Anatel: O neoliberalismo quer engolir de vez a internet

Agência que floresceu com as privatizações faz lobby pesado para se tornar a reguladora da internet no Brasil – esvaziando o Comitê Gestor, onde há forte participação da sociedade civil. Possível resultado: vazios de conexão no país e mais poder às Big Techs

Imagem: Maximo Tuja / SOMO
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Em meio a clamor por alguma política de regulação de plataformas, uma agência nascida no ventre do neoliberalismo vêm escancaradamente se oferecendo para se tornar a toda poderosa da Internet brasileira. A arapuca vem sendo armada pela Anatel, a Agência Nacional de Telecomunicações, uma entidade que mal dá conta das suas atribuições legais originais. No horizonte está mudar tudo para que tudo fique como está, ou seja, continuar fazendo as vontades do capital, seja ele o setor de telecomunicações, de mídia ou as plataformas. E, no processo, abocanhar mais um naco de influência política.

A primeira vista, pode parecer um movimento democrático. Afinal, a demanda por regulação de plataformas é basicamente um pedido por mais participação do Estado na organização de um setor que padece não só de uma epidemia de desinformação política, mas de relações de abuso e exploração derivadas do modelo de negócio das plataformas. Mas tem uma pegadinha aí. Agências como a Anatel podem ser tudo, menos um exemplo de política pública democrática. São órgãos burocráticos de atribuição “técnica”, criados na esteira das privatizações para justamente blindar o capital privado, que assumiu negócios essenciais (como o fornecimento de energia e comunicações), da interferência do Estado. Elas são feitas para que os governos não interfiram no que o neoliberalismo determinou que a iniciativa privada deveria cuidar. Com resultados desastrosos como a Enel em São Paulo.

A manobra da Anatel vêm se anunciando já há algum tempo, principalmente nas falas nada republicanas do seu presidente “técnico”. Sem se avexar em tagarelar politicamente, Carlos Baigorri vem afirmando que é posição institucional da agência a defesa da Anatel para a missão de regular a internet.

Mas foi no início deste ano que surgiram dois movimentos mais ousados. Um é uma ação no Congresso: por meio do deputado Silas Câmara (Republicanos-AM) foram protocolados dois PLs, o 4691/2024, que institui a Anatel como autoridade para a regulação das redes sociais; e o PL 4.557/2024, que coloca todo o sistema e governança da internet no Brasil, hoje sob o Comitê Gestor da Internet (CGI.br), sob o controle da Anatel. Em paralelo, a Anatel, numa ação legalmente questionável, derrubou a norma 4, um regramento que separa as atividades de telecomunicação e atividade de conexão à internet. Essa separação é organizadora do setor de Internet no Brasil, pois permitiu a existência de milhares de provedores de Internet no Brasil que levam conexão ao país todo. Quem está nas grandes capitais em geral é servido pelas grandes operadoras de telecom que fazem os dois serviços. Mas o interior do país é servido por uma miríade de pequenos e médios provedores, que vão até onde as grandes acham que o lucro é muito pequeno.

O fracasso político do PL 2630/2020, o tal PL das Fake News, torpedeado pelas Big Techs, está fazendo congressistas cogitarem embarcar no canto da sereia do “alguma regulação é melhor do que nada”. O problema é que os PLs são desastrosos, e só não vê isso quem não conhece o sistema de governança da Internet brasileiro (caso da grande maioria dos parlamentares).

O problema do sistema brasileiro é sua incompletude e falta de coordenação para uma atuação incisiva. Hoje, ele é formado basicamente por instituições cujas competências estão subentendidas no Marco Civil da Internet (MCI), como a própria Anatel, o Cade (defesa da concorrência) e a Secretaria Nacional do Consumidor (direitos dos consumidores). Após o MCI surgiu ainda a Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD), criada a reboque da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), e que sofre com falta de estrutura.

Tem papel de destaque no MCI o CGI.br, que já havia sido estabelecido por um decreto presidencial em 2003. Ele é citado como interlocutor da União para a discussão sobre a “racionalização da gestão, expansão e uso da internet”, no contexto de “estabelecimento de mecanismos de governança multiparticipativos, transparentes, colaborativos e democráticos, com a participação do governo, do setor empresarial, da sociedade civil e da comunidade acadêmica”.

O CGI.br, por meio de seu braço operacional, o NIC.br, é uma entidade que registra os nomes de domínios terminados em .br e, com o dinheiro arrecadado, faz funções técnicas que tornam a Internet brasileira operacional. Coisas como os pontos de troca de tráfego, os lugares onde as máquinas conversam e trocam informações sobre onde buscar os conteúdos que acessamos. É aquilo que está debaixo do capô e, como o carro vem andando bem, ninguém dá muita bola.

Porém, o CGI.br faz mais do que isso. Como é uma entidade multissetorial (reúne governo, empresas, academia e sociedade civil), é um espaço de participação e de organização política da Internet brasileira. É de lá que saem os dados estatísticos sobre como, quem e com que qualidade se acessa a rede no Brasil. E sustenta o maior encontro regional sobre Internet do mundo, o Fórum da Internet do Brasil, onde todos os setores se reúnem para discutir assuntos como inclusão digital, desinformação, inteligência artificial, discriminação algorítmica, entre outros. O próximo encontro acontece em Salvador, na última semana de maio.

A missão institucional do CGI.br é estabelecer princípios e diretrizes para a governança da Internet no Brasil, o que a entidade tem feito. Quem não tem feito a sua parte é o governo federal, que deveria complementar esse quadro com algo que lhe cabe: a criação de um sistema que integre CGI.br e ANPD com entidades que tenham poder real para incidirem sobre as plataformas nos diversos campos cuja institucionalidade elas distorcem: na economia, na comunicação, na educação, na saúde e outros.

É todo um complexo de governança multissetorial e de promoção da participação política que a Anatel quer colocar debaixo do braço. Muito provavelmente para tornar politicamente nulo. E abocanhar também os milhões arrecadados pelo .br, que hoje servem para viabilizar tecnicamente a Internet no Brasil e promover espaços de conhecimento, escuta, formação e participação política. A lógica é profundamente neoliberal, de aniquilação de espaços em que a sociedade civil pode se articular e participar para dar lugar a uma governança que se diz técnica, mas que na verdade se assujeita a interesses empresariais entre quatro paredes.

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