Enterros espaciais e a fútil busca da imortalidade

Na cauda dos voos comerciais ao espaço, surge um peculiar serviço funerário: alçar moléculas dos mortos a corpos celestes. Diante de catástrofes, a Terra tornou-se démodé; o cosmo oferece um transcendental “descanse em paz” para quem pode pagar

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Por Dolly Church, no The Baffler | Tradução: Rôney Rodrigues

A morte da minha avó não foi engraçada até que eu pensei em mandá-la para o espaço. Sentado na funerária com decoração floral, fui presenteado com três opções de enterro espacial, cortesia da empresa Celestis: colocá-la em órbita; enviá-la para a lua; ou comprar o Pacote Voyager de luxo, que a enviaria em uma “jornada celestial permanente, muito além da lua”. Como uma das pessoas mais terrestres que já conheci – ela não apenas relutância em voar, mas também tinha uma aversão geral em levantar de seu assento – me resforcei para imaginar minha avó acima do éter ou para me conectar emocionalmente com uma despedida tão remota. Enquanto eu imagino o espaço como um esquecimento isolador, não muito diferente da própria morte, a Celestis definiu seus enterros como uma chance de imortalidade, realizada entre as estrelas.

A Celestis se empenhou muito em seu projeto de enterros espaciais. Responsável pelo primeiro voo espacial in memorian em 1997, ela lançou os restos mortais do pioneiro do LSD, Timothy Leary, do criador de Star Trek, Gene Roddenberry, e do físico Gerard O’Neill no espaço. Seu modelo de negócios depende do alugar um espaço comercial em viagens interestelares já existentes, em vez de fretar seus próprios voos. A partir de 2.995 dólares, os clientes podem enviar um grama de seus restos mortais para o espaço, enquanto os entes queridos são convidados a assistir esta missão final de um “local preferido”. Escolhendo entre uma seleção de diferentes pacotes, esses parentes podem personalizar ainda mais sua experiência com lembranças ou eventos memoriais, por meio de “jantares de astronautas” em tours locais. Nos últimos vinte anos, vários concorrentes surgiram oferecendo serviços e métodos alternativos. Por exemplo, a empresa Aura Flights, sediada no Reino Unido, usa balões de hidrogênio para transportar cinzas para o espaço. No entanto, como Charles Chafer, co-fundador da Celestis, disse de forma concisa para mim, este continua sendo um campo pequeno e pouco competitivo porque “o espaço é difícil”.

Realizar um enterro espacial envolve casar duas indústrias – funerária e aeroespacial – que se tornaram cada vez mais liberalizadas no redemoinho do capitalismo de livre mercado. Agora que a maioria dos americanos prefere cremação em vez de enterros, eles se deparam com novas opções para preservar seus restos mortais: tornar-se um disco de vinil, ou um “diamante”, ou até mesmo ser selado no brinquedo sexual de seu parceiro. Os enterros espaciais se beneficiaram dessa mudança cultural, em conjunto com o surgimento das viagens espaciais privatizadas. Em um nível prático, a Celestis conseguiu expandir rapidamente suas operações contando com empresas como a SpaceX para aumentar a frequência de lançamentos. Na verdade, a empresa afirma ter crescido 60% ao ano nos últimos quatro anos. Como Elon Musk, Richard Branson e Jeff Bezos levaram seus amigos ricos ao espaço, eles também adotaram uma visão do futuro em que as viagens espaciais são acessíveis a todos. Empresas como Beyond Burials, Celestis e Elysium Space oferecem essa possibilidade, com apenas duas ressalvas: você precisa estar morto e você terá apenas uma parte “enterrada”, algo entre um dedo do pé e uma orelha.

A ascensão das viagens espaciais comerciais não apenas revolucionou os aspectos práticos do voo espacial; também moldou a maneira como vemos o próprio espaço. Historicamente, buracos negros, cometas velozes e explosões solares assombraram nossa imaginação cultural. A escuridão do espaço forneceu um veículo para nossas ansiedades tanatofóbicas – evocando o infinito, a solidão e o distanciamento da morte – enquanto os astronautas moribundos foram reificados na cultura pop como símbolos da corporalidade e fragilidade humanas. Assistindo a filmes como Gravidade ou 2001: Uma odisseia no espaço, vemos esses terrores concretizados enquanto nossos heróis flutuam, com cordões umbilicais cortados, em direção a uma morte silenciosa, mas violenta. Embora, de fato, apenas três pessoas tenham morrido no espaço – Georgy Dobrovolsky, Viktor Patsayev e Vladislav Volkov –, nossa ideia hiperbolizada de seu perigo fala de um desejo primordial de controle sobre o caos do universo e de uma necessidade de encontrar significado dentro de nossa pequenas vidas.

Mas, como explica o tecnólogo e designer Neilson Koerner-Safrata em seu projeto de pesquisa KOSMOS/NEKROS, a compreensão popular da morte no espaço mudou. Como ele escreve, “as cosmologias do passado sacralizam o espaço como o local onde ocorre o epílogo divino da vida. Hoje, o espaço está sendo enquadrado em nosso nome como uma moratória de SAÍDA ou NÃO SAÍDA, onde o que está em jogo para a vida deve ser decidido lá em cima ou aqui embaixo.” Em outras palavras, o espaço já pareceu ser o último lembrete da mortalidade e insignificância humana, mas agora parece representar o oposto – mais um espaço para a dominação humana. Koerner-Safrata identifica uma razão para a mudança como os “tecno-libertários e defensores do assentamento espacial [que] pregam em nome do espaço: ‘os humanos precisam de uma fronteira’, ‘o espaço é o destino humano’”. O espaço não é mais o terreno de mártires e divindades, mas sim de bilionários arrogantes que esperam prolongar a vida humana expandindo a paisagem da habitação humana. O alvorecer do turismo espacial e as imagens que ele evoca – navios de cruzeiro, cut-offs e caipirinhas – teve um efeito normalizador, tornando acessível até mesmo a atmosfera mais inóspita para os humanos.

Aproveitando essa mudança cultural, as empresas de enterro espacial também enquadram seus produtos como prolongadores da vida. O Dr. Andrew Cutting, professor da London Met University, descreveu essas empresas como “corretores de imoralidade” que prometem “libertação e realização póstumas” onde as tecnologias médicas falharam em manter os falecidos vivos. Optando por este tipo de enterro, evita-se o arquivamento dos seus entes queridos no passado (o cemitério) projetando-os para o exterior na derradeira metonímia para o futuro (o espaço sideral). Semelhante à criogenia ou clonagem, Cutting argumenta que “esses projetos procedem, sob os auspícios da plausibilidade científica, redefinindo a vida como padrões únicos de informação – código de DNA, estados sinápticos e assim por diante – e então tentando resgatar esses padrões do processo usual de decadência que ocorre na morte”. Os insights de Cutting acabaram se revelando prescientes, pois a Celestis recentemente se expandiu para “armazenamento e preservação de DNA fora do planeta”. Os clientes agora têm a oportunidade de enviar ao espaço um pó contendo todo o seu genoma. Essa poeira é semelhante a uma cláusula de rescisão existencial, protegendo os clientes contra a finalidade da morte. Apelando para uma fantasia ressurreicionista, fornece a ilusão de sobrevivência individual, independentemente dos perigos que a humanidade pode enfrentar em geral.

O futurismo implícito dos enterros espaciais vem não apenas da recém-percebida acessibilidade do espaço, mas também do rebaixamento da terra ao passado. Referindo-se a Gerard K. O’Neill, Charles Chafer entende as viagens espaciais não apenas como uma questão de curiosidade ou consumismo, mas como um requisito para a existência futura da humanidade. Continuando com a aspiração de colonização espacial, ele explicou que a Celestis é “impulsionada por um objetivo abrangente de abrir espaço para a atividade humana”. A morte no espaço é enquadrada como parte de um projeto mais amplo de possibilitar a vida. É claro que as viagens espaciais comerciais são amplamente contrárias à preservação imediata da vida humana, sendo uma fonte significativa de emissões de carbono e exacerbando a destruição da camada de ozônio. Mas para aqueles que erroneamente transformam todas as ameaças existenciais em apenas uma – seja guerra nuclear, mudança climática ou a eventual vaporização do sol – a viagem espacial apresenta um futuro alternativo onde a Terra não é um lar para sempre, mas um paliativo: a melhor opção para a habitação humana até que deixe de ser.

Agora vivemos uma época em que o próprio sentimento de “descansar em paz” está sendo desafiado. A mudança climática já teve um impacto profundo na indústria funerária nos Estados Unidos; lápides estão se desintegrando em incêndios florestais na Califórnia, e túmulos no Alasca estão se transformando em pântanos devido ao derretimento do permafrost. Na Louisiana, caixões flutuantes – dragados e lançados à deriva pelas enchentes – aparecem como espectros, prenunciando um futuro traiçoeiro. Os cemitérios agora enfrentam uma decisão difícil sobre como negociar essas ameaças; eles são vistos como sendo mais do que meros negócios, fornecendo um local de descanso final e indefinido para os entes queridos das pessoas, mas os requisitos financeiros e legais muitas vezes tornam a realocação implausível. A cremação oferece uma saída para esse pântano. Permite outro final para nossas vidas: menos vulnerável às preocupações terrestres, seja na forma de eventos climáticos extremos, superlotação ou nossa própria putrefação. Os enterros espaciais levam essa lógica ao extremo, permitindo-nos escapar dos limites da terra e deslocar o desejo póstumo de permanência da terra para o céu. Por que ser um aterro sanitário quando você pode ser poeira estelar (ou melhor, detritos espaciais em órbita)?

Quando os astronautas vão para o espaço, alguns experimentam uma mudança espiritual depois de ver o mundo à distância. Descrito como “O Efeito Visão Geral”, ver o globo em sua totalidade destaca a existência humana como bela, frágil e interconectada. O luto, de muitas maneiras, realiza a mesma coisa. Ver alguém morrer nos obriga a avaliar nossas vidas à distância e apreciar sua transitoriedade; aumenta a importância de nossos relacionamentos em relação às tensões mais insignificantes da vida. William Shatner, conhecido por muitos como o Capitão Kirk de Star Trek , experimentou a fusão dessas duas mudanças conceituais durante um voo da Blue Origin no ano passado. Descrevendo a experiência de estar no espaço, ele explicou: “Eu estava chorando. . . Eu não sabia por que estava chorando. Eu tive que sair de algum lugar e sentar e pensar, qual é o problema comigo? E percebi que estava sofrendo.” Shatner esclareceu que foi “a morte que [ele] viu no espaço”, ao passo que sentiu uma força vital “vindo do planeta – o azul, o bege e o branco”. Ele “chorou pela Terra porque [ele] percebeu que ela estava morrendo”.

O luto é a reação a um espaço vazio que intuitivamente tentamos preencher ou ignorar. No caso de minha avó, lutei para encarar sua ausência implacável de frente, mas me permiti sentir sua perda ao me entregar a nossos passatempos outrora compartilhados; origami, scrabble, sorvete para o jantar e irritar meu pai, para citar alguns. Atos de continuidade e lembrança diante do luto podem nos ajudar a processar nossas emoções, mas também podem levar ao negacionismo, permitindo-nos viver no reino do que foi sem enfrentar o que é. A dor ambiental assume uma forma semelhante. À medida que os parâmetros da existência humana são renegociados pelas mudanças climáticas, somos motivados a imaginar formas alternativas de ser que pareçam familiares e seguras. O espaço, supostamente vazio, torna-se uma paisagem conveniente sobre a qual os desejos de vida eterna podem ser projetados e os sentimentos de perda podem ser negados. Esse impulso de prolongar nossa existência no cosmos – seja vivo ou por meio de um enterro no espaço – fala das ansiedades de viver em um planeta moribundo. Procurar respostas acima, no entanto, pode ser mais análogo a enterrar a cabeça na areia; romantizar a imortalidade do espaço é ignorar sua ausência de vida também.

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