O poder do GPS na “guerra ao coronavírus”

Criado em 1994 para fins militares, o Sistema de Posicionamento Global popularizou-se nos anos 2000 com smartphones. Agora, nova fase em marcha: o uso de big data de geolocalização para monitorar cidades — mesmo de formas ilegais

Imagem: Antônio Heleno Caldas Laranjeira
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Quem são os donos do GPS? Para respondermos a essa complexa questão, de modo global, não pretendemos neste texto realizar uma constatação, mas algumas comparações das relações de poder estabelecidas pelo neoliberalismo em tempos de crise sanitária a partir da disseminação global da covid-19 e as discussões necessárias sobre justiça, comunicação, vigilância e saúde.

Em pleno curso da primeira pandemia do século XXI, este artigo indica uma “revirada do paradigma” dos usos e regulações da esfera pública do GPS. Após a “virada do paradigma do GPS”, em 2004, que gerou o acesso público mundializado desta frequência de comunicação com protagonismo militar dos EUA, passamos por uma “reviravolta” provocada pelo coronavírus.

Este é um contexto histórico que exige novas reflexões para tomadas de decisões mais justas e potentes possíveis. Desde 1994, com a criação do GPS militar para a Guerra do Golfo até o início da popularização dos usos de smartphones com frequência de GPS civil, a partir de 2007, o mundo não vivenciou uma epidemia de escala global.

O caso da covid-19 envolve os big datas de geolocalização de militares e de empresas de tecnologia em uma mesma causa: mapear os casos de isolamento ou concentração social, quarteirão a quarteirão das cidades, e posteriormente agir de modo a persuadir ou dissuadir as pessoas. Mas quais são os meios utilizados para esses fins? Todos eles são legais? São questões que detalharemos até o final deste artigo.

Instituições globais e comandos locais do GPS

Em países globalizados centrais, destacam-se as ações políticas de instituições públicas que adotaram medidas para conter a pandemia a partir da regulação via GPS. Um exemplo é Israel, no Oriente Médio, que proibiu a abertura de comércios em todo o território nacional e passou a monitorar os sinais de GPS de todos os cidadãos.

O jornal The Times of Israel destaca que “as restrições [lockdowns] proibiriam que israelenses deixassem suas cidades, embora liberaria o comércio essencial dentro dos limites de cada município”. De acordo com reportagem do The New York Times, “as informações, destinadas ao uso no contraterrorismo, ajudariam a identificar pessoas que se cruzaram com pacientes conhecidos”.

Em Israel, o big data do GPS tem como centro de controle a agência de segurança nacional “Shin Bet” – uma abreviação hebraica de duas letras de “Serviço de Segurança” – com sede em Tel Aviv, a segunda maior metrópole do país. O comando, que está entre as três maiores esferas militares israelenses, é alvo de denúncias, como a violação dos direitos de privacidade e o autoritarismo que prevê prisão para quem descumprir o lockdown nacional conforme dados secretos de GPS.

Para a América Latina, uma periferia do mundo globalizado, a atuação de instituições privadas estrangeiras são um destaque a parte do Estado. Assumindo a dianteira de uma das ações de maior destaque midiático para medir o isolamento social via GPS, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com sede na capital Washington, nos EUA, criou uma plataforma com base em dados de GPS fornecidos pela empresa Waze, para monitorar o movimento nas cidades e ajudar nas políticas de controle da pandemia.

Criado em 2008, o produto Waze foi adquirido pela Google Inc seis anos após seu lançamento em Israel. O aplicativo para smartphones difere do software navegador GPS mais tradicional – o Google Maps – por ter como base do aplicativo uma comunidade de “colaboradores em movimento” que fornece dados complementares ao mapa, neste caso o tráfego de veículos dos usuários. Os dados do painel sobre congestionamento de tráfego são obtidos pela parceria a partir da colaboração em massa (crowdsourcing) de usuários do aplicativo de navegação para smartphone.

De acordo com informações do site oficial do BID, “como parte dessa colaboração, o BID recebe dados geocodificados agregados em tempo real sobre condições de tráfego e alertas relatados por usuários de toda a América Latina e Caribe a cada dois minutos”.

Ainda no contexto latino-americano, o Brasil assume a frente no quesito análise de dados de GPS. Fundada em 2014, na cidade de Recife, a In Loco é uma scale up – muito além de uma startup – proprietária de uma tecnologia de localização indoor inovadora no mercado mundial de GPS.

A missão, considerada “inegociável” pela empresa, é com a privacidade dos dados do cidadão. Por meio de coleta e inteligência de dados de localização, a tecnologia considerada um “super GPS” – que cruza os sinais de sensores de giroscópio, magnetômetro e o acelerômetro embutidos em todos dispositivos smart – é capaz de mapear a jornada do consumidor pela cidade e usa smartphones para enviar mensagens contextualizadas para influenciar visitas à loja física e prover inteligência a donos de aplicativos e apontar, com mais de 50% de taxas de acerto, para onde um aparelho irá se mover nos próximos cinco minutos.

De acordo com o CEO, André Ferraz, a visão da empresa é “ser a plataforma de tecnologia da era da computação ubíqua” concorrendo diretamente com Google, Apple e Facebook. A missão vem sendo cumprida há seis anos, sem concorrentes em nenhum lugar do mundo. Com a pandemia, o data base da In Loco – a versão simplificada do big data que atinge a marca de 16 terabytes coletados por dia a partir de mais de 600 aplicativos parceiros – vem sendo utilizado por prefeituras de cidades em diferentes regiões do Brasil.

Essa parceria público-privada tem como meta gerar alertas pelo isolamento com mais de 50 milhões de aparelhos smartphones, acendeu um debate relativamente novo sobre a privacidade dos geodados, a demanda urgente de dados por parte de governos e os desafios em fornecer aportes financeiros milionários para empresas scale up com base em uma política de inovação tecnológica nacional.

O ideal do GPS e as políticas da Comunicação

Para responder de modo eficaz e ético nesta situação causada pelo coronavírus, pesquisas científicas multidisciplinares insurgem em todo o mundo, marcadamente utilizando geotecnologias com base nas teorias sociais críticas, que tem como conceitos-chave termos como “globalização”, “liberdade”, “justiça” e “poder”; ao menos estes quatro formam a base dessa reflexão que desejamos conduzir sobre o Sistema de Posicionamento Global.

O pensamento de Milton Santos nos serve de aporte para delimitarmos “o que é” a globalização que vivemos e como ela redefine conceitos como justiça e poder a partir de um ideal de liberdade.

Para Milton Santos, o conceito de “espaço geográfico”, o meio que produzimos e vivemos, é considerado uma instância da existência humana que pode ser esquematizado cientificamente entre dois “vetores” e duas “dimensões” que se mantém ao longo da História em relações socioespaciais nem sempre solidárias, nem sempre contraditórias, porém sempre indissociáveis.

A produção da vida social está sustentada por dois “vetores”: a “razão” e da “emoção” humana. Ambos vetores se originam das relações técnicas, científicas e informacionais ao longo das épocas, do gesto à palavra, da memória aos ritmos. Portanto, estas relações socioespaciais se originam, materialmente, de uma “dupla dimensão”: a “tecnosfera” e a “psicosfera”.

Para o campo da Filosofia, estas duas dimensões do espaço são “indissociáveis, contraditórias e solidárias”. De modo resumido podemos dizer que tecnosfera são os “fixos” ou “objetos técnicos” enquanto a psicosfera é uma denominação para os “fluxos” ou “ações técnicas”.

Por exemplo, ainda que consideremos drones, smartphones e automóveis como dispositivos móveis, eles estão fixos sem a vida do humano que os domina, decidindo e autorizando a se mover pelo espaço; o ato de pilotar um voo de drone ou de dirigir um carro orientado por um aplicativo de navegação por GPS é portanto uma ação da psicosfera, ou seja, do âmbito dos domínios, decisões e autorizações sociotécnicas.

Para o campo da Política, o atual jogo entre a horizontalidade da justiça e a verticalidade do poder das instituições no combate ao coronavírus, estabelecem que quanto mais há justiça horizontal menos há poder vertical, e vice-versa.

Por exemplo, no campo da Saúde, que vem sendo verticalizado pelo capitalismo com as privatizações, a pandemia restabelece uma necessidade urgente de direitos horizontais à vida; esses direitos são possíveis graças ao poder vertical de instituições públicas e privadas para uma regulação de todos os âmbitos do cotidiano social, como a economia, a política, a cultura e a tecnologia.

Os fenômenos de “horizontalização da informação” e “verticalização do lucro” pela globalização, por exemplo, são transformáveis ou aceitáveis, conforme a hierarquia dos fixos e fluxos em cada território do mundo.

Privacidade, liberdade e sobrevivência em jogo

Esta reflexão dialética, inconclusa e urgente (como a própria pandemia), anseia despertar mais pessoas para o debate em torno da privacidade e da liberdade. Aqui focamos, em linhas gerais, nos direitos do consumidor do GPS no contexto de uma democracia de mercado, mas também nos deveres universais do cidadão, ou seja, o produtor dos dados de GPS.

Por esse método de análise das geotecnologias, acreditamos que deixaremos de tratar o “GPS” como um “tema espetacular” para passarmos ao nível de tornar este um “tema banal” em nosso cotidiano de reflexões e ações.

Em um cenário de isolamento social global provocado por uma urgência de Saúde, existe uma disputa a ser equacionada: entre o direito mundial de uso do GPS com privacidade e o dever de exercer a liberdade individual de mobilidade sem limitar a vida coletiva no seu sentido existencial. O resultado, como sempre, depende das visões de mundo.

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