Automação, atalho para o Comunismo?

Em livro provocador, Aaron Benanav sustenta: são frágeis as visões distópicas (e também as utopias) baseadas em robótica e IA. Sua perspectiva: já há meios técnicos para garantir a abundância e a igualdade. Alcançá-las é tarefa da política

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MAIS:
O texto a seguir é a apresentação do novo livro do sociólogo, historiador e economista Aaron Benanav, Automação e o futuro do trabalho, traduzido e editado no Brasil pela Boitempo, parceira editorial do Outras Palavras. Garanta o livro completo aqui.

Automação e o futuro do trabalho, de Aaron Benanav, é um contraponto importante e objetivo às reiteradas projeções, sejam elas infernais ou paradisíacas, sobre um mundo onde robôs e inteligências artificiais substituiriam trabalhadores e trabalhadoras. Descendo à miséria de uma realidade sob o domínio do capital, Benanav redireciona o olhar dos leitores das especulações futuristas do Vale do Silício para a precariedade contemporânea dos subempregos de um capitalismo estagnado e suas recorrentes bolhas financeiras. Ao fazê-lo não se esquiva de uma crítica radical que nos coloca a tarefa de um enfrentamento à constante capacidade do capital de nos conduzir ao abismo. E é em meio a esse pesadelo mesmo, e a partir das suas contradições, que o livro projeta também um outro futuro, não de soluções tecnocráticas, mas de uma reorganização comunal do próprio trabalho.

Benanav retoma e aprofunda as análises de Robert Brenner – especialmente a partir de The Economics of Global Turbulence, publicado em 1998 – sobre o longo declínio do capitalismo após os anos 1970i. Ao considerar os dados sobre a economia global do pós-guerra, e particularmente do setor industrial, Brenner indicou que a ascensão estadunidense e a reconstrução das economias de diversos países, em especial Alemanha e Japão, resultaram em uma sobrecapacidade industrial, o que reduziu a lucratividade e desacelerou os investimentos e a expansão do setor como um todo, trazendo sérias consequências para a economia mundial.

Para Brenner, as iniciativas estatais, particularmente nos Estados Unidos, voltadas a estimular novamente a economia não foram absolutamente ineficazes, em especial ao longo dos anos 1990. No entanto, diante desse cenário de sobrecapacidade e sobreacumulação de capitais na indústria, elas não conseguiram restaurar os níveis de lucratividade e de crescimento do pós-guerra. Mais ainda, como Brenner argumentou posteriormente, o estímulo à economia estadunidense adveio de uma política monetária voltada à valorização de ativos, como ações e propriedades imobiliárias, o que resultou em uma sustentação da demanda nos Estados Unidos que, em última instância, revelou-se frágil. Nesse contexto de desindustrialização e estagnação efetiva, formaram-se bolhas, como a pontocom, que estourou nos anos 2000, e a imobiliária, em 2007-2008ii.

A análise de Brenner fundamentou reflexões importantes sobre o contexto econômico dos desenvolvimentos tecnológicos contemporâneos. É a partir dela, por exemplo, que Nick Srnicek caracterizou o cenário “favorável” à plataformização do capitalismo criado pelas políticas monetárias estadunidenses desde o fim dos anos 1990 – especialmente durante a recuperação da crise financeira de 2008. Com o “dinheiro barato” disponível na economia dos Estados Unidos, mas diante dos constrangimentos da lucratividade da indústria, o capital financeiro subsidiou os arriscados investimentos da expansão “disruptiva” das plataformasiii. Na interlocução com Brenner, Benanav – que em outro ponto é crítico ao aceleracionismo de Srnicekiv e sua projeção de um mundo pós-trabalho – aprofundou o debate ao voltar-se para a questão do impacto da tecnologia sobre os empregos.

Na economia marcada pelo longo declínio, Automação e o futuro do trabalho apresenta um contraponto aos discursos em voga que atribuem à tecnologia e à automação a responsabilidade pela atual desaceleração na criação de postos de trabalho. Por meio de uma análise dos dados internacionais sobre o crescimento da produção e da produtividade, Benanav demonstra que é na formação de sobrecapacidade na indústria que se encontra o cerne da baixa demanda por trabalho contemporânea – em um contexto, ademais, em que os ganhos de produtividade são tímidos quando comparados àqueles das duas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial.

O livro complementa a tese de Brenner ao indicar os problemas associados ao deslocamento relativo dos empregos para o setor de serviços, que se seguiu à desindustrialização em diversos paísesv. Resgatando os diagnósticos de William Baumol, Benanav argumenta que os entraves ao incremento da produtividade nos serviços significam que, nesse segmento, os preços caem de maneira mais lenta, quando comparados aos do restante da economia. Essa característica torna os serviços ainda mais propensos à precarização do trabalho na competição por demanda. Como, em geral, os serviços são mais fortemente marcados pelo que ficou caracterizado como “doença dos custos” – com os salários dos trabalhadores compondo aqui uma parte relativamente maior do preço pago pelos consumidores –, o ataque ao trabalho intensifica-se na busca pela redução dos preços, inclusive por meio das diversas plataformizações.

O resultado, em termos globais, de uma sobrecapacidade e sobreacumulação na agricultura e na indústria, junto a um setor de serviços com um lento crescimento da produtividade, é uma estagnação econômica que, por sua vez, se traduz na disseminação de subempregos – algo distante, portanto, do discurso da eliminação geral de postos de trabalho por meio da tecnologia.

Por certo, a partir dessa tendência, as posições de cada país na economia global são fundamentais. Automação e o futuro do trabalho não perde de vista, por exemplo, que os subempregos e a informalidade no Sul global estão longe de ser uma novidade. Pelo contrário, estão presentes e até mesmo se intensificaram antes mesmo do desenrolar dos processos de desindustrialização das últimas décadas. Por outro lado, o arcabouço jurídico dos diferentes países não é, de forma alguma, negligenciável na absorção dos impactos sobre a classe trabalhadora do longo declínio do capitalismo contemporâneo.

Não obstante, o diagnóstico de Benanav é o de que a profundidade dos problemas demanda também propostas radicais para enfrentá-los. Ele retorna, assim, à história do keynesianismo, reiterando suas limitações, mas contrariando percepções usuais. Por exemplo, lembra que, diante das perspectivas de saturação da acumulação de capitais, do declínio do retorno sobre investimentos e da “maturação” das economias, Keynes e sobretudo seus seguidores mais radicais não propuseram um estímulo à formação de mais capital fixo para absorver força de trabalho excedente, mas a redução da jornada de trabalho e a socialização dos investimentos, orientando-os para os interesses públicos.

Isso, no entanto, implicaria uma disputa com o capital pelas decisões sobre os rumos da sociedade; demandaria retirar do capital a capacidade, recorrentemente mobilizada, de jogar países inteiros no caos através de desinvestimento e, sobretudo, demandaria uma organização política extraparlamentar capaz de sustentar esse enfrentamento. Diante dessas tarefas, Benanav coloca uma importante questão a qualquer reformismo mais substantivo em um mundo estagnado: se tamanhas forças populares um dia forem reunidas a ponto de poderem “forçar o capital a se submeter a uma economia orientada para o investimento público, por que não exigiriam mais?”.

As propostas contemporâneas, à esquerda, de uma renda básica universal (RBU), por exemplo, enfrentariam problemas semelhantes aos colocados aos keynesianos no século passado, mas em um contexto econômico e político ainda mais difícil. O diagnóstico do longo declínio da economia global diz respeito sobretudo a problemas na produção e não na distribuição. Isso é, diferentemente dos argumentos que apontam para um crescimento do desemprego, apoiado em uma alta produtividade do trabalho, impulsionada tecnologicamente, a economia contemporânea se vê, ao contrário, diante de uma sobrecapacidade e de uma estagnação – em meio, ademais, a uma crise ambiental de dimensões catastróficas.

No argumento de Benanav, a questão não é, portanto, um problema de distribuição, dentro de um cenário de forte crescimento econômico global, que poderia ser corrigido através de dinheiro entregue a todos sem contrapartidas. O longo declínio significa que qualquer renda básica universal alta o suficiente para enfrentar desigualdades econômicas gritantes resultaria em um jogo de soma zero entre trabalho e capital. Isso, por sua vez, apontaria para uma disputa mais ampla com o capital pelo controle da economia e, novamente, a necessária reunião de forças no mundo do trabalho poderosas o suficiente para tal enfrentamento. Levaria, portanto, a questões e conflitos muito mais amplos do que a renda básica universal e que não deveriam encerrar-se nela.

Com o declínio da economia mundial e as limitações dos projetos para enfrentar seus problemas, Benanav olha para o passado e resgata uma proposta comunista que é, ao mesmo tempo, modesta e ambiciosa: nas tradições que vão de Étienne Cabet a Karl Marx e Piotr Kropótkin, um mundo emancipado não pressupõe uma distante automação total da economia, a distribuição gratuita de dinheiro e o fim de nossas obrigações mútuas, mas uma reorganização da produção e da distribuição que rompa com o estranhamento da economia capitalista.

A clássica divisão e interconexão proposta por esses autores entre necessidade e liberdade, entre trabalho e tempo livre, em uma futura sociedade emancipada, é retomada em Automação e o futuro do trabalho para prefigurar uma sociedade que garanta, nas palavras de Marx, o controle comunal da produção, a organização racional do metabolismo entre seres humanos e natureza, o mínimo emprego de forças e as “condições mais dignas e adequadas” para o trabalho. Na contramão das jornadas exaustivas e da intensidade sufocante do trabalho contemporâneo, o foco aqui é uma organização comunal que valorize e garanta cada vez mais tempo livre a todas as pessoas.

Portanto, nem um mundo pós-trabalho, nem um mundo de uma ética voltada ao trabalho, mas uma reorganização coletiva e democrática de nossas necessidades e atividades produtivas, não mais ditadas pela expansão incontrolável e compulsória do capital. Não há aqui nenhuma tecnofobia, mas uma indicação de que é necessária uma transformação radical das relações de produção para que a tecnologia seja substantivamente empregada em um sentido emancipatório. Uma mensagem importante, que precisa ser sublinhada, ante os aceleracionismos de esquerda ou de direita em um mundo de emergência climática, minerações no Sul global e colapsos ambientais múltiplos.

Automação e o futuro do trabalho junta-se, assim, a um conjunto de diferentes contribuições que, diante das investidas avassaladoras do capital sobre as condições de vida e sobre a subjetividade da classe trabalhadora, mergulham na miséria contemporânea para indicar aí a necessidade de saídas realmente revolucionárias.

Por um caminho diverso, há três décadas István Mészáros lançava Para além do capital, que discorria sobre a profundidade da crise estrutural, suas manifestações também nas experiências pós-capitalistas e a necessidade de uma emancipação realvi. Na mesma época, Ricardo Antunes desconstruía os discursos que davam adeus ao trabalho e apontava o crescimento, a complexificação e a heterogeneidade da classe-que-vive-do-trabalhovii. Desde então, diante das múltiplas metamorfoses do mundo do trabalho, Antunes analisou o crescimento do setor de serviços, a ascensão de um infoproletariado e as desantropomorfizações contemporâneas do trabalho que, em sua provocação, indicam que o capitalismo de plataforma se assemelha cada vez mais à protoforma do capitalismo. É imperativo, portanto, reinventar um novo modo de vidaviii.

Em um sentido convergente, mas novamente por caminhos diversos, um conjunto de diferentes intervenções vêm, ao mesmo tempo, resgatando análises radicais em torno do mundo do trabalho e aprofundando as questões sobre como as acumulações de capitais são inextricáveis às destruições da naturezaix, aos processos de racializaçõesx e generificaçõesxi. O foco aqui também são os diagnósticos sobre a situação contemporânea do capital e a premência das lutas cotidianas, não perdendo de vista o horizonte de uma necessária superação radical do capitalismo, impulsionada pela classe trabalhadora.

Investigar sem ilusões as misérias de nossos tempos, sem ser tragado por seu realismo estreito e cada dia mais absurdo, é uma tarefa difícil, mas imprescindível neste momento em que as crises do capital chegam ao paroxismo. Daí a importância de Automação e o futuro do trabalho como instrumento de reflexão e luta contra o capital, para a construção de economias, tecnologias e formas de vida comunais.

Notas


i Robert Brenner, The Economics of Global Turbulence: the Advanced Capitalist Economies from Long Boom to Long Downturn, 1945-2005 (Londres, Verso, 2006) [ed. esp.: La economia de la turbulencia global, trad. Juan Mari Madariaga, Madri, Akal, 2009], e The Boom and the Bubble: the US in the World Economy (Londres, Verso, 2002) [ed. bras.: O boom e a bolha: os Estados Unidos na economia mundial, trad. Zaida Maldonado, Rio de Janeiro, Record, 2003].

ii Idem, “What Is Good for Goldman Sachs Is Good for America: the Origins of the Present Crisis”, Ucla: Center for Social Theory and Comparative History, 2 out. 2009; disponível on-line. Mais recentemente, Dylan Riley e Robert Brenner radicalizaram as consequências da tese do longo declínio ao caracterizar o regime de acumulação estadunidense como o de um “capitalismo político”, no qual “o poder político bruto, e não o investimento produtivo, é o principal fator determinante da taxa de rentabilidade”. Dylan Riley e Robert Brenner, “Seven Theses on American Politics”, New Left Review, v. 138, nov.-dez. 2022; disponível on-line.

iii Nick Srnicek, Platform Capitalism (Cambridge, Polity, 2017) [ed. arg.: Capitalismo de plataformas, trad. Aldo Giacometti, Buenos Aires, Caja Negra, 2018].

iv Para uma crítica ao aceleracionismo de Srnicek e de Alex Williams desde um ponto de vista ecossocialista, que dialoga com a perspectiva de Benanav, ver Kohei Saito, Marx in the anthropocene: towards the idea of degrowth communism (Cambridge, Cambridge University Press, 2022).

v Aaron Benanav, “A Dissipating Glut?”, New Left Review, v. 140-1, mar.-jun. 2023; disponível on-line.

vi István Mészáros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (trad. Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa, 1. ed. rev., São Paulo, Boitempo, 2011).

vii Ricardo Antunes, Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho (São Paulo, Cortez, 1995).

viii Idem, O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital (São Paulo, Boitempo, 2020), “Trabalho e (des)valor no capitalismo de plataforma: três teses sobre a nova era de desantropomorfização do trabalho”, em idem (org.), Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais (São Paulo, Boitempo, 2023), e Capitalismo pandêmico (São Paulo, Boitempo, 2022).

ix Ver, por exemplo, Kohei Saito, O ecossocialismo de Karl Marx: capitalismo, natureza e a crítica inacabada à economia política (trad. Pedro Davoglio, São Paulo, Boitempo, 2021), Laura Luedy (org.), Tempo fechado: capitalismo e colapso ecológico (São Paulo, Boitempo, 2025), e Maria Orlanda Pinassi e Isabella di Guastalla, “A solidão indígena no mundo-inferno da Amazônia”, Margem Esquerda, n. 39, 2o sem. 2022, p. 82-95.

x Dentre as diversas intervenções, ver W. E. B. Du Bois, A reconstrução negra na América (trad. Murillo van der Laan, São Paulo, Boitempo, no prelo), Márcio Farias, Clóvis Moura e o Brasil (2. ed., São Paulo, Dandara, 2024), e Ruy Braga, A angústia do precariado: trabalho e solidariedade no capitalismo racial (São Paulo, Boitempo, 2023).

xi Lise Vogel, Marxismo e a opressão às mulheres: rumo a uma teoria unitária (trad. Grupo de Estudos sobre Teoria da Reprodução Social, São Paulo, Expressão Popular, 2022), Lívia Moraes, Mariana Roncato e Arelys Borrego, A revolução será feminista! Aporte para lutas estratégicas da classe trabalhadora contra o capital (Marília, Lutas Anticapital, 2023), Tábata Berg, O ser social à luz da ser-outra (Campinas, Ofícios Terrestres, 2024), e Cláudia Mazzei Nogueira, O trabalho duplicado: a divisão sexual no trabalho e na reprodução (São Paulo, Expressão Popular, 2006).

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