Quem são os brasileiros que alimentam as IAs
Eles são os ombros em que a tecnologia se apoia para se desenvolver. Maioria, no Brasil, são jovens e mulheres, com escolaridade superior à média. Ganham miséria. Relatam despotismo algorítmico e sofrimento mental. São invisíveis, até para a lei
Publicado 14/04/2025 às 20:08 - Atualizado 14/04/2025 às 21:16

Este texto é um capítulo do livro As Novas Infraestruturas Produtivas: digitalização do trabalho, e-logística e indústria 4.0, organizado por Ricardo Festi e Jörg Nowak e publicado pela editora Boitempo, parceira de Outras Palavras. Quem colabora com nosso jornalismo tem desconto de 20% em todos dos títulos da editora. Saiba como apoiar

Introdução
A produção da inteligência artificial (IA) é comumente associada ao trabalho de engenheiros de software ou profissionais altamente qualificados, vinculados a grandes empresas ou start-ups especializadas, que se desenvolveram inspiradas na ideologia californiana [1]. Contudo, o desenvolvimento de “tecnologias inteligentes” depende também, em diferentes etapas, de uma multidão de trabalhadores precarizados, sub-remunerados e invisibilizados, os quais dispersos globalmente realizam atividades repetitivas, fragmentadas, pagas por tarefa e feitas em poucos segundos.
Trata-se de trabalhadores que rotulam dados para treinar algoritmos, mediante tarefas que necessitam das capacidades intuitivas, criativas e cognitivas dos seres humanos, tais como categorização de imagens, classificação de publicidades, transcrição de áudios e vídeos, avaliação de anúncios, moderação de conteúdos em mídias sociais, rotulagem de pontos de interesse anatômicos humanos, digitalização de documentos etc. [2]. Embora se trate de um processo essencial ao aprendizado de máquina (machine ou deep learning), esse trabalho é externalizado para plataformas digitais ou para redes especializadas de terceirização [3], bem como é realizado nas franjas da informalidade, sem quaisquer proteções social ou trabalhista (salvo algumas exceções), tampouco autonomia para negociação de remuneração.
Esta forma de trabalho é frequentemente designada por “microtrabalho”. Tal termo ganhou popularidade em meados dos anos 2000, baseado no conceito de “microcrédito”, abordagem econômica que teria supostamente por finalidade garantir inclusão financeira a populações vulnerabilizadas e marginalizadas, sem acesso a serviços bancários. É nessa esteira discursiva que surgem as plataformas digitais especializadas em rotulagem e treinamento de dados para IA, como se a produção de dados pudesse oferecer uma possibilidade semelhante, porém relacionada à obtenção de renda on-line. No mundo todo, estima-se que haja mais de 160 milhões de trabalhadores [4] registrados em plataformas de microtrabalho e freelancer [5]. Nas plataformas de trabalho freelancer, a média global de remuneração é de 7,6 dólares por hora, enquanto nas de treinamento de dados a média é de 3,3 dólares por hora [6]. Numa perspectiva mais ampla, uma pesquisa realizada pelo Banco Mundial estima que globalmente há entre 154 e 435 milhões de trabalhadores subordinados a diferentes tipos de plataformas digitais [7].
Os estudos sobre o microtrabalho surgiram em meados de 2010 [8] e a maior parte das pesquisas se concentra em países da Europa e da América do Norte. Os principais produtores de IA no mundo estão sediados no Norte Global, porém se servem majoritariamente de mão de obra barata proveniente do Sul Global [9]. Pesquisas recentes evidenciaram ainda a expressiva presença de trabalhadores de diferentes países da América Latina nessa cadeia produtiva [10].
No Brasil, Rafael Grohmann [11] e Ricardo Antunes [12] organizaram obras coletivas dedicadas à compreensão dos impactos das plataformas digitais no mundo do trabalho, inclusive no que diz respeito à produção da IA e à nova morfologia do trabalho em nossa sociedade. A plataformização do trabalho e a uberização, nesse sentido, têm sido objeto de inúmeros debates, notadamente relacionados ao processo histórico de informalização do trabalho em território nacional [13]. Todavia, ainda são incipientes as pesquisas empíricas concernentes ao trabalho digital de rotulagem e treinamentos de dados para IA [14].
Em contraposição, Viana Braz [15] constatou a existência de ao menos 54 plataformas de microtrabalho em operação no Brasil, sendo que 29 abarcavam microtarefas de geração, anotação ou verificação de dados para aprendizado de máquina, o que indica que o Brasil constitui uma das principais reservas de mão de obra desse mercado na América Latina. Mas quem são, afinal, os trabalhadores brasileiros que atuam nessas plataformas? Em quais condições realizam seus trabalhos? Quanto ganham? Por que recorrem às plataformas? Quais as diferenças entre trabalhadores do Norte Global e do Sul Global, quando nos remetemos à produção e à qualificação de dados que sustentam a produção da IA? Esse trabalho poderia, enfim, ser considerado como uma sólida oportunidade de renda para países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
Para responder a essas interrogações, buscamos cartografar o perfil sociodemográfico dos trabalhadores brasileiros no mercado de anotação de dados, para depois analisarmos em quais condições realizam suas atividades. Para tanto, fizemos uma pesquisa exploratória que abarcou métodos mistos. Primeiro, elaboramos uma etnografia digital dos anos de 2020 e 2021, em 24 grupos de WhatsApp e Facebook relacionados a esse mercado [16]. A partir dessa inserção no campo, no ano seguinte convidamos individualmente alguns membros desses grupos e realizamos quinze entrevistas em profundidade. Tratou-se de dez mulheres e cinco homens, com idade mínima de 22 e máxima de 54 anos. Entre os participantes, treze pessoas possuíam ensino superior completo, em diferentes áreas, como direito, engenharia de petróleo, fisioterapia, engenharia civil, administração, biotecnologia, letras, comércio exterior e ciência da computação. Todos trabalhavam em ao menos uma e no máximo quatro plataformas concomitantemente, entre as seguintes: Amazon Mechanical Turk, Appen, Telus (anteriormente denominada Lionbridge), Clickworker, Quadrant e OneForma.
Em 2023, servimo-nos de metodologia análoga àquela utilizada nos trabalhos de Casilli et al., Kalil e Moreschi et al. [17] e aplicamos um questionário on-line a 477 trabalhadores brasileiros que atuavam na plataforma Microworkers. O instrumento foi desenvolvido no bojo do DiPLab (Digital Platform Labor Research Group), traduzido da versão em espanhol (aplicado em países como Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, República Dominicana, Venezuela etc.) e adaptado para o português, de acordo com particularidades do Brasil. O questionário compreendia cerca de 120 questões, relacionadas a informações sociodemográficas variadas, como níveis de escolaridade, situação familiar, experiência profissional, renda, uso da internet, relações sociais e condições de trabalho nas plataformas. A escolha pela plataforma justificou-se pelo fato de abarcar variadas modalidades de microtrabalho. No que concerne às questões éticas específicas das pesquisas em plataformas de microtrabalho, fundamentamo-nos nas reflexões e recomendações realizadas por Molina et al. [18]. Para análise dos dados, primeiro fizemos uma caracterização das plataformas de treinamentos de dados, de maneira a compreendermos como elas se inserem em cadeias globais de suprimentos para produção da IA. Depois, problematizamos a sociodemografia e as condições de trabalho dos brasileiros nesse mercado, com foco nas assimetrias existentes entre países do Norte Global e do Sul Global.
Fabricando os dados e invisibilizando o trabalho
Pedro, 54 anos, é graduado em comércio exterior, porém trabalha como corretor. Concilia essa atividade com outro trabalho, em plataformas digitais cujas tarefas implicam atividades como transcrever áudios, classificar avaliações de anúncios em websites de empresas e catalogar descritores para aperfeiçoar os mecanismos de busca do Google. No passado, participou também de projetos relacionados à moderação de conteúdos pornográficos e violentos em mídias sociais como Facebook e Instagram. Clara, 38 anos, é graduada em administração e morou no exterior por alguns anos. Ao voltar para o Brasil, trabalhou como professora de inglês, mas não se adaptou à escola à qual estava vinculada. Desde então, trabalha em plataformas de microtarefas variadas, notadamente relacionadas a avaliações de anúncios, classificação de dados e moderação de conteúdos em mídias sociais. Izabela, por sua vez, tem 29 anos e é mãe solo de uma filha de 9 anos. Mudou-se do Nordeste para o Sudeste do país para fazer um mestrado em uma prestigiada universidade pública. Como sua bolsa de pesquisa não lhe oferece condições financeiras suficientes para se manter, trabalha todas as noites em plataformas como Appen e OneForma, realizando microtarefas de transcrições de áudios. Embora possuam trajetórias de vida bastante distintas, o que Pedro, Clara e Izabela têm em comum?
Os três trabalham em plataformas digitais, como Appen, OneForma, Telus, Clickworker e Microworkers, voltadas à rotulagem de dados para o desenvolvimento da IA. Se os dados são uma das principais fontes de valor na indústria de “tecnologias inteligentes” (como carros autônomos, assistentes de voz e chatbots como o ChatGPT), fabricá-los e treiná-los é mais complexo do que comumente imaginamos. O trabalho de geração e anotação de dados é vastamente utilizado na produção da IA e cumpre uma variedade de funções que gravitam em torno de três polos: preparação, verificação e imitação da IA [19], conforme evidenciado na figura 1.
No primeiro caso, para que empresas, start-ups ou laboratórios de pesquisa desenvolvam algum tipo de IA, extensas bases de dados precisam ser geradas e qualificadas (via anotação e rotulagem), para que sejam estabelecidos os parâmetros técnicos dos algoritmos de aprendizagem. Esse processo exige um trabalho cognitivo sensível, elementar para extração e geração de valor de tais dados [21]. Na indústria de reconhecimento facial, por exemplo, a preparação da IA compete a trabalhadores que, mediante plataformas digitais ou redes especializadas de terceirização, realizam manualmente microtarefas de geração de dados, identificação de padrões de reconhecimento, classificação de expressões faciais e rotulagem de diferentes partes anatômicas do rosto (nariz, boca, olhos etc.) [22].
Mesmo após os processos de geração e anotação de dados, os parâmetros técnicos da produção da IA precisam ser continuamente aperfeiçoados, sobretudo para correção de eventuais falhas e para garantir maior acurácia técnica dos resultados dos algoritmos de aprendizagem. E aqui nos remetemos à função de verificação dos resultados da IA. Em plataformas digitais como Appen e Clickworker, microtarefas de verificação são recorrentes e envolvem, por exemplo, ouvir áudios e verificar se a transcrição automática gerada pelo assistente virtual está correta ou não [23]. Nesse cenário, Perrigo [24] revelou em reportagem publicada na revista Time que, visando deixar o ChatGPT menos “tóxico”, a OpenAI (empresa proprietária) contou com a terceirização de quenianos, contratados por menos de dois dólares por hora, para realizarem tarefas de verificação e rotulagem de dados relacionadas a comentários violentos que descreviam detalhadamente situações de abuso sexual infantil, assassinato, incesto, zoofilia, suicídio, tortura e automutilação. A referida empresa, denominada Sama, é sediada em São Francisco e se especializou na terceirização de trabalhadores no Quênia, em Uganda e na Índia, para rotular dados para clientes como Microsoft, Google e Meta [25].
Em outras situações, como o desenvolvimento do aprendizado de máquina é caro e por vezes falho, trabalhadores passam a desempenhar funções que supostamente deveriam ser realizadas por máquinas. Trata-se da imitação da inteligência artificial. É o caso, por exemplo, do Google Duplex, assistente virtual voltado à realização de ligações a empresas para agendamento de reservas e confirmação de horários. Em 2019, contudo, descobriu-se que cerca de 25% das chamadas realizadas pela ferramenta eram feitas por humanos em call centers, os quais imitavam a IA [26].
Nessa mesma direção, Le Ludec et al. [27] relatam o caso de uma start-up francesa que criou uma IA centrada em visão computacional que permite que câmeras de vigilância em lojas identifiquem furtos de maneira automatizada. Ao perceber algum tipo de comportamento suspeito, os caixas ou gerentes de lojas recebem mensagens automáticas de alerta em seus celulares. Três empresas terceirizadas em Madagascar e uma na Indonésia fazem o microtrabalho de preparação de dados e verificação dos resultados da IA da companhia na França, que envolve majoritariamente assistir a vídeos de câmeras (com pessoas supostamente roubando, desembalando ou danificando produtos) e rotular comportamentos considerados suspeitos, em menos de um minuto. Os autores revelaram, todavia, que alguns vídeos a serem rotulados eram, na realidade, reproduzidos em tempo real, diretamente das câmeras de alguns clientes da start-up. Mais que preparação e verificação, trabalhadores imitavam a IA e cumpriam a função de seguranças remotamente [28].
Processamentos de linguagem natural (que utilizam Large Language Models), visão computacional, análises preditivas, sistemas autônomos, assim como toda tecnologia baseada em aprendizado de máquina, incluindo a inteligência artificial generativa, dependem vastamente do trabalho humano de preparação, verificação ou imitação da IA. A título de ilustração, segundo relatório produzido pela Cognilytica [29], estima-se que o mercado de geração e anotação de dados para IA chegará a 3,5 bilhões de dólares até o fim de 2024. Tarefas de preparação e rotulagem de dados, nesse contexto, representam cerca de 80% do tempo gasto na maior parte dos projetos de IA que envolvem aprendizado de máquina [30]. Evidencia-se, portanto, que esse trabalho constitui um ingrediente secreto da cadeia de suprimentos da IA. Secreto, pois ele parece ser invisibilizado, por parte dos produtores da IA globalmente, de modo que, sobretudo no Brasil, segue ainda distante da esfera pública e da agenda regulatória, tanto no âmbito da IA como no do trabalho plataformizado.
Nos últimos dez anos, esse mercado se diversificou e se expandiu de maneira heterogênea. A Amazon Mechanical Turk, primeira plataforma global de treinamentos de dados, lançada em 2005 por Jeff Bezos, parece ter perdido relevância, frente ao surgimento de novas plataformas intermediárias [31] e também devido à criação do SageMaker Ground Truth, plataforma interna que se serve de tarefas humanas para aprimorar seus modelos de aprendizado de máquina. Schmidt [32], nessa direção, discorre que a demanda de maior acurácia e complexidade das tarefas também resultou num processo de especialização das plataformas em mercados e projetos determinados.
Existem plataformas de anotações de dados focadas em microtarefas de uso geral (general-purpose crowdwork), nas quais as tarefas são ofertadas numa espécie de market place aberto, como ocorre na Neevo, Microworkers, Hive Work e Amazon Mechanical Turk. Há, também, plataformas construídas por meio de múltiplas camadas e níveis de complexidade (specialized full-service crowd-AI stacks), como Appen, Telus, Quadrant, Mighty AI e Scale AI. São organizadas mediante projetos específicos, nos quais os trabalhadores precisam fazer provas, para atestar habilidades e conhecimentos pré-definidos. Ao serem aprovados, após assinarem um acordo de confidencialidade (non-disclosure agreement), estabelece-se um contrato de tempo parcial e são direcionados para outra camada nas plataformas. Nesse plano, deve-se cumprir uma quantidade específica de horas ou tarefas por dia e a remuneração ocorre mediante um valor/hora definido pela plataforma [33].
No mundo todo, os trabalhadores dedicam em média 18,6 horas semanais a atividades remuneradas nessas plataformas, e 32% deles têm como principal fonte de renda o trabalho de anotação de dados [34]. Como o processo de distribuição e avaliação das atividades é controlado por algoritmos, os preços são definidos unilateralmente, assim como é comum que haja rejeições injustas das tarefas realizadas, de modo que os trabalhadores não recebem por trabalhos concluídos e não raro tampouco recebem justificativas dos motivos da rejeição, pois não há comunicação entre o cliente e o trabalhador. Além de culminar na perda de rendimentos, as reprovações reduzem suas classificações nas plataformas, o que limita suas possibilidades de terem acesso a melhores projetos [35].
Ainda que os modelos de negócios tenham se diversificado nos últimos anos, as diferenças de remuneração e condições de trabalho desses mercados evidenciam a criação de canais mundiais de deslocamento da força de trabalho, em que atividades mal pagas e invisibilizadas refletem assimetrias e tensões históricas entre o Norte Global e o Sul Global. Em países desenvolvidos, a média de rendimentos por hora é de 4 dólares, contra 2,10 dólares em países em desenvolvimento. Ademais, em estudo conduzido pela Organização Internacional do Trabalho [36], que abarcou cinco plataformas em 75 países, constatou-se que o rendimento médio por hora dos trabalhadores nessas plataformas é de 4,70 dólares na América do Norte, 3 dólares na Europa e na Ásia Central, 2,22 dólares na Ásia Pacífico e 1,33 dólar na África. Descortina-se, nesse contexto, uma série de desigualdades digitais, intensificadas pela pandemia de covid-19 [37] e relacionadas a marcadores de raça [38], gênero [39], classe, educação [40] e território [41].
No Brasil, Viana Braz [42] observou que o trabalho de anotação e rotulagem de dados se insere num ecossistema mais amplo, de plataformas de microtrabalho que se difundem por meio da promessa de renda extra on-line, de maneira supostamente fácil e rápida. Esse mercado abarca também plataformas de fazendas de cliques (click farms), voltadas ao mercado de compra e venda de seguidores, curtidas, comentários e inscritos em mídias sociais como Instagram, Facebook, YouTube, TikTok, Kwai e Spotify [43]. Carece na literatura, no entanto, uma caracterização desses trabalhadores que compreenda as nuances e as particularidades presentes em território nacional.
Quem são os trabalhadores brasileiros por trás da inteligência artificial?
Os trabalhadores brasileiros são em sua maioria jovens, com idade entre 18 e 35 anos (70,6%), mulheres (63,9%) e casados, vivem com parceiros ou possuem união estável (60,8%). Os três estados brasileiros com maior presença de trabalhadores foram São Paulo (28,8%), Rio de Janeiro (12,6%) e Minas Gerais (9,7%). As taxas de escolarização observadas foram maiores que as médias da população brasileira. Chama atenção que, enquanto cerca de 20% da população brasileira acima de 25 anos possui ao menos ensino superior completo [44], esse montante é de 49,5% na referida amostra, níveis estes correspondentes à média (47,4%) encontrada entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [45].
Tal como constatado nos estudos de Moreschi e de Grohmann e Araújo [46], parece ser comum a utilização de múltiplas plataformas, inclusive concomitantemente. Parte significativa dos trabalhadores da Microworkers (n=342/477) declarou já ter trabalhado em outras plataformas. Dentre as mais utilizadas, destacam-se Clickworker (48,6%), Appen (37,5%) OneForma (28,1%), Picoworkers (24,5%), UHRS (14,9%) e Telus (13,1%). Além disso, mais de 50% dos trabalhadores relataram já ter realizado atividades relacionadas a vendas on-line, jogos de azar ou apostas esportivas on-line, o que confirma que o trabalho de anotação de dados para IA está inserido em um ecossistema amplo, direcionado à obtenção de renda extra na internet. Diante do aumento da precarização do trabalho, em um país no qual cerca de 40% da força de trabalho (38 milhões de pessoas) está na informalidade [47], o trabalho plataformizado parece ter emergido como mais uma alternativa de renda, sobretudo para jovens, substancialmente qualificados, porém que não encontram no mercado formal de empregos condições suficientes para se sustentarem.
Necessidade de dinheiro, flexibilidade de horários e preferência por trabalhar em casa são as principais motivações que levam os trabalhadores a realizarem microtarefas. Em consonância com o estudo de Berg et al. [48], 33,5% dos participantes têm como única fonte de renda as plataformas, porém os rendimentos constatados foram expressivamente inferiores. Em média, os brasileiros recebem 1,80 dólar por hora (valor análogo aos pagamentos feitos aos quenianos subcontratados pela OpenAI), o que corresponde a menos de dez reais por hora. Trata-se de trabalhadores que dedicam cerca de quinze horas e trinta minutos semanais à realização de microtarefas, para receberem, em contrapartida, em média 582,71 reais mensais.
Contando com todas as suas fontes de renda (incluindo a rotulagem de dados), 1.866 reais é o rendimento médio mensal dos trabalhadores, o equivalente a menos de 1,5 salário mínimo em 2024.
Ao nos aprofundarmos nos dados coletados, as características da informalização do trabalho nessa população ficam ainda mais evidentes. Por exemplo, 66% dos trabalhadores contam com uma quantidade mínima de dinheiro a ser obtida nas plataformas para o pagamento de suas contas. Mais ainda, 49,8% tiveram pelo menos dois trabalhos informais e 68,9% ao menos três empregos formais ao longo da vida. Entre os participantes que estavam contratados formalmente em alguma outra organização (para além das plataformas), 40,5% trabalhavam em tempo parcial, enquanto na média global esse percentual é de 33% [49]. Dentre eles, 72% atuavam em ocupações que exigiam alta qualificação. Esse valor se distingue das taxas de 65% nos países da América Latina e Caribe, 61% na região da Ásia-Pacífico, 59% na Europa e Ásia Central e menos de 20% na América do Norte [50].
Contrasta com a literatura [51] o fato de que a maior parte dos participantes (63,9%) são mulheres, o que parece ser uma particularidade do Brasil em relação a outros países, onde comumente a maioria dos trabalhadores são homens. Contudo, em consonância com os estudos feitos pela Organização Internacional do Trabalho [52], em âmbito global os rendimentos das mulheres são ligeiramente superiores aos dos homens, em parte porque elas entram nas plataformas com mais frequência e realizam microtarefas em horários mais bem remunerados. A título de elucidação, no Brasil, 67,9% das mulheres e 55,8% dos homens fazem login pelo menos uma vez por dia para procurar novas tarefas remuneradas nas plataformas. Enquanto a maior proporção de homens (43,6%) trabalha nessas plataformas fora do horário comercial (das 18h às 22h), 54,8% das mulheres trabalham habitualmente entre as 14h e as 18h. Nossos resultados confirmam os principais achados do estudo de Tubaro et al. [53], o qual sugere que as mulheres tendem a entrar nas plataformas por períodos mais curtos e com maior frequência do que os homens. Isso indica que o tempo livre dessas mulheres parece ser cada vez mais direcionado para a realização de microtarefas.
Ainda no âmbito das assimetrias de gênero em território nacional, entre os participantes desempregados, 73,7% são mulheres. Além disso, 38,7% das mulheres dependem exclusivamente de plataformas para obter rendimentos, em comparação com 24,1% dos homens. Enquanto 55,2% dos homens são assalariados, somente 41,3% das mulheres possuem empregos formais. No que diz respeito ao tempo dedicado a tarefas domésticas (como fazer compras, limpar, cuidar dos filhos, cozinhar etc.), as mulheres e os homens relatam gastar em média, respectivamente, 13 horas e 48 minutos e 8 horas e 37 minutos por semana, o que corresponde a uma diferença de 37,5%.
Além disso, 62,6% das mulheres são mães ou tutoras legais de um ou mais filhos, em comparação com 45,3% dos homens. Em termos de apoio financeiro, 62,3% das mulheres e 39,5% dos homens dependem dos seus parceiros para sustentar suas famílias. Por fim, 53,5% dos homens são os principais provedores de seus lares, enquanto para as mulheres esse percentual cai praticamente para a metade (26,9%). Em resumo, constatamos que as plataformas não oferecem uma alternativa sólida e estável de rentabilidade aos trabalhadores. Em especial, encerram-se as mulheres em um círculo insidioso, pois o trabalho de rotulagem de dados se soma a outros trabalhos invisíveis feitos dentro de suas casas, ao mesmo tempo que não garante a elas autonomia financeira.
Observamos também que o trabalho de rotulagem de dados se opera mediante uma estratégia de dispersão por parte das plataformas [54], que não permitem aos trabalhadores entrar em contato uns com os outros. Com efeito, 69,6% dos trabalhadores brasileiros não conhecem mais ninguém que trabalhe nas plataformas. Apenas 22,2% da amostra relatou participar em fóruns ou comunidades de discussão on-line sobre o microtrabalho. Entre elas, as plataformas mais populares são WhatsApp e Telegram (53,2% e 15,3%, respectivamente). Dentre esses trabalhadores, 45,4% alegam que fazem parte desses grupos para conversar com outras pessoas que trabalham on-line. Compartilhar informações sobre tarefas criticadas por outros trabalhadores, queixar-se das plataformas e se atualizar sobre tarefas disponíveis são outras motivações para participar de tais espaços.
É revelador, nesse cenário, que as principais queixas dos trabalhadores abrangem a instabilidade financeira, a falta de transparência algorítmica e, em especial, o cansaço e a falta de interação entre eles [55]. Eles mencionaram, ademais, que as “piores tarefas” seriam aquelas relacionadas à moderação de conteúdos violentos e pornográficos nas mídias sociais. Há também aquelas caracterizadas como “estranhas”, que também entrariam nesse rol. Helena, 54 anos, por exemplo, nos relatou que trabalhara em um projeto voltado à geração de dados de “robôs aspiradores de pó”, de modo a treinar uma IA que fosse capaz de identificar fezes de cachorros e evitar que o aparelho passasse por cima delas. As microtarefas consistiam em tirar “fotos de cocôs” de tais animais em variados ambientes domésticos. Alguns centavos de dólares eram pagos para cada foto enviada. A trabalhadora nos relatou que passara dois dias movendo as fezes de seu cachorro e chegou a tirar mais de 250 fotos em diferentes locais de sua residência.
Quando se trata de moderar conteúdos violentos e pornográficos nas redes sociais, os trabalhadores manifestaram preocupações com o custo psicológico de tais atividades e com a falta de apoio que recebem das plataformas. Revolta, incômodo, impotência e tristeza foram alguns dos sentimentos relatados pelos trabalhadores nessas tarefas [56], conforme ilustrado nos relatos de Lucas e Pedro:
Eu trabalhava em um projeto do Facebook, tinha que verificar o anúncio, pra avaliar se tinha sangue, violência, abuso, se continha arma. Muitas vezes, peguei anúncio pesado. […] Você precisa ter um psicológico forte pra trabalhar nisso. Você tinha que fazer tudo dentro de uma hora. Eles só te pagam o valor referente à hora. Eles falam que se você for ver e não conseguir terminar nem começa. Precisava de ter um apoio psicológico, um amparo. Uma mulher que conheci teve que fazer tratamento. É preciso tentar minimizar o impacto dos trabalhadores que ficam assistindo a mortes, pra tirar a imagem da cabeça da pessoa, porque ninguém consegue acostumar com isso. (Lucas, 23 anos.)
Não dá para se sentir bem com isso, né? A gente sente nojo do ser humano, infelizmente! Pensar que esse tipo de ação vem de uma espécie como a sua; é horrível você ver como o ser humano é capaz de fazer esse tipo de coisa. (Pedro, 54 anos.)
Embora essas tarefas suscitem angústia e sentimentos ansiogênicos aos trabalhadores, as plataformas parecem se eximir dos riscos psicossociais concernentes a tais atividades. Conforme destacado em estudo anterior [57] , no acordo de confidencialidade da OneForma, por exemplo, precisamente no item 5, nomeado “Isenção de conteúdo adulto” (adult contents waiver), consta o seguinte: “O contratado está ciente da possível existência de conteúdos adultos em materiais transmitidos como parte dos trabalhos nos projetos através do website e, consequentemente, aceita a mencionada possibilidade, renunciando a todas as reclamações decorrentes desse fato” [58] (tradução nossa). Igualmente, no acordo de participação da Amazon Mechanical Turk, precisamente no item 2, a plataforma é enfática ao destacar que “não somos responsáveis pelas ações de nenhum Requisitante ou Trabalhador […]. Seu uso do site ocorre por sua conta e risco” [59].
Roberts [60] chama atenção para o fato de que não há estudos longitudinais suficientes na literatura acerca dos efeitos do trabalho de moderação de conteúdos na saúde mental dos trabalhadores. Nosso estudo não oferece dados conclusivos a esse respeito, contudo constatamos uma falta de amparo psicológico e espaços de apoio para que esses trabalhadores expressem seus sofrimentos. Na prática, as estratégias encontradas para preservação de saúde são notadamente individualizadas [61].
Os processos de gerenciamento e controle algorítmico sobre o trabalho tampouco são claros. Os trabalhadores se queixam sobre a nebulosidade das políticas de desligamentos (e bloqueio) e dos critérios de admissão em projetos, assim como de aprovação e rejeição das tarefas nas plataformas. Cláudia, 38 anos, por exemplo, que dedicava horas do seu dia à rotulagem de dados, nos contou sobre sua experiência ao ser desligada repentinamente de um projeto em uma plataforma:
Depois que eu fui demitida [da plataforma], tive uma crise bem horrível, aí tive que procurar o psiquiatra e ele me medicou. […] É revoltante, dói bastante, de repente você fica sem o seu trabalho e em meio a uma pandemia. Eu mandei vários e-mails quando fui demitida, mas não recebi nenhuma resposta. […] Teve uma época que estava sem task para fazer, a não ser que você acordasse três ou quatro horas da manhã para fazer. Tenho uma conhecida que fez isso e ela ficou muito doente. Mas, assim mesmo, tem muita gente que faz, agora vai entrar abril e maio, quem acordar às três é que vai conseguir trabalhar. (Cláudia, 38 anos.)
Nessa direção, as ofertas de tarefas nas plataformas são imprevisíveis e frequentemente não são claras as formas como são distribuídas. Como a maior parte das empresas estão sediadas no Norte Global [62], os trabalhadores queixam-se de que a reposição de tarefas costuma ocorrer de acordo com os fusos horários dos clientes-sede, o que coloca os brasileiros em desvantagem na realização de tarefas em projetos globais. Uma das alternativas para contornar essa desvantagem é passar a trabalhar no período da madrugada nos momentos em que ocorre a reposição. Isso explica, provavelmente, porque 27,9% dos participantes trabalham nas plataformas entre 22 horas e uma hora da manhã, e 9,4% entre uma hora e cinco horas da manhã.
A partir da sociodemografia traçada, nossos dados permitem afirmar categoricamente que tais plataformas não oferecem uma alternativa sustentável e segura de renda para esses trabalhadores. Em resumo, trata-se de pessoas jovens com rendimento médio mensal inferior a 1,5 salário mínimo e um histórico pregresso de trabalho na informalidade. Com níveis de escolaridade superiores aos da população geral, passam a conhecer esse mercado em mídias sociais como Instagram, YouTube, TikTok etc., ou mediante buscas de renda on-line no Google. As plataformas difundem o trabalho de rotulagem e treinamento de dados com base em um discurso que promete autonomia, flexibilidade e liberdade. Na realidade, contudo, a distribuição das tarefas, critérios de admissão, de aprovação e rejeição são assimétricas e nebulosas. No Brasil, os níveis de remuneração são correlatos àqueles recebidos por trabalhadores em países da África e da Ásia Pacífico, o que indica a manutenção de um padrão histórico de exploração de países do Norte Global sobre países do Sul Global. Chama atenção, ainda, a aguda desigualdade relacionada ao marcador de gênero em território nacional. O microtrabalho parece constituir mais um trabalho invisível que se soma à jornada de mulheres brasileiras, sobretudo aquelas que são mães.
Considerações finais
A IA gera tanto entusiasmo quanto desilusão, com promessas que muitas vezes não são cumpridas. Por isso, não é de surpreender que o trabalho humano, que constitui seu componente fundamental, também esteja sujeito a essas mesmas decepções. Na prática, para os trabalhadores, as promessas de desenvolvimento econômico e social, engendradas na origem da proposição do conceito de microtrabalho, não se materializaram. Não só as remunerações são baixas e assimétricas, mas, acima de tudo, as condições de trabalho são duras e penosas. A disponibilidade substancialmente variável de tarefas faz com que os trabalhadores migrem a todo tempo de uma plataforma para outra, o que resulta em mais tempo de trabalho não remunerado (dispendido na busca por novas tarefas e projetos e na realização de provas de admissão). Diferenças de fuso horário com os clientes estrangeiros, majoritariamente localizados no Norte Global, forçam parte significativa dos trabalhadores a ficarem na frente de seus computadores durante a noite ou na madrugada. Trabalham em suas casas, sem encontrar clientes ou colegas. Ficam dispersos e desorganizados (com exceção de uma minoria de trabalhadores que interagem em grupos on-line), as plataformas os isolam e se desresponsabilizam por quaisquer danos físicos ou psicológicos provenientes de suas atividades. Como vimos, sobretudo quando se trata de moderação de conteúdos violentos e pornográficos, a situação se agrava ainda mais. Todavia, é notadamente porque outras pessoas não aceitam trabalhar nessas condições que as microtarefas são deixadas para grupos relativamente desfavorecidos: mães, desempregados, trabalhadores jovens com contratos precáriosou que trabalham nas franjas da informalidade. Carentes de proteções sociais e trabalhistas sólidas, encontram nas plataformas uma oportunidade residual de renda. Ao mesmo tempo que fazem um trabalho central à cadeia produtiva da IA, esses trabalhadores são colocados na invisibilidade pelas plataformas.
Embora o prefixo micro tenha sido comumente utilizado para se referir a esse trabalho, constatamos que importantes habilidades linguísticas, culturais e de informática são mobilizadas para a realização das tarefas. É preciso saber como pesquisar, classificar e avaliar as informações on-line; comunicar-se em inglês ou, pelo menos, saber utilizar os plug-ins de tradução automática; comparar tarefas e plataformas para selecionar as mais rentáveis; escolher um método de pagamento calculando os encargos bancários e as mudanças das taxas de câmbio etc. Há também um processo de aprendizado gradual, desenvolvido ao longo do tempo, que não só faz com que os trabalhadores trabalhem mais rápido, como lhes garante acesso a uma ampla gama de tarefas direcionadas para aqueles mais qualificados. Mas essas competências e habilidades não são reconhecidas. Ao contrário, o termo microtrabalho parece ter adquirido outra acepção, na qual se enfatiza a natureza mínima das tarefas, que supostamente seriam simples e curtas, de modo que não exigiriam qualificações. Aparentemente inexistente, a experiência adquirida com o microtrabalho nas plataformas não é, portanto, transferível de uma plataforma para outra e tampouco pode ser incluída em um currículo. Logo, não é de se surpreender que essa atividade pouco conhecida e desvalorizada não garanta, até o momento, acesso a melhores condições de trabalho.
Estamos diante de um trabalho que cumpre papel essencial no desenvolvimento da IA, ao mesmo tempo que a inteligência humana empregada nesse processo é desvalorizada. Nesse cenário, amplia-se a disparidade entre grupos sociais mais favorecidos (como engenheiros e profissionais de tecnologia de alto valor agregado que desenvolvem a IA e que esperam colher dela benefícios) e o proletariado da economia de plataforma, cujo tempo e habilidades são colocados a serviço da IA, sem que seu papel e contribuição sejam reconhecidos. Em escala global, há também uma assimetria cada vez maior entre os países produtores da IA, majoritariamente localizados em países do Norte Global (bem como em alguns países em desenvolvimento, como China e Índia), de onde vem a maior parte da demanda por microtrabalho, e os países do Sul Global, onde a oferta tem aumentado exponencialmente.
Ao mapear a sociodemografia e as condições concretas da força de trabalho por trás da IA no Brasil, endossamos um movimento mais amplo, de superação do atual estado de invisibilização. Abrimos caminhos para pesquisas futuras que objetivem caracterizar com ainda mais profundidade essa nova forma de trabalho, analisando suas mudanças, inerentes à dinâmica da globalização e, idealmente, identificando alavancas para ação e transformação.
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