão ancoradas em alguns idealismos que não levam em conta adequadamente essas dinâmicas de poder. Por exemplo, Scholz imagina um ecossistema global de plataformas cooperativas como um sistema bem coordenado no qual as plataformas digitais de trabalho, as mídias sociais e as infraestruturas da Web operam em perfeita sincronia. Mas será que essa sincronia perfeita existe de fato? O que significa entender “perfeição” no cooperativismo de plataforma? Ou que papel os conflitos e a economia política – ou as disputas em jogo – desempenham enquanto tensão dessa “sincronia perfeita”? Essas questões não são adequadamente desenvolvidas.

Além disso, é essencial contextualizar o cooperativismo de plataforma dentro da economia do trabalho e sua interação com as tecnologias. O que significa criar plataformas que, na pratica, tentam emular as práticas das plataformas dominantes, mas que sejam de propriedade das pessoas trabalhadoras e/ou das comunidades? Quais são os limites dessa abordagem? De quais tecnologias as pessoas trabalhadoras precisam para governar seus locais de trabalho? Como isso pode ser significativo para o poder das pessoas que trabalham? As respostas a essas perguntas não são fáceis e não há uma única solução universal ou normativa para elas. O que pesquisamos e vivenciamos é que as respostas a essas perguntas tem sido retrabalhadas e reapropriadas pelas comunidades locais em seus territórios. Da mesma forma que há diversas manifestações do capitalismo de plataforma, como colegas recentemente argumentaram em relação a capitalismos de plataformas e culturas de plataformas, o conceito de cooperativismo de plataforma não é singular, mas existe em formas plurais e múltiplas em nível global. Portanto, podemos nos inspirar a partir dessas diversas ideias, em vez de aderirmos a apenas uma.

Além disso, essas respostas nem sempre significam “mais plataformas” ou “mais plataformização”. Por exemplo, os protocolos descentralizados que poderiam funcionar como “efeitos de rede cooperativistas” têm uma lógica cada vez menos plataformizada e personalizável para níveis de relevância e território (como bairro, cidade, região etc.). Assim, podemos pensar no papel das tecnologias além das próprias plataformas. Uma abordagem não tecnossolucionista questionaria se é possível, de fato, achar soluções democráticas para a Internet imaginadas em torno do modelo de plataformas, dado o poder político, econômico, discursivo e epistêmico que esse modelo e seus exemplos exercem.

Temos visto o surgimento de grupos e movimentos em todo o mundo que concordam com vários princípios do cooperativismo de plataforma, mas não estão convencidos de que a chave esteja particularmente nas “plataformas” ou no “cooperativismo”. Os termos que estão sendo cunhados são diversos, incluindo economia digital solidária, tecnologias de propriedade de trabalhadores, plataformização solidária, cooperativismo solidário de plataformas, etc. Embora haja concordância com uma série de elementos que Scholz apresenta, a tendência também aponta para diversidades institucionais, locais e epistêmicas significativas. Isso significa que o movimento é mais amplo e diversificado do que o próprio autor previu. Essa é outra evidência da pluralidade de “cooperativismos de plataformas” em todo o mundo.

Isso não significa que o autor não esteja analisando uma diversidade de experiências. Por exemplo, ele inicia uma discussão sobre plataformas cooperativas mais diversificadas, interseccionais e feministas. Mas esse debate permanece em um nível abstrato, sem apresentar práticas e princípios concretos, ou discussões com grupos históricos que discutem essa questão, tanto entre movimentos sociais quanto entre pesquisadores. Também é imperativo que o autor aborde os pontos em comum e as diferenças entre os princípios da economia (digital) feminista e sua própria visão de cooperativismo de plataforma. Além disso, ele deveria ter articulado como, ao compreender essas perspectivas, ele se inspira nas tradições da economia política feminista.

Scholz destaca a participação de mulheres em cooperativas de trabalho de cuidados e limpeza, que são imigrantes no Norte Global, e a liderança da Associação de Mulheres Autônomas na Índia, a SEWA, formada a partir da convergência de movimentos trabalhistas, cooperativistas e feministas. Entretanto, não há informações substanciais sobre como essas experiências se diferenciam, ou como se relacionam a outras abordagens interseccionais. Além disso, a seção do livro “perspectivas feministas sobre design” contém experiências que não necessariamente apresentam abordagens feministas. Um caso em questão é o Cataki no Brasil – uma iniciativa importante, mas sem evidências de que se baseia em princípios de economia feminista. Também não há menção, por exemplo, às economias solidárias negras na África e na diáspora africana, ou às associações rotativas de poupança e crédito (chamadas ROSCAs), conforme destacado por coletivos como Diverse Solidarity Economies (DISE) e pesquisadoras como Caroline Hossein.

Além disso, com relação à América Latina, as menções às iniciativas são breves e sem a menor descrição de como elas funcionam. Por exemplo, no contexto das economias feministas, há cooperativas como Senoritas Courier, uma cooperativa brasileira formada por mulheres cis e pessoas trans que realizam cicloentregas. A cooperativa é governada com base em uma ética de cuidado, bem como em uma perspectiva de gênero. Além disso, elas criam algumas coalizões, por exemplo, aprendendo e desenvolvendo suas próprias tecnologias em colaboração com o Núcleo de Tecnologia do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Outra importante cooperativa de tecnologia formada exclusivamente por pessoas trans é a Alternativa Laboral Trans (ALT Cooperativa), na Argentina. Portanto, uma questão a ser pesquisada é: como as perspectivas queer e trans podem se relacionar com o cooperativismo de plataforma?

O argumento aqui é que não pode haver simplesmente “um cooperativismo de plataforma” que seja o “ideal” ou “original” com variações do mesmo fenômeno (a partir de abordagens como feministas, negras, queer, trans, etc.) – como se fossem versões “alternativas”. De fato, o argumento aqui é que todo esse conhecimento precisa ser valorizado como parte do pano de fundo de um movimento mais plural do cooperativismo de plataforma.

Outro ponto importante a ser abordado em relação à pluralidade é o que Scholz chama corretamente de “co-design”. Esse é um tópico importante da agenda do cooperativismo de plataforma que pode garantir que essas iniciativas sejam realmente lideradas por pessoas trabalhadoras e comunidades. Embora haja uma citação sobre justiça no design, uma abordagem teorizada por Sasha Costanza-Chock, ela poderia ter sido mais bem desenvolvida ao longo do livro – acreditamos que é essencial discutir mais esses aspectos nos próximos anos, tanto no trabalho acadêmico quanto no trabalho de base cotidiano. Uma abordagem em relação a justiça no design é algo que vem desde a concepção do produto, projeto ou tecnologia, com a composição, o olhar, a escuta e as escolhas conscientes da equipe durante o desenvolvimento resultando em formas de autogestão e propriedade que apresenta uma ruptura em relação aos padrões e normas cisheteropatriarcais, eurocêntricas e capitalistas.

Portanto, a justiça no design envolve não apenas a compreensão do impacto de uma determinada tecnologia, mas também – inspirando-se fortemente na pedagogia de Paulo Freire – concentra-se nos sujeitos sociais e em suas práticas na vida cotidiana.

Então, precisamos abordar a justiça no design no contexto do cooperativismo de plataforma, bem como as pedagogias envolvidas nisso, enfatizando o processo de aprendizagem, ou seja, o aprendizado crítico das pessoas trabalhadoras, pesquisadoras e comunidades no processo. Alguns desses aprendizados foram compartilhados por várias pesquisadoras na área de design, como Udayan Tandon, Vera Khovanskaya, Enrique Arcilla, Mikaiil Haji Hussein, Peter Zschiesche e Lilly Irani, no caso dos táxis em San Diego, e Jo Bates, Alessandro Checco e Elli Gerakopoulou, ao discutirem trabalhadores em plataformas de crowdwork.

Por fim, embora Scholz reconheça a diversidade institucional das plataformas cooperativas, ele parece dar mais atenção a uma abordagem corporativa do desenvolvimento tecnológico do que à apropriação desse conhecimento pelas pessoas trabalhadoras, considerando suas próprias formas de desenhar, projetar e desenvolver tecnologias. Assim, há uma ausência de uma perspectiva verdadeiramente popular do ponto de vista das pessoas que trabalham sobre a questão. Isso poderia ser mais bem explorado nas próximas obras do autor – assim, também o convidamos a conhecer perspectivas mais globais sobre o fenômeno.

Invisibilidades e apagamentos

Scholz se posiciona como um pesquisador global sobre cooperativismo de plataforma. Entretanto, todos estamos “localizados” no mundo de alguma forma, e este livro revela algumas invisibilidades e apagamentos inevitáveis por conta disso. Por exemplo, o autor aborda certa compreensão em relação a desenvolvimento, criticando o Produto Interno Bruto (PIB) como medida, mas ocasionalmente o utiliza para avaliar o que seria “desenvolvimento”, apesar da existência de medidas alternativas, como a combinação do Produto Nacional Bruto e da Paridade do Poder de Compra. O livro também enumera muito mais exemplos do Norte Global, como algo a ser inspirado e, de certa forma, “espelhado”. Essa chamada abordagem “global” também coloca uma perspectiva eurocêntrica de divisão entre trabalho “formal” e “informal” de forma binária, muitas vezes analisando o que vem de fora do Norte Global a partir das perspectivas de “exceção” e “falta”.

O autor se beneficiaria de uma maior diversidade geográfica e de gênero de teorias, epistemologias e conhecimentos, que já destacamos na seção anterior. Desde os primeiros escritos sobre cooperativismo de plataforma, várias pesquisadores e ativistas se debruçaram sobre o assunto. Embora algumas pessoas pesquisadoras do Sul Global sejam citados – como Anita Gurumurthy e Chenai Chair, duas importantes pesquisadoras na área de tecnologia e sociedade – a grande maioria das citações no livro vem de acadêmicos do Norte Global. Há uma falta de reconhecimento da contribuição de pessoas pesquisadoras latino-americanos, especialmente mulheres como Denise Kasparian, ou de grupos que são pioneiros no assunto. Além disso, faltam perspectivas feministas interseccionais de outras partes do mundo, inclusive da Europa, como as do grupo Dimmons e Mayo Fuster Morell, de Barcelona. De fato, mesmo no Norte Global, a política pública da cidade de Barcelona para a plataforma da economia solidária, MatchImpulsa, não é mencionada. O autor discute algumas cooperativas de jornalismo e comunicação, mas ignora a pesquisa sobre o assunto em lugares como Grécia (como Eugenia Siapera e Lambrini Papadopoulou), Argentina, Brasil e até mesmo Canadá (como Greig de Peuter, Gemma de Vertuil, Salome Machaka e o grupo Cultural Workers OrganizComo podemos imaginar, projetar e desenvolver alternativas mais inclusivas e justas para a economia digital? Em Own This! How Platform Cooperatives Help Workers Build a Democratic Internet, Trebor Scholz demonstra como isso é possível e se materializa em vários projetos concretos em andamento em todo o mundo.

Essas invisibilidades revelam as politicas de escrita do livro. Toda vez que o autor responde a uma crítica no livro, ele não cita nomes de pessoas, mas apenas comenta “muitos acadêmicos” ou “alguns pesquisadores”. Por meio desses silenciamentos, os leitores perdem os interlocutores de seu próprio trabalho. Por exemplo, o livro fala sobre “trabalho justo”, mas não menciona projetos sobre essa questão, como o projeto Fairwork. Ele também não reconhece colegas que estão fazendo um trabalho semelhante. Por exemplo, o autor acaba definindo o cooperativismo de plataforma como algo que pode ir além de uma plataforma e também além do cooperativismo (estranhamente), mas não reconhece uma série de pessoas pesquisadoras que também estão conceituando o fenômeno de forma semelhante. Reconhecer essas autorias e dialogar com interlocutores auxiliaria em uma maior visibilidade do próprio movimento e isso contribuiria para um movimento de cooperativismo de plataforma com mais vozes e diversidades.

Há alguns erros notáveis no próprio livro. Por exemplo, na página 188, o autor afirma: “É por isso que a Senoritas Courier, em São Paulo, uma cooperativa de plataforma para mulheres negras LGBTQIAP+, considera se associar à CoopCycle.” No entanto, a Senoritas Courier nunca considerou uma parceria com a CoopCycle, nem se posicionou como um coletivo de pessoas negras. Em outro ponto do livro, Scholz aponta que o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto do Brasil (MTST) se autoidentifica como “novos cooperativistas”, o que demonstra, no mínimo, uma falta de conhecimento sobre um dos maiores movimentos sociais urbanos do mundo, que existe há 25 anos.

Outro diagnóstico errôneo está na página 6, onde o autor afirma que: “O recente renascimento das cooperativas pode ser atribuído, pelo menos em parte, aos desafios apresentados por regimes autoritários e governos disfuncionais em muitos países, com modelos cooperativistas oferecendo um escudo parcial, mas prontamente disponível para os trabalhadores. No Brasil, a polícia do presidente Jair Bolsonaro ameaçou e matou pessoas negras.” No Brasil, essa associação de governos de extrema direita com o cooperativismo é fraca, na melhor das hipóteses, e falsa, na pior. Além disso, a frase sobre Bolsonaro e os negros, embora verdadeira, ignora o fato de que essa é uma realidade do Estado brasileiro historicamente.

Uma visão mais descentralizada também evitaria certa exotização em relação ao Sul Global. Por exemplo, na página 188, o autor afirma que: “Na América Latina e em outros países, as plataformas cooperativas tem uma aparência muito diferente; elas se concentram em fornecer acesso a serviços essenciais, como assistência médica e educação, que muitas vezes faltam nesses países.” Em primeiro lugar, esses não são setores em que as cooperativas estão mais florescendo na América Latina, e o autor não fornece detalhes ou dados sobre seu diagnóstico. Em segundo lugar, talvez o autor não saiba que um país como o Brasil tem um dos serviços públicos de saúde mais aclamados do mundo, e talvez ele se esqueça de que nos próprios Estados Unidos essas políticas públicas de saúde são inexistentes.

Esses exemplos demonstram os perigos de invocar uma perspectiva global sem conhecer e abordar adequadamente os contextos locais. De fato, uma perspectiva verdadeiramente global sobre o cooperativismo de plataforma não deve pensar em “importações mágicas” de conceitos ou práticas, mas na importância dos territórios – como demonstra a pesquisadora Denise Kasparian em relação à chegada da CoopCycle europeia (uma federação de cooperativas de entrega) à Argentina e seus desafios locais. O respeito aos territórios e seus conceitos é importante para não apagar as experiências locais e suas especificidades. Caso contrário, corre-se o risco de um enquadramento “de cima para baixo” com fórmulas apresentadas como universais, em uma simplificação que não abrange a complexidade e a diversidade de realidades tão diferentes.

Organizar-se é fundamental

Um ponto central (e de suma importância) em Own This! é a necessidade de maior coordenação entre cooperativas e sindicatos, conforme defendido por vários autores, inclusive os pesquisadores canadenses Greig de Peuter e Nicole Cohen. Entretanto, em certos pontos do livro, parece haver uma inversão entre causa e consequência. Na página 101, o autor argumenta que as plataformas cooperativas proporcionam autoorganização e autonomia, oferecendo assim uma economia digital social aberta que começa no nível do local de trabalho. Mas uma hipótese mais assertiva seria o oposto, ou seja, é a capacidade de autoorganização e a verdadeira autonomia das pessoas trabalhadoras que tornam as cooperativas possíveis.

Scholz também se beneficiaria de um maior engajamento com a literatura sobre organização dos trabalhadores, o que poderia fornecer um diagnóstico mais preciso da relação entre cooperativismo e sindicalismo. O autor ignora as pesquisas não apenas sobre sindicalismo e plataformas, mas também a crescente literatura sobre formas emergentes de organização e coletivização de trabalhadores em plataformas, fora dos sindicatos: por exemplo, Lorenzo Cini, Vicenzo Maccarronne e Maurizio Atzeni. Além disso, o Leeds Index of Platform Labor Protests destacou como a maioria dos protestos em todo o mundo veio de associações e coletivos, não necessariamente de sindicatos institucionais. Essa falta de profundidade sobre o assunto leva a certos deslizes conceituais, como, por exemplo, colocar o cooperativismo muito acima do sindicalismo. Às vezes, o autor também parece celebrar a não sindicalização das cooperativas, como no caso coreano da página 117. O caso da Mensakas, em Barcelona, não é suficientemente explicado e contextualizado, pois apresenta uma história muito singular na relação entre o sindicato (Riders x Derechos) e a cooperativa (Mensakas), e na própria organização sindical. Ao apresentar casos como “globais”, a discussão tende a ignorar a legislação e os contextos variados de diferentes países em relação ao sindicalismo.

Pensar tanto nas coalizões quanto nos conflitos entre o sindicalismo e o cooperativismo é um lembrete importante do fato de que a chave para o cooperativismo de plataforma – em toda a sua diversidade e variações – é a organização. Esse é o fator determinante em suas lutas contra as plataformas dominantes. A busca de articulação entre essas lutas e a organização de trabalhadores é fundamental e pode envolver mais diálogo com os movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto do Brasil demonstrou por meio de seu Núcleo de Tecnologia. Isso também significa levar mais a sério o papel do Estado na promoção e no fomento do cooperativismo de plataforma – outro ponto pouco abordado no livro, com apenas exemplos da Indonésia, sem mencionar iniciativas em andamento em países como Espanha e Brasil. As políticas públicas para cooperativismo de plataforma devem ser entendidas como parte do planejamento econômico de um país ou região.

A agenda do cooperativismo de plataforma precisa continuar, pois temos ainda muitos outros desafios a enfrentar. Estamos aqui defendendo um cooperativismo de plataforma que seja mais inclusivo, diversificado, nuançado, verdadeiramente global e que se relacione a uma visão mais ampla de justiça social, incluindo a justiça epistêmica. Estamos defendendo um cooperativismo de plataforma que problematize os processos de plataformização em direção a uma Internet verdadeiramente democrática. E que isso seja construído com base em premissas anticoloniais, nas quais as relações internacionais ocorram no espírito de troca, cooperação, solidariedade e reciprocidade. Isso é necessário para que ainda mais pessoas em todo o mundo possam fazer parte desses projetos.

Mesmo com as questões levantadas aqui, o livro Own This! continua sendo uma boa referência para imaginar futuros (digitais), especialmente para aqueles que estão apenas começando a se familiarizar com o debate e nunca consideraram a possibilidade de os trabalhadores terem propriedade das tecnologias e organizações. A crítica que apresentamos é, portanto, construtiva e um convite amigável para compartilhar e trocar experiências, expectativas e sonhos. Também estamos aqui imaginando, experimentando, aprendendo e projetando futuros (digitais).

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *