Entre a Ciência e a cultura mundana

Sujeito contemporâneo é marcado por fraturas: criação anárquica e contradição entre desejos, valores e ações. Bem diferente do moderno que visava reelaborar a totalidade, mesmo frente às turbulências e fluxos da matéria

Imagem: Robert Daniels
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Às quartas-feiras, Outras Palavra publica uma série de artigos de Ricardo Neder, intitulada A Gambiarra e o Panóptico (fruto de livro homônimo, publicado pelo Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina, da UnB, e editora Lutas Anticapital) que, por meio dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia, visa compreender a sociedade de controle e vigilância – e se é possível superá-la e reconstruir o Socialismo e as Democracias. Leia a apresentação da série. Aqui, todos os textos já publicados. O título original do texto abaixo é: Deslocamento

Já no século XIX fragmentam as certezas de um sujeito positivista (cuja anima mundi gozava de prestígio, algo revolucionário à época de Marx). Para chegar a estas certezas, o positivismo foi inculcado a ferro e fogo, promoveu guerras, aniquilou populações revoltosas; arrasados, povos indígenas e africanos são submetidos à degradação extrema na América Latina e noutras paragens (o dístico chileno Por la razon o la fuerza não pode esconder seu caráter de autoritarismo e despotismo). Fez da vida esferas independentes formadas pela mentalidade científica e valores sociais expulsos como extracientíficos? Ao contrário, todos os valores extracientíficos que saíram pela porta dos fundos, sob este subterfúgio, foram reinseridos como microrganismos nos poros da sociedade, numa tentativa de contaminação total. Cai por terra a divisão que presidia o horário de trabalho do cientista no laboratório, sala de aula ou museu. Em seguida vinha o tempo do não-saber, no qual ele pendurava o casaco branco, o guarda-pó e ia para o mundo da vida que, em muitos casos, é um mundo noturno, como fazia em outras épocas o cientista-compositor Paulo Vanzolini (cujo lema, certamente, devia ser o da simultaneidade e não da sincronia entre os dois tempos de saber/não-saber: “há um tempo em que se ensina o que se sabe, e depois vem outra idade em que se ensina o que não se sabe”, segundo R. Barthes, algo como temporalidades paralelas – esquizotemporalidades).

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A brecha foi aberta pela física da termodinâmica (mais tarde fundamental para a tecnologia da energia elétrica e das telecomunicações). Possibilitou a elaboração mimética da tecnologia da eletricidade e dos gases, a teoria do eletromagnetismo na termodinâmica. Para isso não precisou descartar o olhar mecanicista da matéria. Incorporou-o. A imagética de um submundo de fluxos de gases e eletricidade foi incorporada ao racionalismo, empirismo e à mecânica clássica (Bacon, Newton, Descartes). Na segunda metade do século XIX popularizou-se a química nascente de Lavoisier.

O nascimento da grande indústria (à qual o futuro pertenceria, segundo Marx) está associada à quantificação das turbulências e supridora do sangue para a nova geração de armamentos (a partir de 1880), base das armas de destruição em massa nas I e II Guerras Mundiais. Assim, podemos dizer que o sujeito moderno está fraturado ante os fundamentos da ciência e da tecnologia iluminados pelas novas teorias do eletromagnetismo e dos gases (meados do século XIX). É o mesmo que pela prática dos físicos, colocar a consciência diante da entropia e do caos como concepção particular do estado da matéria a que estamos sujeitos.

A perda de calor e energia tende à dissipação. A dissipação da ordem leva um dia os corpos à morte térmica. Na formulação sintética de Leite Lopes, os fenômenos ocorrem sempre com o aumento da entropia que determina uma flecha para o tempo – é o seu fim. Na esfera da cultura e da sociedade é inevitável a associação entre decadência, revolução e entropia. Aceitar as concepções de entropia ou de decadência e ruína levou a representação da matéria a uma bifurcação. Um campo passou a ser associado à ordem, e outro, mais indiferenciado, ao caos. O modelo termodinâmico e eletromagnético da matéria conduziu a uma imagética das turbulências e ondas, fluxos e campos de força. Imagética que para ser vivida no registro da ordem exigiu a transformação desses campos seja em utilidade (fusão nuclear desde a bomba à usina elétrica), seja em algo sem um prático (o enorme calor provocado pela urbanização gera imensas inversões térmicas).

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Retornemos ao sujeito-cientista diante da enorme instabilidade entre ordem e caos (estou diante de algo que pode dissolver o meu mundo?). Trata-se de um sujeito moderno que precisa reelaborar o signo de totalidade da machina mundi, herdado do Renascimento. Hoje aceitamos que a crise do pensamento identitário na filosofia é também a crise do sujeito moderno. Nesta crise a representação do outro era a de alguém dotado de uma essência e pensamento identitários (digamos, um outro similar, em princípio, neutro). Sob o registro da física em transição para a termodinâmica, a representação das turbulências, dos fluxos é também uma mimese da consciência da matéria (como ter consciência de um dos estados da matéria, digamos, o plasma, sem imaginarmos uma consciência plasmótica?).

A metamorfose entre caos e ordem é inerente à nova física. Primeiramente, essa mutação e a instabilidade são entendidas como algo que vem perturbar a ordem identitária, ameaçando desintegrá-la. Em outras palavras, o caos é portador de destruição. Neste sentido, persiste ao longo da transição epistemológica e ontológicaa imagem do sujeito moderno dotado de uma suposta essência identitária (ou pensamento identitário) contra a qual as psicanálises irão propor outra representação de sujeito.

A transição epistemológica do sujeito contemporâneo parece caminhar para uma expressão anarquista (edulcorada como inter-multi-transdisciplinaridade). Contra esta versão edulcorada na academia, trata-se de colocar em prática o essencial – que é lançar mão da intuição, lógica e propaganda, tal como fazem os cientistas convencionais (Feyerabend) para colocar em prática a dimensão anárquica da criação científica. Longe de ser uma questão acadêmica, ela nos ajuda a chegar ao sujeito contemporâneo; este que está sob os deslocamentos entre (a) uma ação orientada pela linguagem e cultura científicas para (b) mundo da vida orientado pelo conhecimento e cultura mundana na qual seriam afastados os elementos agressivos e impositivo-religioso da ciência. Na sua origem a separação entre (a) e (b) decorre pelo menos de quatro tipos de brecha (esse movimento doloroso de aceitar a instabilidade entre ordem e caos como fonte dos valores pessoais): valores pessoais e sociais de todo tipo são inteligíveis apenas no interior da formação de crenças e desejos que desempenham um papel causal na formação do futuro [então] devemos aceitar também que esse papel sofre restrições poderosas que não estão elas mesmas sujeitas à modificação simplesmente à luz de nossos desejos e crenças presentes (LACEY). Haveria pelo menos quatro situações limites, que propiciam fraturas ou brechas por onde transitaria o sujeito contemporâneo na ciência, na razão e na política, diante do conhecimento e da cultura mundana:

a) Desejos em contradição com ações: as ações não conduzem o sujeito ao que pretende; seus desejos não são realizados por meio das ações que eles engendram. Trata-se da brecha entre intenção e ação efetiva, entre desejo e efeitos da ação. Ou seja, a manifestação de valores pelo sujeito é diversa da articulação desses valores nas instituições.

b) A realidade na contradição do sentimento e ação:entre o que o sujeito sente ou experimenta como realidade, e o que sente ao experimentar ou observar sofrimentos de várias espécies. Esta brecha leva o sujeito a sentir que há sofrimentos que podem ser mitigados, e há os que não precisam existir (tanto sofrimento pela exploração do trabalho) e também o inverso. Por excesso de tecnologia poupadora de trabalho reforça-se a proeminência do sofrimento dos sem-trabalho. Mas há experiências de sofrimento devido a subordinação/exploração do trabalho que proporciona ímpeto para escalonar, em alguma espécie de ordem moral, as possibilidades de serem abolidas no futuro: o trabalho degradado (Braverman) é também trabalho negado.

c) Os valores contraditórios entre instituições: o terceiro tipo de brecha se dá quando o sujeito está em uma variedade de instituições cada uma incorporando uma diferente coleção de valores alguns se complementam, (outros) se contradizem, instalando tendências conflitantes no sujeito.

d) A contradição entre valores articulados e valores manifestos: nas três situações anteriores existe uma brecha comum subjacente: embora as instituições existam em função dos valores que incorporam e sustentam, de forma a que se autopreservem, elas são frequentemente forçadas a perseguir valores extrínsecos. Trata-se de uma brecha entre aspiração e manifestação de valores institucionais (Lacey).

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