Big techs: O Nepal não é aqui

No país asiático, revolta da juventude foi desatada por uma sucessão de erros cometidos por partidos de esquerda, no governo ou em suas cercanias. Os problemas vêm de longe e vão além do digital. Seria um engano desistir da regulação das corporações aqui por conta deste incidente

Foto: Direkton
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Os recentes acontecimentos ocorridos no Nepal foram atribuídos por parte da imprensa mundial à reação da juventude contra a decisão do governo de banir a atuação das plataformas digitais no país. Mas, como sempre, as coisas não são tão simples. A nação encravada entre China e Índia, e famosa por dar acesso à rota sul do Monte Everest, vem travando uma briga intestina entre partidos políticos de esquerda que tem fragilizado a estabilidade institucional e a ordem econômica.

O que nos interessa aqui, porém, é quanto este fenômeno dos protestos, que causou mortes e a deposição do governo nos últimos dias, advém do poder das Big Techs e da dependência social e econômica das nações a estes conglomerados. Mais do que isso, o quanto este episódio serviria de alerta para países como o Brasil refrearem suas iniciativas de regulação e responsabilização destas empresas em território nacional. Seria esta uma chantagem capaz de ser replicada a diversas nações ou isso seria resultado de um contexto específico mais amplo do que apenas uma primavera digital?

Para responder estas questões, é preciso analisar o contexto político e de mobilização social no Nepal ao longo dos últimos anos que resultaram nos dias de desobediência civil, na reação policial violenta por parte do governo e na renúncia do primeiro-ministro[1]. O choque tem se dado por uma coligação entre o Congresso Napolês e o Partido Comunista do Nepal (Unificado Marxista-Leninista, UML), hoje liderado por K. P. Sharma Oli, com a oposição do Centro Maoísta, de Pushpa Kamal Dahal “Prachanda”. As duas forças competem pelo controle do Estado nepalês desde 2008, com o fim da monarquia. A coligação UML-Congresso isolou os maoístas e alimentou retórica anticomunista interna, levando os maoístas a se reposicionarem como voz da juventude urbana. Por outro lado, o Centro Maoísta vem acusando a situação de não agir contra denúncias de corrupção de membros do alto escalão. Para a juventude, entretanto, todos representam a mesma elite, que seria corrupta e ineficiente. A violência de 9 de setembro atingiu políticos dos três partidos indistintamente.

A rivalidade entre as principais forças comunistas foi marcada pela ação de regulamentação dos serviços digitais com a edição de sucessivos decretos entre abril e dezembro do ano passado[2]. E o banimento de plataformas como Facebook, Instagram, WhatsApp e Youtube veio depois de junho, quando elas se recusaram a submeter-se à regulamentação que previa que se registrassem como empresas no país. Dos 31 serviços digitais que atuavam no Nepal, apenas 5 tinham concordado em se adequar à regra quando o prazo expirou, no dia 1º de setembro.

Isso levou à proibição[3] e à reação dos jovens da chamada Geração Z, considerando que um terço da população vive no exterior e usa as ferramentas das redes sociais para se comunicar com suas famílias e transferir recursos financeiros[4], além de boa parte dos trabalhadores utilizar as plataformas para atividades na economia informal. A insatisfação também foi agravada pelo crescimento da visibilidade dos “nepo kids”, filhos da casta política do partido comunista que usam as redes sociais para ostentar uma vida recheada de luxo e riqueza. A invasão, o incêndio do Parlamento e a consequente repressão policial causou a morte de 19 pessoas deixando 300 feridos[5]. Com a renúncia do primeiro-ministro, o Exército assumiu a segurança interna e impôs toque de recolher.

O líder da oposição acusou o governo de violência e passou a exigir a instalação de uma comissão de inquérito sobre as mortes, prometendo “nova revolução democrática”[6]. Para os maoístas, o enrijecimento do bloqueio digital foi uma tentativa que visava conter tanto denúncias de corrupção quanto a comunicação de facções adversárias dentro da esquerda. A medida acabou tendo um efeito bumerangue ao catalisar o descontentamento com o desemprego de jovens e oferecer aos maoístas a narrativa de “censura oligárquica”, reforçando sua legitimidade junto às ruas.

E o custo político de ignorar as mortes levou setores de cada partido a considerar um pacto mínimo, ainda que provisório, para redigir nova lei de mídias e convocar eleições antecipadas. Como escreveram dois ativistas no Counterpunch:

Katmandu está em alerta não por causa dos “aplicativos”, mas porque uma geração criada com a promessa de democracia e mobilidade colidiu com uma economia e uma ordem política que continuam fechando todas as portas.[7]

Como resultado, surge o risco de um político ultranacionalista de direita anti-Índia assumir o poder[8].

Síndrome de Estocolmo

Além das questões políticas e econômicas locais, os dias turbulentos no Nepal nos levam a refletir sobre a atual dependência de nossas sociedades às chamadas Big Techs para viabilizar nossa comunicação, nossas transações comerciais e nossas manifestações políticas e culturais. Uma geração inteira de nativos digitais, aliada a uma classe média alicerçada em pequenos negócios realizados dentro das mídias sociais, virou defensora ferrenha de sua atuação, facilitando o trabalho dos conglomerados contra iniciativas de regulamentação dos seus negócios. Trata-se de uma síndrome de Estocolmo planetária, marcada pela defesa da liberdade de expressão como forma de também evitar a supervisão estatal sobre suas atividades, ampliando a dependência.

Isso faz com que as Big Techs sequer precisem agir para derrubar governos. Os dias de conflito no Nepal têm sido marcados por um total silêncio destas empresas em relação aos acontecimentos gerados pela decisão de banimento. E o melhor dos mundos para elas: estão servindo de exemplo para outros estados nacionais que estejam se mobilizando pela regulação dos serviços digitais. Mais do que anunciar a saída de um país por conta deste tipo de pressão legislativa, elas apenas precisam se rebelar contra normativos para gerar apoio instantâneo de parte das populações, culminando com a deposição de governos.

Parece uma ideia equivocada entender que tentar silenciar a juventude através do controle dos oligopólios de tecnologia possa ser mais perigoso para um governo do que permitir críticas online. A Geração Z nepalesa provou que, quando suas ferramentas digitais são ameaçadas, ela pode rapidamente se organizar para derrubar governos, mesmo em países com tradições autoritárias. Mas isso pode não se consolidar se forem oferecidas alternativas.

Brasil digital

Pressionado pelo governo dos Estados Unidos nesta seara, o Brasil não deve cair em chantagem. Temos evidências de que o Nepal não é um exemplo que sirva para nossa realidade e que a revolução colorida digital pode não ser um modelo a ser replicado por aqui pela oposição e as companhias estrangeiras. Com 84% da população conectada, nenhum agente da economia digital pode se dar ao luxo de virar as costas para nosso mercado digital. Alguns números de nosso ecossistema, compilados pela consultoria MeltWater[9], são impactantes e mostram a consolidação do Brasil como potência digital global, com 67,8% da população possuindo identidades ativas em redes sociais e ocupando a segunda posição mundial em tempo dedicado à navegação na internet e consumo de música em streaming. Esta intensa conectividade se reflete no robusto mercado de entretenimento, onde o país figura como o quinto maior mercado mundial de jogos eletrônicos e o sexto em jogos de apostas online.

Na convergência entre mídia tradicional e digital, os brasileiros se destacam como o segundo público que mais acessa conteúdo digital pela televisão, o terceiro que mais assiste TV globalmente e o terceiro que mais investe mensalmente em assinaturas de TV paga ou serviços de streaming. Observa-se uma mudança significativa no comportamento em redes sociais com um recuo da segunda para a quinta posição mundial em tempo dedicado a essas plataformas, indicando possível maturação do mercado digital nacional ou migração para outras formas de entretenimento online. Estes indicadores revelam um Brasil digitalmente ativo e engajado, posicionado entre os principais mercados globais de tecnologia e entretenimento, com implicações estratégicas para o desenvolvimento da economia digital brasileira e políticas públicas de conectividade e de dados. Mesmo assim, não temos opções nacionais para o acesso a estas aplicações e plataformas.

Setorialmente, nosso sistema financeiro é conhecido por ser um dos mais digitalizados do mundo e estamos investindo fortemente na transformação dos processos de nossas indústrias de vários portes e da agropecuária por meio das novas tecnologias. Isso sem falar do poder público em todas as suas esferas, responsável por uma grande fatia na aquisição destes produtos para a oferta de serviços ao cidadão.

Pelo lado da cadeia à montante, são os setores digitais que majoritariamente demandam insumos críticos e infraestruturas estratégicas de alta complexidade, como semicondutores, data centers e dados, e se tornaram a coluna vertebral de economias como Estados Unidos, China, Coréia do Sul e outros países ao longo das últimas duas décadas. E todos eles possuem peso tanto na economia doméstica quanto nas políticas comerciais, incidindo fortemente na balança comercial, tanto de bens quanto serviços, e no avanço da inovação destas nações. Ao longo dos anos, receberam também aportes pesados dos estados nacionais e dos mercados financeiros para se expandirem, que é o caso emblemático do Vale do Silício[10]. Ou seja, desconsiderar o Brasil como fonte de receita é um tiro no pé que não aconselha a saída das Big Techs da nossa economia. E o paradoxo é não haver incentivos para elas saírem voluntariamente e, ao mesmo tempo, se elas saíssem ou fossem nacionalizadas quem as assumiria?

Democracia digital

Na frente política, temos uma democracia consolidada há 40 anos e um governo que não enfrenta denúncias de corrupção, ou caos econômico, além de uma Suprema Corte bastante atuante na responsabilização das Big Techs sem riscos de censura. A única pressão real vem da escalada dos ataques do governo dos Estados Unidos contra o Brasil suportado por parte da extrema direita, que tem apoiado a revolta no Nepal. Um dos motivos alegados é justamente uma suposta atuação das instituições nacionais contra a liberdade de expressão e a atuação de empresas de tecnologia estadunidenses. O mesmo discurso predominante no Nepal.

Ao mesmo tempo, as manifestações do presidente Lula nunca vão no sentido de defender o banimento destas empresas, mas de dizer que elas podem sair do país se não quiserem ser reguladas por leis brasileiras[11]. Na reunião virtual dos líderes do BRICS no início da semana, o mandatário brasileiro defendeu o multilateralismo para a governança da agenda digital, que está no centro da pauta do grupo, deixando claro que o governo não busca o isolacionismo tecnológico mas que lutará para afirmar sua soberania digital[12].

Mas o fator Nepal, aliado às pressões de Donald Trump, pode arrefecer o ímpeto do Poder Executivo em enviar ao Congresso Nacional textos que visem a regulação das plataformas digitais tanto do ponto-de-vista da proteção dos consumidores quanto da defesa concorrencial. Antes que isso aconteça, é importante lembrar de fatos recentes. Em setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou o banimento da rede social X. No início deste ano, foi a vez da saída do Rumble sem que qualquer pessoa fosse às ruas reivindicar seu retorno. O máximo que se registrou nos dois episódios, que não podem ser comparados com o banimento de uma rede mais popular, foram pessoas usando VPNs para continuar acessando a plataforma de Elon Musk ou migrando para alternativas, como BlueSky, Mastodon e Koo. O mesmo descaso ocorreu nos últimos meses, quando o STF considerou parcialmente inconstitucional o Marco Civil da Internet e o Legislativo aprovou o chamado “Eca Digital” num piscar de olhos.

Toda esta pressão geopolítica também não deve arrefecer os esforços do governo de levar a cabo ações soberanas de fomento a alternativas de economia digital. Estes dias de convulsão social no país asiático mostraram claramente que a falta de alternativas econômicas locais às plataformas e redes sociais estará por trás das próximas revoluções coloridas digitais. A fórmula exclusiva da regulação, sem ações que coloquem opções de competidores nacionais, que também garantam geração de ocupação e renda para a população, é crucial para o sucesso de uma substituição efetiva da dependência unilateral das Big Techs.

Tudo isso demonstra que o Brasil é refém destas empresas em um grau crescente devido à dependência de infraestrutura e serviços digitais, mas não está propenso a revoltas juvenis por supostas ameaças à liberdade de expressão na internet. O que torna a campanha de Trump e das Big Techs contra a regulação das plataformas no nosso país muito mais intrincada do que uma aventura trágica no Nepal.


Notas:

[1] ⁠https://www.aljazeera.com/news/liveblog/2025/9/9/nepal-protests-live-nepali-congress-office-top-leaders-homes-set-on-fire

[2] https://kathmandupost.com/politics/2025/06/15/agreement-to-end-house-deadlock-creates-discord-in-maoist-centre

[3] ⁠https://www.theguardian.com/world/2025/sep/08/nepal-bans-26-social-media-sites-including-x-whatsapp-and-youtube

[4] https://thewire.in/south-asia/nepals-crisis-explained-youth-anger-corruption-and-a-failing-political-order

[5] https://www.reuters.com/world/asia-pacific/nepal-lifts-social-media-ban-after-protests-leave-19-dead-minister-says-2025-09-09/

[6] ⁠https://mypeoplesreview.com/2025/09/07/prachanda-congress-uml-coalition-government-formed-by-middlemen-2

[7] https://www.counterpunch.org/2025/09/10/nepals-gen-z-uprising-is-about-jobs-dignity-and-a-broken-development-model/

[8] https://korybko.substack.com/p/an-ultra-nationalist-government-in?r=5lwlid&triedRedirect=true

[9] https://www.meltwater.com/en/global-digital-trends

[10] Muita gente não se dá conta como o nome desta região da Califórnia não representa mais o atual foco das empresas lá sediadas: a indústria de software e games, que hoje são o motor da economia norte-americana no mesmo estado que, coincidentemente ou não, abriga a indústria audiovisual desde o início do século 20. [não entendi essa nota]

[11] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/entrevista-lula-big-techs/

[12] Trecho do discurso do Presidente Lula na reunião de cúpula virtual do BRICS na última segunda-feira: “Outra lacuna central na arquitetura multilateral refere-se ao âmbito digital. Sem uma governança democrática, projetos de dominação centrado em poucas empresas de alguns países vão se perpetuar. Sem soberania digital, seremos vulneráveis à manipulação estrangeira. Isso não significa fomentar um ambiente de isolacionismo tecnológico, mas fomentar a cooperação a partir de ecossistemas de base nacional, independentes e regulados.”

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