Política e jornalismo como teatro bufo

Para compreender aliança renovada entre mídia e poder, falta enxergar um elemento central da pós-modernidade: nada mais “contemporâneo” que o desenho de poder arcaico

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Somente do crime é que o homem vive.

(John Gay, A Ópera dos mendigos, 1728)

Observa-se um tipo de registro no discurso de poder político que, desde sempre, criou raízes profundas com a quase totalidade da imprensa. Por seu lado, essa mesma imprensa, identificada com a lógica do consumo, inclusive na própria maneira como produz a notícia, expressa uma condição que merece atenção. Não é difícil perceber, nessa mídia, a manutenção de um pensamento de viés claramente autoritário, embora, na maioria das vezes, isso não se deixe transparecer tão facilmente.

Isso ocorre pelo fato de empregar com astúcia uma lógica cuja dinâmica social e econômica se desenvolve para si mesma. Como dizia o filósofo, nela se percebe uma “evidente degradação do ser para o ter”. E, desse modo, dão-se as mãos – mídia e poder – numa majestosa sincronia.

Essa aliança durante muitas décadas foi (e ainda é) capaz de gerar processos decisivos na maneira do público considerar o mundo e, sobretudo, se compreender. Em que pese alguns dos seus aspectos mais significativos já terem sido objeto de um sem número de observações críticas, algumas delas, diga-se de passagem, capazes de desvelar com clareza e imensa profundidade essa espécie de “submersão das consciências”. Verifica-se com isso um grau expressivo de analfabetismo midiático em que não basta ter olhos para ler.

Exatamente por conta disso, essa aliança – imprensa e poder político – consegue ainda gerar “surpresas” em parcelas consideráveis do público a que se destina, nos mais distintos estratos sociais e culturais.

Na maioria das vezes, essa integração do público com o espectro político e hegemônico da sociedade, via imprensa, opera a partir de dois grandes vetores.

Numa primeira condição, o leitor/espectador é despertado para uma espécie de “como se fosse”, aquele mesmo encontrado na tradição mimética. Nela o sujeito é sistematicamente levado a crer numa curiosa forma narrativa que envaidece a sua inteligência. Em seu modo de ver o mundo, essa mesma narrativa se apóia na des-historicização dos fatos. Trata-se de uma dinâmica habilmente construída em que o caráter de fragmentação é um dos mais reconhecíveis.

Se observada mais de perto, verificamos que se realiza sucessivamente uma despolitização do público: o consumidor de notícias, desorientado por um acúmulo de informações, aparentemente desencapadas, sem a memória do fato e, em muitos casos, visivelmente seletivas. Ao perder assim referenciais substantivos, restam-lhe poucas alternativas. Acreditar naqueles princípios jornalísticos, aparentemente lógicos e indiscutíveis, não é uma tarefa muito complexa.

Nessa trilha, representantes do status quo, seja da política tradicional, senadores, homens de governo, ou ainda magistrados, juízes, banqueiros, empresários, donos da imprensa, são frequentemente apresentados, ao conjunto da sociedade, a partir de imagens engenhosamente construídas, cujo segredo jornalístico se apóia na obediência à hierarquia social.

Afim de que tais imagens se legitimem no imaginário da população: empregam-se elementos que guardam aspectos definitivamente simbólicos. O rigor e a sobriedade tão bem ensaiados escondem com maestria o fato de olharmos para um caráter idealizado. E esse conto surrado é hipocritamente conduzido e, sobretudo, desejado pelo público.

Em sua pequena grande maioria, aquele público está diante de uma fala conhecida e confortadora. Esta esgrime que não haverá mudanças. É pronunciada por atores embebidos na condição de responsáveis pela dinâmica do poder.

E, nesse entendimento, prevalecem o rito e sua força de comunicação inquestionável, pois ela se exercita em áreas em que o leitor/espectador mediano está mais vulnerável.

O gestual, a retórica, o timbre da voz, o terno príncipe de Gales, todos esses signos ajudam a compor os elementos expressivos de um comportamento social que se espera idealmente de um homem público, atuando em zonas inconscientes do desejo e da esfera da representação.

Nota-se que somos sempre reapresentados a um tipo especial de sujeito. Não se trata, entretanto, de um homem público qualquer. Essa encenação se codifica numa linguagem que torna distinto exatamente aquilo que procura esconder.

Envolvidos na expressão dessa ópera – vamos chamá-la assim –, são personagens absolutamente severos, que soam escrupulosos em cada filigrana de suas vidas. Incapazes de um deslize. Dificilmente, contudo, escapariam de um justificado ceticismo. Vale a pena nos determos sobre isso.

No final dos anos 1920, ao adaptar de um modo muito pessoal uma obra do dramaturgo inglês John Gay, do século XVIII, o alemão Bertolt Brecht elaboraria a máxima, do próprio Gay, segundo o qual, “somente do crime é que o homem vive”. De certa forma, ao mostrar, na sua ópera, bandidos fazendo às vezes de capitalistas, na verdade estava aludindo a burgueses capitalistas, e, ao falar de burgueses capitalistas, estava, sobretudo, se referindo a bandidos.

Numa nota de pé de página ao texto da peça, Brecht esclarecia seus pontos de vista: os atores deveriam evitar apresentar esses bandidos como um bando de tristes figuras, daquelas que animam as feiras e com as quais nenhum homem honesto tomaria um chope. Ao contrário, sussurrava o escritor para um leitor mais atento, trata-se naturalmente de homens assentados na vida, alguns corpulentos e todos, sem exceção, bem sociáveis fora de seu trabalho.

Apesar disso, o perfume que exalam, o sorriso contido, bem como a fala desconcertante para com os inimigos, todos esses elementos traduzem uma clara consciência política que se costuma chamar de personalidade. Por vezes, a ausência de uma dignidade interior transparece no olhar. Mas este mesmo olhar é encoberto pelos aros eloquentes de uma meia máscara facial. Isto quando o próprio olhar é severamente evitado: as mãos, os esgares, o sobrolho desviam a atenção do espelho da alma.

E, dessa maneira, esses homens se mostram. Mais: assim eles querem parecer e, sobretudo, ambicionam ser lembrados.

Parecem se dignificar com aquela máxima que aparecia a ferro e fogo nas paredes das escolas primárias dos anos cinquenta, visando enquadrar docilmente as crianças: “Sábio é o homem que nunca riu”. Há nisso uma inspiração solene, trágica, que um olhar mais arguto transvê além da camuflagem. Por conseguinte, naquela expressão, o humor, posto que terrível, é algo descartado sumariamente.

Com os gestos meticulosamente estudados, afiguram-se como aqueles que trazem a verdade. São críticos em relação a um mundo em revolta contra a ordem. E eles sabem subtrair a “falsificação de toda a natureza”.

Mas que narrativa é esta? Como isso se produz? Em qual labirinto da mente? Ao assimilarem uma estética tão bem articulada ao discurso midiático, portanto, distante do real, pergunta-se: como conseguem? De que forma?

As evidências de simulacro desse tipo de “gesto social” parecem sumir como por encanto. O caráter – expressão, sabemos, duramente perseguida pelos homens – é construído numa curiosa empatia com uma espécie de entidade mitológica, sagrada, incapaz do menor deslize, do menor engano.

Desse modo, ficamos diante de homens que se acreditam imbuídos – numa espécie de fé cênica notável – de um destino muito acima da maioria dos mortais.

Carregam, em sua máscara social, uma espécie de desígnio superior. Este os afasta daqueles homens e mulheres que precisam trabalhar incessantemente para sobreviverem. São mulheres e homens que precisam empregar um esforço maior para compreenderem o sentido de determinadas falas, cujas melodias soam como cânticos ditados por uma força incomum. (Assim, ao menos, tais atores sociais são levados a acreditar piamente ser esse o único caminho que o mundo lhes reservou.).

Entretanto, se olhada com maior cuidado, nota-se que essa retórica sustenta a sua condição numa representação. Não necessariamente um embuste pois aqueles mesmos grupos de poder há muito já internalizaram esse mesmo discurso. Discurso de privilégio, sem a cabeça baixa.

Impressiona, nesse roteiro de uma ópera bufa, que se pretende comunicar uma sonoridade majestosa e cheia de comiseração. A qualquer custo. Há nela certa elaboração formal que ganhou reforços consideráveis com a explosão midiática no decorrer do século XX. E esse é um ponto crucial.

É evidente que a imprensa aparece como um ator importantíssimo em sua frieza e agudo senso de oportunismo político. É ela quem vocaliza a fala de determinados avatares, sujeitos à necessidade de uma reiteração simbólica. Por conseguinte, sistematicamente os seus discursos invadem a pólis e vocalizam interesses de setores sociais poderosos. Insistentemente martelam por uma espécie de redenção contra um mundo em desordem. E ela mesma expressão máxima de poder.

Aliás, é exatamente a dialética da ordem e da desordem que eles – atores políticos e mídia – melhor interpretam e encarnam. Ambos se valem de signos que remontam a uma austeridade próxima do elemento religioso, especialmente aquele encontrado na grande tradição ocidental. E essa fala não admite contestação.

Na construção dessa aliança entre mídia e poder, há um outro componente decisivo. Em sua narrativa, vemos o desvio para um ponto neutro de observação. Este alimenta o foco de interesse dos indivíduos, condicionando um processo curioso de alienação.

Há, nessa operação, uma capacidade de imobilizar o fluxo de informações e análises mais decisivas.

Assim, o “produto cultural” empacotado faz tudo para dar a impressão, a doce sensação, de que se produz algo muito próximo da verdade.

Ainda que esse sistema político-midiático se apresente cada vez mais com as peças íntimas à mostra, e, desse modo, dê claras provas de falsificação, melhor, de desnudamento. Mesmo assim é difícil para o cidadão médio conseguir escapar a um inevitável processo de embrutecimento da consciência.

Por outro lado, efetivada todas as provas de que o velho negativo era falso, não correspondendo à imagem que um dia viu-se revelada, encontra-se um novo estágio de envolvimento com o discurso midiatico e a fala de poder.

Nesta, o leitor/espectador mediano não mais se apresenta como tão vulnerável. Nessa nova circunstância, mais aguda ainda, uma razoável massa de leitores e espectadores quer acreditar no que vê e observa. Encontramos aí uma outra ordem de simulação, a do espírito crítico. O “como se fosse” opera de uma outra maneira.

Essa condição perversa se produz como necessária, num mundo que se afasta da realidade e produz a “ciência da dominação”. Estamos diante de um outro tipo de sujeito. Este acredita, fielmente, que esgrime um sofisticado discurso crítico e, a partir de sua consciência política, sabe exatamente o que procura.

Em outras palavras, trata-se de um sujeito que, pelos mais variados interesses, concretos e/ou subjetivos, compreende, em parte, o aspecto mimético e fantasioso do discurso jornalístico. No entanto, ele realiza um disfarce sobre si mesmo, um disfarce de consumidor e o que isto significa no seu estar no mundo.

Por outro, não podemos nos esquecer, que a mais antiga especialização social, aquela que se assenta no discurso de poder, na fala imperial, como dizia Debord, tem as suas raízes plantadas na dinâmica do espetáculo. Nada mais moderno do que o desenho de poder arcaico, talvez espécie de uma fotografia na parede.

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