Tecnologias: O romantismo ludista não nos salvará

Diante da desumanização que marca o mundo digital, cresce a defesa melancólica da vida analógica. É um pensamento míope, incapaz de enxergar algo crucial: a opressão não é exercida pelas máquinas, mas pelas relações sociais que as comandam

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Título Original
As vantagens da miopia

Grande atenção tem sido dada recentemente a um suposto renascimento da dita “era pré-digital”. Seja a redescoberta das câmeras analógicas pela geração Z, seja a volta dos fones de ouvido com fio à moda,i essa tendência tem sido diagnosticada pela maioria da mídia liberal como um clamor generalizado por um tempo em que a temporalidade em si não havia ainda perdido sentido para nós. Que esse clamor venha principalmente daqueles que, como eu, não conheceram uma vida antecedente à presença ubíqua da internet, como Clay Routledge recentemente escreveu para o New York Times, não deve ser um fator menosprezado.ii A “nostalgia histórica”, termo cunhado pela autora para aqueles que anseiam por uma época que não viveram, sustentaria uma resistência a males sociais como a chamada “epidemia da solidão” entre jovens adultos.

Certos autores chegam mesmo a afirmar que um retorno à vida offline poderia servir de auxílio no combate ao extremismo político atual. Em seu livro mais recente, por exemplo, Christine Roseniii sugere que promessas de promover esferas democráticas de debate, tão associadas à emergência das tecnologias digitais, resultaram no oposto: ao privilegiar interações mediadas por telas, teríamos supostamente perdido a capacidade de nos envolver de forma significativa uns com os outros. O livro de Rosen não é o primeiro, e infelizmente provavelmente não será o último, a fazer essa afirmação. Trata-se de um pânico tão antigo quanto a própria história da tecnologia — o que, como a autora corretamente observa, quer dizer que provavelmente é tão antigo quanto a história como um todo.

Podemos lembrar por exemplo da famosa desconfiança de Platão em relação a como escrita iria arruinar a memória humana, do protesto de Kant sobre as guilhotinas banalizarem o assassinato, ou de como a guitarra elétrica iria acabar com a música popular. Se seguirmos essa linha de raciocínio, não é difícil imaginar um magdaleniano gritando para seus companheiros que desenhar suas presas naquelas paredes seria o fim de nossa capacidade para caçar. Quando lido em conjunto com o diagnóstico de Routledge sobre a busca da Geração Z por “hobbies offline”, no entanto, o apelo de Rosen por um renascimento do “engajamento corporal” em detrimento à mediação por telas seria suficiente para retomar as “dimensões afetivas” necessárias para cultivar experiências “mais empáticas” e “não mediadas”.

Análises como essas convergem na medida em que todas elas – a meu ver, acertadamente – captam um sentimento generalizado de fracasso. Sentimentos nostálgicos parecem de fato emergir quando as forças para transformar nosso presente ainda se mostram difusas. Eles seriam uma forma de miopia, nesse sentido. O que autores como Routledge e Rosen falham em analisar, no entanto, são as motivações políticas que acostumaram nossa visão a um presente tecnológico tão prejudicial.

Dizer que abrir ou não mão da tecnologia em nossas vidas cotidianas é uma opção individual, como faz Rosen, ou reduzi-la a uma “tendência de consumo”, como sugere Routledge, é, para dizer o mínimo, mais do que perder o foco. Afirmações como essas supõem que a onipresença tecnológica e seus descontentes são de alguma forma acidentais ao capitalismo. Seus diagnósticos perdem de vista — ou deliberadamente escondem — como qualquer crítica à tecnologia que não leve em conta seus meios históricos de produção está fadada a perder seu objeto central. Sobretudo, perigam de desviar nossa atenção das condições concretas que fizeram nossa “nostalgia histórica” surgir em primeiro lugar.

Talvez um exemplo importante de como o discurso dominante sobre tecnologia digital, ao menos na mídia liberal americana, esconde seu lado político possa ser visto nas reações recentes à indicação de Zohran Mamdani para concorrer à prefeitura da cidade de Nova York. Apesar da grande ênfase de Mamdani em tornar suas políticas o mais claras possível, a esquerda liberal americana se concentrou na “esperteza” do candidato ao usar as redes sociais.iv Ao discutir a vitória de Mamdani em seu programa, por exemplo, o colunista político Ezra Klein, do NYT, chegou a comparar a mestria do candidato em vídeos à la TikTok, com a de Trump no Twitter. Assim como Routledge e Rosen reduzem o descontentamento com a tecnologia a um renascimento esteticizado e individualista da era pré-internet, a comparação de Klein exemplifica uma miopia estratégica em relação ao que orienta a insatisfação política atual partilhada por grande parte da população americana jovem.

Eles desconsideram, por exemplo, como a chamada “virada analógica” da Geração Z ocorre ao mesmo tempo em que os eleitores americanos mais jovens se identificam cada vez mais com visões socialistas.v Ao interpretar ambas as tendências de maneira isolada, tais analistas tratam a tecnologia como uma presença reificada cujas falhas em concretizar as promessas de liberdade e autorrealização não compartilham nenhum traço com a história capitalista que a nutriu. Esquece-se que “a mídia é a mensagem”, slogan tão perpetrado entre analistas liberais, apenas na medida em que “a mídia” já está ela mesma historicizada dentro das práticas sociais cujas mensagens incorporam.

Tomemos o exemplo dos algoritmos de redes sociais. Parece muito conveniente que Rosen critique sua conhecida natureza viciante mas minimize o papel das empresas que realmente se beneficiam com eles como mera “ganância corporativa”. Em tempos em que nossa atenção se torna a forma paradigmática de exploração, e “a mídia” que ela emprega capitaliza ativamente através de alienação digital, abster-se dessas plataformas indica algo mais semelhante a uma greve do que uma nova “tendência de consumo”, como quer Routledge.

Sugiro uma pergunta para evitarmos uma miopia quando tratamos de tecnologia: estamos diante de uma mudança qualitativa ou quantitativa? As evidências parecem apontar para a segunda opção. Pois talvez seja o caso de considerar se as supostas “falhas” da tecnologia digital não escondem, em verdade, os triunfos de um sistema político que, desde sua concepção, prospera a partir da alienação. Seria realmente surpreendente alguém defender os benefícios do trabalho físico dos mineiros do século XIX apenas por sua “experiência corporificada”.

A surpresa, aqui, não resulta de uma defesa das vidas “desencarnadas” e da sua falta de “experiência da vida real”. Em vez disso, ela traz à tona a nulidade de qualquer crítica à tecnologia que tente dissociá-la de uma crítica à economia política. Assim como a presença incessante da tecnologia em todos os aspectos da vida desenvolve a verdade de um sistema que sempre se baseou em domar nossos corpos, o que separa os trabalhadores ao longo dos séculos parece residir na intensificação das ferramentas que emprega para tal. O que os une, por outro lado, é a consciência de que a tecnologia não surge do nada, sentimento encarnado no sofrimento seja em operários do século passado, seja nos servos digitais de hoje.vi

O capitalismo prospera através do esquecimento sistemático de sua própria história. Reduzir nossa insatisfação com ele a uma tendência contingente torna-se, assim, apenas mais uma ferramenta estratégica para sustentá-lo. Se nostalgia e miopia histórica andam juntas, o primeiro passo para recuperar nosso futuro deve ser não perder de vista quem se beneficia quando fechamos os olhos à política que efetivamente as sustentam.

Referências


i https://fortune.com/2024/07/05/concerts-lps-cds-print-gen-zs-enthusiasm-all-things-touchable-resurrecting-analog-economy-costing-parents-retail-entertainment-personal-finance/

ii https://www.nytimes.com/2025/08/24/opinion/gen-z-technology-nostalgia.html

iii Christine Rosen’s The Extinction of Experience.

iv https://www.nytimes.com/2025/08/16/nyregion/cuomo-adams-mamdani-social-media.html

v https://d3nkl3psvxxpe9.cloudfront.net/documents/crosstabs_Systems_of_Government_20241018.pdf

https://www.cato.org/sites/cato.org/files/2025-04/Tax%20Policy%20Survey_2025_2.pdf

vi https://www.cnn.com/style/vietnam-farms-jack-latham-beggars-honey

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