Saúde e IA: o que podemos aprender com a China

Brasil, que mantém o maior sistema público de Saúde do mundo, precisa modernizá-lo. Tarefa equivale a uma Reforma Sanitária Digital. Como o tema pode suscitar uma parceria estratégica com Pequim – que tem as tecnologias, mas não um SUS

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Começamos o ano de 2023 com a expectativa de recuperação de todo o tempo perdido desde o Golpe de 2016 e a renovação da esperança na implantação de políticas públicas por um governo que assumisse novamente o papel que desejamos para o Estado. O marcado abandono do espírito republicano, pela verdadeira matilha que assumiu o governo federal na eleição anterior, após um conjunto de vilanias orquestradas entre a grande mídia e a banda podre do judiciário, nos expôs a um dos capítulos mais esclarecedores de nossa história dos limites a que pode chegar o desprezo que a elite que domina este país tem pela maioria do seu povo. Esperava-se, já desde a campanha

eleitoral, que excluiu de forma ilegal o principal candidato com uma farsa que entrará para a memória da nossa política, o desmonte de direitos, o desprezo ao pensamento coletivo, à diversidade, à arte e ao conjunto da cultura brasileira, além da destruição ambiental… enfim, esperava-se que passariam a boiada. Mas penso que foi a pandemia de COVID-19 que demonstrou de forma ainda mais cruel a banalidade do mal que nos atingiu, tensionando ao extremo os liames civilizacionais: encarnado no poder civil e militar, uma corja de políticos, profissionais de saúde, pastores neopentecostais e entidades de classe foram diretamente responsáveis pelo sofrimento e morte de muitas dezenas de milhares de brasileiros, configurando uma das piores estatísticas no desfecho da doença em todo o planeta1. Uma conta que ainda não foi cobrada aos verdadeiros

culpados – mas que não devemos, nem temos o direito de esquecer.

Dessa verdadeira lama de nossa história, justamente pelo sofrimento que nos causou na área da saúde, percebemos que renasceu um forte espírito de alegria potente de retomar a construção do projeto de país, que vinha sendo duramente trabalhado nas últimas décadas. Essa lótus percebe-se, por exemplo, de forma muito clara no empenho de implantar uma política sanitária que seja, por si só, um grande propulsor para a recuperação tecnológica e econômica, avançando além dos limites ministeriais, direcionado pela inovação que poderá nos redimir da eterna dependência do subdesenvolvimento2.

Foi com esta mesma perspectiva de retorno ao programa democrático, impactado pelo agravamento das condições socioeconômicas que sucederam o Golpe, que recuperamos as concepções programáticas da Reforma Sanitária, para absorver a chegada das tecnologias que admitimos demarcar uma nova época, a Era Digital.

O que idealizamos como Reforma Sanitária Digital não é um conjunto de medidas, portarias ou decretos burocráticos que crie órgãos ou equipes apenas para traduzir práticas de gestão ou mecanismos administrativos que absorvam as tecnologias de aplicativos e softwares dentro da estrutura de saúde. Pensar em acelerar processos, reduzir custos, integrar unidades, ampliar o acesso, melhorar o planejamento são metas importantes que não podem estar ausentes do escopo de qualquer governante que assuma o comando de uma estrutura de saúde responsável por mais de 200 milhões de pessoas, sendo a grande maioria em fragilidade socioeconômica. Mas, não entender que estamos ingressando em uma nova era tecnológica, onde é preciso verdadeiramente revolver conceitos e construir saberes para nos posicionar em outra dimensão estratégica muito além da gestão de telessaúde e prontuários, é não entender a própria era digital3. Assim, talvez o termo Reforma, tão caro e possível aos idealizadores do nosso Sistema Único na frágil democracia das décadas de 1970/80, deveria desde já ser substituído por revolução. Pois o que se aproxima, ainda como possibilidade mas com urgente necessidade, é um processo de grande transformação social4.

Podemos perceber que o conjunto de medidas que vem sendo tomadas pelo novo governo, já mesmo no período de transição ao final de 2022, sinalizam a intenção de ingressar nessa nova era; como a pronta criação da Secretaria de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde, logo no princípio do governo e, com o amadurecimento desta, o lançamento do SUS Digital agora neste ano5. Mas entendendo essas medidas e este período como iniciais e parte de um processo que deve ir muito além de uma reforma administrativa da saúde, continuamos propondo um projeto que nos conduza a outro patamar de desenvolvimento.

Ainda no princípio de 2023, lançamos a ideia da Reforma Sanitária Digital, com a perspectiva de desenvolver um ampliado programa de Saúde Digital, que tenha como eixo central a atuação visando a transformação social desejada com os históricos objetivos de nossa Reforma Sanitária6. Na condução pelo governo federal de ações coordenadas, interministeriais, de grande abrangência em todo o território nacional, e com grande articulação política estaria uma força-tarefa que seria fundamental para a eliminação da pobreza. É, de fato, uma estratégia essencial o cumprimento do primeiro Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, dos 17 ODS que fazem parte da Agenda 2030, da qual o Brasil é signatário7.

No direcionamento de uma ação central que fundamentasse a política de saúde com o engajamento e compromisso no combate à pobreza, a motivação que sustentava nossa ideia surgiu da reabertura de uma nova relação com a China, que se anunciava a partir da primeira visita oficial que o presidente Lula faria em meados de abril do primeiro ano do governo.

O exemplo da transformação social pela qual a China conseguiu erradicar a miséria é um caso notável, que ainda não foi devidamente divulgado nas suas devidas proporções pela mídia ocidental. A China prioriza há tempos o desenvolvimento econômico aliado ao combate à pobreza. Com a filosofia de buscar desenvolvimento econômico sustentável e forte com uma economia baseada em planejamento estratégico, o governo chinês vê as políticas públicas como um motor essencial de desenvolvimento de sua infraestrutura digital e um bom campo para inovações tecnológicas com ampla utilização das tecnologias de Inteligência Artificial (IA)8.

As políticas chinesas de eliminação da pobreza extrema seguiram esse rumo e, em 2020, cumpriram o objetivo do seu 13º Plano Quinquenal (2016-2020)9. Por usar indicadores abrangentes e detalhados da população que orientem as ações públicas, o governo chinês contou com uma parceira fundamental: a Governança Baseada em Dados [Data-based Governance]10. O emprego de tecnologias digitais como o Big Data, por exemplo, foi o que permitiu o manejo de grandes bancos de dados para, por meio de indicadores territorializados e gestão descentralizada, identificar as famílias-alvo e suas demandas específicas, ajustando as políticas públicas a cada território e os programas de assistência a cada perfil de família. E tudo isso exigiu a construção de datas centers, digitalização dos dados, integração digital de departamentos e instituições, a construção de uma plataforma nacional de compartilhamento de informações, desenvolvimento de novas soluções digitais em big data, IA etc. Em resumo, dependeu do desenvolvimento de um sólido ecossistema digital e sua infraestrutura. Em outras palavras, o compromisso com o combate à fome, à pobreza e à desigualdade tornou-se propulsor de desenvolvimento nacional.

Na proposta que desenhamos, e que tivemos uma rápida possibilidade de expor em um Ciclo de Debates do NETHIS/Fiocruz-Brasília11, os componentes principais estariam baseados em três eixos que nos parecem fundamentais na experiência chinesa para organização do nosso programa baseado em tecnologias de Inteligência Artificial: primeiro, um sistema de governança baseada em dados, IA e Big-Data, que organize e lidere a transformação da saúde digital; segundo, o desenvolvimento de um ecossistema digital público e soberano com ampla e capilarizada participação da sociedade; por fim, algo marcante na experiência chinesa – a concepção de uma forte governança estatal sobre o investimento privado em saúde. E esta última medida se mostra de extrema urgência no momento atual, onde o capital financeiro já projeta o seu ganho lucrativo na saúde a partir do controle dos dados e datificação do sistema.

Mantivemos, então, grande expectativa após o encontro entre os presidentes Lula e Xi Jinping, que resultou na assinatura de uma sequência de 15 acordos de parcerias para desenvolvimento tecnológicos e investimentos12. No entanto, após um ano desta visita e do início de projetos na área industrial, ainda esperamos por um mais claro alinhamento de um projeto nacional na área das tecnologias de informação que nos permita sair do ciclo de dependência do modelo competitivo das Big Techs, onde somos meros expectadores e compradores. Episódios recentes onde ficou exposto o comportamento colonizador dos magnatas do ramo e o desproporcional poder nas mãos de um único indivíduo que controla uma gigantesca entidade privada13 (algo aliás característico das Big Techs do Vale do Silício) demonstra o quanto podemos estar equivocados ao não nos posicionarmos de forma mais clara e definitiva na geopolítica em outro polo das tecnologias de IA.

Mesmo com o reaquecimento dos BRICS e sua expansão14, permanecemos ainda na expectativa de materialização de programas e projetos que tragam um novo modelo de relação baseado fundamentalmente na cooperação para o desenvolvimento conjunto econômico e social desse novo arranjo mundial baseado na multipolaridade. Não nos parece claro, contudo, que essa concepção seja a dominante mesmo nesse governo. Em entrevista recente, o economista Paulo Nogueira Batista, ex-Vice-Presidente do Banco dos BRICS, nos traça um panorama que confirma a ainda predominante dependência de nossa política externa ao Norte Global (o eixo EUA – Europa)15 e lamenta a contraditória representação da nossa diplomacia na China estar a cargo de representantes das forças de direita, que de fato ainda sobrevivem como herança do governo anterior16.

Dentro dessa perspectiva, foi com extrema satisfação que demos conta da visita do ministro Celso Amorim, da Assessoria Especial da Presidência da República, ao Escritório da Comissão de Relações Exteriores do Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh) na última semana17. Além de comemorar o 50º aniversário dos laços diplomáticos China-Brasil e de receber manifestação de apoio ao trabalho do Brasil como presidência rotativa do G20 este ano, Amorim destacou que o Brasil deve planejar a cooperação em vários campos, com expansão do comércio e investimento, principalmente em novos campos, como inteligência artificial e economia digital. A reportagem termina com a sinalização de que o presidente Lula atribui grande importância à erradicação da pobreza, e tem ciência das conquistas notáveis da China nesse campo.

Sabemos das possibilidades de ganhos bilaterais, nas parcerias que compartilhem o conhecimento de nossas culturas, ao lidar com sistemas de saúde em grandes populações. A experiência de mais de três décadas de concepção, planejamento e gestão do nosso Sistema Único de Saúde com ampliado foco nas práticas de atenção primária é o nosso trunfo, mas que aguarda ainda o tratamento adequado do imenso banco de dados que esse sistema dispõe.

Pelo lado chinês, a liderança tecnológica em curso com as tecnologias de IA teriam forte papel em alianças globais, pois é o que está programado no ideário da Rota da Seda da Saúde, com a divulgação oficial do Beijing Communiqué of The Belt and Road Health Cooperation & Health Silk Road, lançado em 201718. Neste documento, manifesta-se o interesse em impulsionar atividades conjuntas intergovernamentais rumo à cobertura universal da saúde, contendo fundamentos necessários, tais como a construção de infraestruturas, o acesso a medicamentos e os recursos humanos, necessários para construir uma plataforma de partilha de experiências e de promoção das melhores prática de saúde. O conceito da Rota da Seda da Saúde encoraja a cooperação entre governos, organizações internacionais e regionais, universidades, setor privado, sociedade civil, e público em geral, numa abordagem multissetorial, multinível e num espírito de governança colaborativa19.

Parece-nos claro desejar combinar as necessidades de uma ampliada política nacional, como a proposta pela Reforma Sanitária Digital, com as capacidades de expansão da rede de governança da saúde global presentes na vigente Rota da Seda da Saúde. Por fim, é importante ressaltar uma característica própria da tecnologia de informação que a destaca frente a outras descobertas tecnológicas que transformaram a vida humana e social na cadeia das revoluções industriais. Se elencarmos a eletricidade, o domínio nuclear e o biomolecular como os principais ramos de poderes tecnológicos dos últimos dois séculos, destacamos a informação como a única que se comporta como insumo tecnológico mas também como instrumento ideológico, o que aumenta consideravelmente o seu poder de controle sobre a sociedade. O uso das tecnologias de IA na última década e o tratamento da informação na política e durante a pandemia demonstraram que até o momento, somente o caminho da ciência tem nos garantido a segurança para o planejamento adequado de políticas que garantam a sua implantação com retorno social de forma democrática. Nesse caminho, o desejo de acertos em prol do bem coletivo poderá encontrar na boa política, com o apoio da ciência, o que necessitamos para o coletivo da humanidade.

1 Em três anos de pandemia, ciência e vírus evoluíram | Agência Brasil (ebc.com.br)

2Estratégia Nacional de Desenvolvimento do Complexo da Saúde: compromisso com as demandas da sociedade brasileira | CEE Fiocruz

3Floridi, L. The Fourth Revolution. How the infosphere is reshaping human reality. UK, Oxford University Press. 2014

4Fleury, S. A questão democrática na saúde. In: Fleury, S. (Org). Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial, 1997a. p. 18-28.

5Instituição do SUS Digital – FNS (saude.gov.br)

6Lula na China: uma janela para a Saúde digital – Outras Palavras

7Objetivos de Desenvolvimento Sustentável | As Nações Unidas no Brasil

8Floridi, L; Huw, R & cols. The Chinese approach to artificial intelligence: an analysis of policy, ethics, and regulation. AI & SOCIETY (2021) 36:59–77. https://doi.org/10.1007/s00146-020-00992-2

9Chinese Poverty Alleviation Studies.pdf

10UNDP-CH-PR.-Publications-Measuring-Poverty-with-Big-Data-in-China-reduced.pdf

11Dimensões Éticas da Transformação Digital em Saúde (youtube.com)

12Lula e Xi Jinping assinam 15 acordos de parceria em Pequim | Agência Brasil (ebc.com.br)

13Entenda decisão de Moraes que incluiu Musk em investigação no STF | Agência Brasil (ebc.com.br)

14Brics terá seis novos países a partir de janeiro de 2024 | Agência Brasil (ebc.com.br)

15Ex-vice-presidente do banco dos Brics avalia encontro de Xi e Putin (youtube.com)

16https://piaui.folha.uol.com.br/itamaraty-lula-diplomatas-bolsonarismo-cargos/

17Celso Amorim se encontra com mais alto diplomata chinês em Pequim – China Hoje

18Cheng, Y., & Cheng, F. China’s unique role in the field of global health. Glob Health Journal. Dec.3(4), 8-101 – (2019) doi: 10.1016/j.glohj.2019.11.004.

19Cao, J. Toward a Health Silk Road China’s Proposal for Global Health Cooperation. China Quarterly of

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