Como as deepfakes ainda podem melar as eleições

Ao alterar o Marco Civil da Internet, STF responsabilizou as big techs por crimes digitais. Mas uma batalha jurídica iniciada em seguida pelas corporações abre enorme brecha para manipulação eleitoral. Quais os riscos e como enfrentá-los

Arte: Chris Burnett/Brennan Center for Justice
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Em uma decisão histórica que redefine o ecossistema digital brasileiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, em 26 de junho de 2025, a inconstitucionalidade parcial do artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014).[i]

A publicação do acórdão, ocorrida somente em 5 de novembro último, mais de quatro meses após o julgamento, deu início a um novo capítulo de debates jurídicos, processuais, estratégicos e institucionais, materializado na apresentação de oito embargos de declaração por gigantes da tecnologia e entidades da sociedade civil.[ii]

Este ensaio analisa o teor do acórdão, os principais argumentos dos embargos e, crucialmente, explora como a incerteza jurídica resultante e a possível postergação da vigência plena das novas regras de responsabilização podem intensificar a disseminação de desinformação e fake news, representando um risco significativo para a integridade das eleições de 2026, em especial no que concerne às fronteiras (também eleitorais) da Internet.

Até a decisão do STF, o artigo 19 do Marco Civil da Internet funcionava como um porto seguro (safe harbour) para as plataformas digitais. A regra geral determinava que provedores de aplicações de internet só poderiam ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomassem as providências para tornar o conteúdo indisponível. A decisão do plenário, por um placar de 8 a 3, alterou fundamentalmente essa lógica, estabelecendo que a amplitude da proteção conferida pelo artigo era incompatível com a Constituição.

O art. 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) (…) é parcialmente inconstitucional. Há um estado de omissão parcial que decorre do fato de que a regra geral do art. 19 não confere proteção suficiente a bens jurídicos constitucionais de alta relevância (proteção de direitos fundamentais e da democracia). — Tese fixada pelo STF no Tema 987

A nova tese estabelece um regime de responsabilidade mais rigoroso e, também, mais transversal. As plataformas passam a ter um dever de cuidado proativo, sendo responsabilizadas em caso de “falha sistêmica” na remoção de conteúdos que configurem um rol taxativo de crimes graves, como atos antidemocráticos, terrorismo, incitação ao suicídio, discriminação, crimes contra mulheres, crimes sexuais contra vulneráveis e tráfico de pessoas. E o que isso significa? Não somente uma remodelagem do marco de responsabilização civil e administrativa, mas também, penal e processual penal.[i]

Além disso, foi estabelecida a presunção de responsabilidade em casos de anúncios pagos e uso de redes artificiais de distribuição (bots) para disseminar conteúdo ilícito e/ou ilegítimo.[ii]

Os embargos: a batalha por prazos, critérios e clareza

A publicação do acórdão abriu um prazo para que as partes e terceiros interessados (amici curiae) apresentassem medidas de impugnação e recursos. Cabe esclarecer à leitora e ao leitor que os chamados “Amigos da Corte” não detêm legitimidade para a oposição de embargos de declaração. Essa via recursal, contudo, corresponde a recurso que, a rigor, não visa reverter o mérito da decisão, mas esclarecer obscuridades, corrigir contradições ou suprir omissões. Até 25 de novembro de 2025, 8 (oito) embargos foram protocolados, com previsão de julgamento apenas a partir de 2026.[iii]

As big techs, como Google, Meta (Facebook e Instagram) e X (antigo Twitter), adotaram uma estratégia cautelosa. Seus recursos focam primariamente na modulação dos efeitos da decisão, evitando questionar o mérito para não arriscar uma ampliação ainda maior de suas responsabilidades. Os principais pedidos são:

1. Prazo de Adaptação: as empresas argumentam ser inviável a implementação imediata das complexas obrigações técnicas, jurídicas e operacionais. O Facebook, por exemplo, solicita prazo de seis meses após o trânsito em julgado (o fim de todos os recursos), enquanto o X compara a situação do julgamento com legislações como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que concedeu 24 meses de adaptação. [iii][iv]

2. Critérios para Notificação: o Google, por sua vez, pede que o STF defina requisitos mínimos para uma notificação extrajudicial (como identificação do noticiante e descrição do ilícito), a fim de evitar uma “indústria de notificações” e a remoção em massa de conteúdos legítimos. [iii]

3. Correção de Termos: o Google também aponta um erro material no uso do termo chatbot como sinônimo de rede de distribuição artificial, enquanto o Facebook pede a substituição de “presunção de responsabilidade” por “presunção relativa de culpa” para alinhar a tese à natureza subjetiva da culpa (algo que promoveria uma transição da lógica de responsabilização consumerista, para a cível ortodoxa. [iv]

Por outro lado, entidades da sociedade civil, como a Wikimedia Foundation, Artigo 19, InternetLab. Idec e Sleeping Giants, buscam um equilíbrio mais fino e estruturado. Seus embargos pedem a diferenciação entre plataformas (uma enciclopédia como a Wikipédia não deveria ter o mesmo tratamento de uma rede social), a definição, mais concreta e parametrizada, de conceitos vagos como “atuação diligente” e “tempo hábil”, e o reconhecimento do papel do Poder Executivo na regulamentação do setor.[v][vi]

Eleições 2026: O risco da incerteza jurídica

A principal preocupação que emerge deste cenário é o timing. Com o julgamento dos embargos previsto apenas para a partir de fevereiro de 2026 e a possibilidade de concessão de prazo de adaptação de, pelo menos, um semestre, o Brasil corre o risco de chegar ao período eleitoral sem a plena vigência de regras mais rigorosas de moderação de conteúdo.

Essa lacuna temporal e operacional é um campo fértil para a proliferação da desinformação, um desafio que se agrava a cada ciclo eleitoral. As eleições de 2018 foram marcadas pela disseminação de notícias falsas via aplicativos de mensagem, enquanto 2022 viu a migração dessa tática para as redes sociais, potencializada pelo uso de inteligência artificial (IA). [vi]

Para 2026, a expectativa é de um aprofundamento no uso de tecnologias como deepfakes para criar conteúdo audiovisual fraudulento hiperrealista, tornando ainda mais difícil para o eleitor – e, também, para os órgãos de monitoramento e de controle – distinguir o fato da ficção, assim como aferir o impacto de tais comunicações no contexto de avaliação de abusos e demais fraudes eleitorais.

Consciente deste risco, para o último ciclo das eleições municipais, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) editou a Resolução 23.732/2024, que proíbe o uso de deepfakes e responsabiliza plataformas que não removerem rapidamente conteúdos desinformativos sobre o processo eleitoral. A própria decisão do STF sobre o Marco Civil fez uma ressalva importante, afirmando que a tese não afeta “a aplicação das disposições específicas da legislação eleitoral e os atos normativos expedidos pelo TSE”. [ii] [vii] Isso, na prática, fortalece o poder normativo (quasi legislativo) da Justiça Eleitoral.

Embora o extrato da decisão apresente exigibilidade normativa, a falta de transparência e de segurança jurídica acerca dos temos de vigência do acórdão do STF, cria um ambiente de instabilidade jurídica e política que pode inibir a atuação proativa das plataformas, que estão resistentes por conta dos custos de compliance, e também dos órgãos administrativos e judiciais competentes. Diante da incerteza sobre quando e como as novas regras serão aplicadas, a tendência é a de que as empresas ajam de forma mais reativa, aguardando o desfecho dos embargos.

Este compasso de espera favorece justamente aqueles que se beneficiam da disseminação de desinformação, discursos de ódio e ataques às instituições democráticas, além das próprias big techs[viii], que protelarão os investimentos vultosos que terão de fazer para ficarem em conformidade com o teor do acórdão.

Caso o trânsito em julgado só ocorra em março, por exemplo, e caso acolhida a tese da modulação nos termos em que apresentada por uma das embargantes, as medidas passariam a valer, em tese, somente a partir de setembro, reta final das eleições. Da perspectiva das fronteiras eleitorais, entretanto, apesar de já estarmos a menos de um ano das eleições gerais, ainda pairam expectativas de novas regras a caminho. A Presidência em exercício ao momento do próximo ciclo eleitoral já anunciou o interesse em complementar o regramento.[ix]

O cenário político polarizado, com um eleitor indeciso que se mostra decisivo, torna o ambiente ainda mais suscetível à manipulação. Como aponta o senador Rodrigo Pacheco, as fake news são “uma ameaça ao processo eleitoral e às instituições democráticas brasileiras”, pois “influenciam de maneira criminosa a opinião pública e, consequentemente, o voto do eleitorado”.[x]

O que precisa ficar nítido é que, ao arrepio do que preconiza o art. 16 do texto constitucional (o dito “pétreo” princípio da anualidade eleitoral), a tendência institucional e constitucional é a de que tenhamos novas e supervenientes regras para a regulação da matéria por meio de aventadas resoluções da Corte Superior eleitoral. A dúvida é: o Supremo será provocado a se imiscuir também nesse Marco da Internet: o eleitoral?

Pressão política

A decisão do STF de declarar o artigo 19 do MCI parcialmente inconstitucional foi um passo fundamental para adequar a legislação brasileira aos desafios da era digital, reconhecendo que a liberdade de expressão não pode servir de escudo para a disseminação de ilícitos que corroem a democracia. No entanto, a batalha jurídica que continua, com oito embargos de declaração, mergulha o país em um estado de incerteza e de tensionamento de riscos operacionais e eleitorais.

Embora os pedidos das empresas de tecnologia por prazos e clareza sejam, em parte, legítimos, o adiamento da plena aplicação das novas regras de responsabilidade cria um vácuo de transição (uma espécie de vacatio decisio) perigosa às vésperas de eleições gerais. A experiência recente demonstra que, sem uma moderação de conteúdo eficaz e proativa, as plataformas digitais podem ser instrumentalizadas para manipular o debate público e minar a confiança no processo eleitoral.

Some-se a isso o fato de que a aprovação da tese teve três votos contrários, dos ministros Edson Fachin, que agora preside a Suprema Corte, André Mendonça e Nunes Marques, que será o presidente do TSE no ano que vem. Em todas as manifestações deles, prevaleceu a tese da liberdade de expressão das empresas e sua não responsabilização em relação a conteúdos postados por terceiros, ou mesmo, promovidos por elas.

Tese esta que está no cerne dos discursos das big techs desde a década de 1990. A mesma narrativa foi adotada pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ao baixar tarifas sobre o comércio do Brasil e outros países, como os da União Europeia. Usando argumentos similares, o ministro Mendonça criticou recentemente seus pares pelo teor da decisão dizendo que tudo não passava de ativismo judicial.

Além da disputa eleitoral, um risco claro que está se colocando é o atual surgimento nas redes sociais de contas e grupos intitulados Geração Z[xi], usando os mesmos trunfos e identidade visual de movimentos que incidiram no enfraquecimento dos governos do Nepal[xii] e do México. Denunciadas como mecanismos de guerra híbrida e ocorridas em oito países, incluindo Madagascar, Marrocos, Peru e Filipinas, tais manifestações resultaram na queda do primeiro-ministro nepalês e abriram uma crise política para a administração de Claudia Sheinbaum. Dos oito países, cinco tinham governos de direita e 3, de esquerda.

Em comum, todos têm a plataforma Discord como ambiente de organização e mobilização, uma liderança difusa, a bandeira pirata inspirada no mangá One Piece e um discurso alimentado por demandas anticorrupção, contra a deterioração dos serviços públicos e o desemprego.[xiii] Pela alegada participação de empresários e políticos, alguns analistas temem que este movimento possa ser usado como emblema para desestabilizar a sociedade brasileira no curto
prazo, a exemplo da crise de 2013 (as chamadas Jornadas de Junho).[xiv]

Considerando o cenário político atual, cabe ao STF analisar os embargos com a urgência que o calendário democrático impõe, buscando uma solução que concilie a complexidade técnica da implementação do acórdão com a necessidade imediata de proteger o ambiente informacional, com especial cautela e prudência, para a conjuntura eleitoral vindoura. Ao mesmo tempo, o poder normativo do TSE, reforçado pela própria Suprema Corte, deve ser exercido com vigor para garantir que as eleições de 2026 não sejam definidas pela desinformação, mas pelo debate livre e consciente de ideias.

Enquanto as fronteiras constitucionais e institucionais continuam desprotegidas, seguem em jogo e em disputa interesses com impacto profundo na democracia, na cidadania e na soberania – fundamentos de nosso Estado de direito.

Neste artigo, pontuamos que os sismógrafos sinalizam tremores e terremotos a caminho. Nossas instituições estão preparadas para o enfrentamento desse embate constitucional em pleno clima de Copa do Mundo e de eleições gerais?

Notas


[i] Paulo Rená Santarém, Jota. “Questões pendentes no julgamento do Marco Civil da

Internet” https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/questoes-pendentes-no-julgamento-do-marco-civil-da-internet

[ii] Supremo Tribunal Federal. “Tema 987 – Discussão sobre a constitucionalidade do art. 19

da Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet)”. https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5160549&numeroProcesso=1037396&classeProcesso=RE&numeroTema=987

[iii] artaCapital. “O próximo julgamento no STF sobre a responsabilização das big techs”.

https://www.cartacapital.com.br/justica/o-proximo-julgamento-no-stf-sobre-a-responsabilizacao-das-big-techs/

[iv] Migalhas. “Plataformas pedem prazo para cumprir regras do STF sobre o Marco Civil”.

https://www.migalhas.com.br/quentes/444548/plataformas-pedem-prazo-para-cumprir-regras-do-stf-sobre-o-marco-civil

[v] ISTOÉ DINHEIRO. “Big techs fogem de aumento de responsabilidade em novo

julgamento”. https://istoedinheiro.com.br/big-techs-fogem-de-aumento-de-responsabilidade-em-novo-julgamento

[vi] Flavia Maia, Jota. https://www.jota.info/stf/do-supremo/plataformas-pedem-seis-meses-para-implementar-responsabilidade-exigida-pelo-stf

[vii] Pinheiro Guimarães. “Decisão do STF sobre Marco Civil da Internet e o Cenário Eleitoral

de 2026″. https://www.pinheiroguimaraes.com.br/decisao-do-stf-sobre-marco-civil-da-internet-e-o-cenario-eleitoral-de-2026/

[viii] James Görgen, Congresso em Foco.

https://www.congressoemfoco.com.br/artigo/109808/afetos-artificiais-e-publicidade-opaca-nas-eleicoes-2026

[ix] Danilo Vital, Conjur. “TSE pode criar resolução específica para as eleições de 2026”.

https://www.conjur.com.br/2025-set-19/tse-pode-criar-resolucao-especifica-do-eleitor-para-as-eleicoes-de-2026

[x] Paula Cochrane, Agência Senado. “IA e desinformação: por que as eleições de 2026 exigem atenção redobrada?”. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/10/24/ia-e-desinformacao-por-que-as-eleicoes-de-2026-exigem-atencao-redobrada-1

[xi] José Inácio de Medeiros, A12. https://www.a12.com/redacaoa12/mundo/geracao-z-e-os-novos-protestos-globais-nas-redes-sociais

[xii] James Görgen, Mobiletime. “O Nepal não é aqui”. https://www.mobiletime.com.br/artigos/12/09/2025/o-nepal-nao-e-aqui/

[xiii] Julieta Heduvan, LatinoAmérica 21. https://latinoamerica21.com/pt-br/como-o-discord-e-as-redes-se-tornaram-a-praca-publica-da-geracao-z/

[xiv] Alex Vasquez e Gonzalo Soto, Bloomberg.

https://www.bloomberg.com/news/articles/2025-11-13/bots-billionaires-behind-gen-z-march-in-mexico-sheinbaum-says

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