Pelo direito a não ter carreira alguma
Um dos aspectos mais aprisionantes do trabalho assalariado é a tendência a vincular a vida a uma única profissão. Que, em vez de carreira, tenhamos trajetória, aventura, travessia
Publicado 08/08/2017 às 19:14
Crônica de Maria Bitarello
“Carreiras são uma invenção do século 20, e eu não quero uma”. Quando li essa frase, conclui no ato: nem eu! Um dos primeiros pânicos que tive, ainda bem nova, ao me projetar adulta era justamente esse: como é que eu vou conseguir trabalhar a vida toda fazendo a mesma coisa? Tinha calafrios noturnos com a ideia. Isso muito antes de ler a frase acima no livro de Jon Krakauer, Na Natureza Selvagem. Muito antes de saber que não era preciso fazer todo dia a mesma coisa pra ser um adulto. Se soubesse então que carreiras são uma invenção recente, teria me concentrado em sofrer apenas com os outros dois desse trio de terrores do reino assombrado da “maturidade”: 1) acordar cedo todo dia; 2) e ter que virar esposa e mãe. Me sentia completamente inapta pra todos eles.
E pra despistar o carreirismo e evitar que a profecia se concretizasse, tive que dar uma voltinha por aí. Nos Estados Unidos, me agradava observar o valor que conferem às conquistas atléticas. Fulano é bancário, mas na verdade quando chega em casa e tira o disfarce de Clark Kent ele vira um ultra-maratonista, treina todos os dias e disputa até cinco provas anuais, incluindo o triathlon. Trabalho; qualquer um pode fazer. Mas os feitos atléticos dependem de disciplina e perseverança individuais, o que é uma prova de caráter na terra do self-made man. Aí na França era parecido, porém diferente – todo poder ao cérebro. Beltrano é carteiro, mas está escrevendo um ensaio definitivo sobre a obra completa de Marcel Proust. Sicrano é funcionário administrativo da prefeitura, mas todos os anos viaja pro Norte da África pra fotografar mulheres da cultura tuaregue.
Foi um alívio perceber que a carreira não precisava ser a luz no fim do túnel, o fim que justificaria todos os meios, nem o topo da cadeia alimentar. Poderia ser maratonista e escritora, ciclista e jardineira, yogi e cozinheira, professora e mochileira. Foi gloriosa e alforriante a descoberta. Ia de encontro a tudo que eu sentia. Era possível, sim, ter um trabalho que não me definisse enquanto espécie e não fazer desse trabalho uma trilha monocórdica. A ausência de uma carreira no sentido de um curriculum vitae não equivale a carência de ofício. De jeito nenhum. E o trabalho não dignifica o homem (e a mulher) coisa nenhuma.
Diante de tais descobertas, a ideia de voltar ao Brasil e, consequentemente, precisar encontrar uma profissão definitiva me mantinha firme e forte lá do outro lado do Atlântico – onde, parecia, estaria a salvo desse fardo e das expectativas, minhas e de outrem, acerca de quem eu deveria ser aqui na terrinha. No além-mar, em terras estrangeiras, não esperavam muito de mim. Um sentimento libertador, a princípio, mas por fim infantilizador. E com o tempo foi tornando-se desestimulante sustentar o status café-com-leite do visto de estudante. Era hora de voltar. Hora de peitar o utilitarismo profissionalizante de frente.
E eis o que constatei. Carreira não pode ser algo que você busca, como passar de fase no videogame, ou passar de júnior pra sênior na firma. Uma carreira dotada de sentido só pode ser algo que te acontece, como a vida. Movida pelo tesão, pelo amor, pela alegria. Ela vai sendo trilhada ao longo da sua jornada terrena, como um passo dado depois do outro, como os capítulos de um épico russo ou o avanço da escola de samba na avenida. Haverá caminho, percurso, trajeto. Dos trabalhos que você amou aos que detestou, dos amantes às amadas, das dores de garganta às de cotovelo, passando pelas unhas encravadas e os vãos desesperos. É a história de cada um. Natural e inevitável. A humana aventura. Travessia.
Amen!
p.s. não diria melhor.
eu também iracema rsrsrsrs
Libertador mesmo!!
O texto é interessante, mas considero importante fazer ressalvas culturais e de classe. Aqui no Brasil a classe alta sente essa urgência de carreira bem sucedida, e a classe baixa trabalha sem que isso signifique ter uma carreira. O trabalho é um peso mas a noção de “carreira” é necessariamente dos mais abastados, que ajudam a criar essa mística do trabalho como algo que define a identidade (minha e do outro). Sendo assim, é infinitamente mais fácil buscar se “libertar” disso quando já se é privilegiado. É como o adolescente de classe média alta cujo grande fardo é verdade o escritório de advocacia do pai. Por isso, ao contrário dos demais comentários aqui, como pessoa vinda de outra classe, não me identifico com o texto.
Perfeito! Me senti lendo sobre mim!
Parabéns. Adorei!
Muito legal! Me identifico e assino em baixo
Excelente!
Maria, salvei seu artigo e vou me aprofundar nesta reflexão. Sou pesquisador da área da educação e reflito muito sobre carreiras profissionais, aliás, esse é o tema para o qual as minhas pesquisas têm se afunilado. Mantenho um projeto na minha universidade que chamo de Laboratório de Desenvolvimento Profissional, mas nas minhas discussões sobre isso, sempre acrescento que um plano de carreira é, antes de tudo, um plano de vida. Suas metas profissionais e educacionais precissm estar associadas à construção da sua felicidade. No entanto, eu nunca tinha pensado na possibilidade de não ter uma carreira, neste sentido que você trás. Achei o máximo! Vou mergulhar nessa reflexão, obrigado.
Desde que consiga sobreviver. Trabalhar no que gosta é o mais importante.
Ideia libertadora. Por muito tempo me identifiquei com a profissão que desempenho. Hoje já consigo me enxergar como pessoa para além do trabalho que realizo.
Que texto GENIAL! Totalmente disruptivo, lúdico, pontual e transformador. De uma forma incrivelmente sensível (e rebelde) descreveu o que quero GRITAR para o mundo. Parabéns, Maria Bitarello!
Aadooreeei.Muito interessante,parabéns
Obrigada Maria! Você acaba de salvar a minha vida!
Estava me corroendo de culpa por estar no mestrado, concluindo uma segunda faculdade e ter ficado grávida… O que me fez ter de largar tudo! Agora entendo que posso ser muitas, posso ser todas que eu quiser. 😉
Falou, falou e não disse porra nenhuma.
Amei muito a matéria Maria,
Me passou Liberdade!!!
Uma pessoa leiga jamais pensaria assim.Se carreira não importa, isso significa que: essa pessoa que é mestre em literatura não se importaria de lavar banheiros de rodovias?
É mesmo, o ser humano é criativo e uma carreira o torna num objeto limitado. Eu nunca me profissionalisei, após 2 anos a fazer o que já conseguia fazer acabava por ser saturante e procurava mudar. Não ganhei muito financeiramente, mas mentalmente sentimo-nos mais humanos e aproveitamos momentos que outros passam a vida a desejar.
Maravilha, acho que a maioria das pessoas vivam este dilema, mas como evitar? Ainda nao sei como, mas um dia largo tudo. So pra viver melhor.
A ideia de que uma carreira na vida irá te aprisionar em mundo monótono, de fazer sempre a mesma coisa todos os dias da vida é relativo. O trabalho industrial provoca esse tipo de pensamento, com as suas linhas de produção. Mas o mundo se tornou muito complexo para trabalharmos fazendo a mesma coisa. Tarefas repetitivas são cada vez mais automatizadas. O trabalho humano caminha a passos largos para tarefa do pensar. Mesmo dentro de uma única “carreira”, inevitavelmente vamos trilhar trajetórias diferentes. Como os problemas de um dia ou de uma época mudam. Novas tecnologias, novos pensamentos e abordagens a respeito de um problema. Tudo tem evoluído e inclusive a nossa maneira de trabalhar. Eu trabalho a 20 anos na área de tecnologia e trilhei funções (ou carreiras) completamente diferentes. É o nosso mundo líquido d hoje, como diria Baumann.
Com o crescente aumento da expectativa de vida, mais pessoas estão adotando a ideia de ter duas, três grandes ocupações ao longo da vida… Deixando de lado a parte romântica, eu estou atualmente me ocupando de funções relativas a área de tecnologia, e pretendo, em breve, mudar radicalmente minha ocupação principal. Essa virada demandou anos a fio de planejamento, renúncia, estudo e trabalho.
Adorei !!!
Desculpe me Maria mas vc não precisaria ir para outro pais para descobrir isso .
Bastava vc apenas olhar para os brasileiros menos desfavorecidos que para sobreviver nesse pais onde muitos tem muito e outros nada tem que :
Pra alimentar sua família e pagar as contas que não são poucas ,fazem vários trabalhos ao mesmo tempo .
E carreira nem passa pela cabeça de ninguém e sim como pagar suas contas e alimentar seus filhos ,com um salario mínimo desse pais.
É apenas um ponto de vista. Mas é possível ter uma carreira, ser feliz com isso e fazer outras coisas que lhe conferem bem-estar e prazer. Cada cabeça uma sentença. É necessário inovar-se, seja na carreira ou na vida. Não espere dos outros!! Não faça como os outros!!!
Me identifico totalmente!
Faço mil coisas diferentes!
Tudo que eu amo eu faço!
Menos perder minha liberdade.
Gratidão ♡♡
Rosana Rodrigues
Pagar contas e manter a família, faculdade dos filhos e afins seria apenas um detalhe na vida do super mane ??
Oi Maria. Parabens pela crônica.
Ai Mauro, que alívio encontrei minha tribo. Sempre senti assim so me faltou coragem. Sempre tive horror a rotinas, mesmices.
Muito obrigada por esse sopro de vida.
a escola colabora muito com isso, se você não tiver uma profissão, não será ninguém.
Texto maravilhoso!
De uma profunda reflexão acerca de um dos aspectos mais delicados da vida.
Adorei demais Maria.
Um título: a vida é muito curta pra se ter uma carreira…
Como já dizia minha mãe, o homem dos sete instrumentos, isso serve para todos que exercia muitas atividade mas a nescessidades de exercer. Contanto que seja trabalho honesto p
Adorei! Concordo contigo
Como me identifiquei! Obrigada.
Carreiras são uma invenção do século 20, e eu não quero uma”. Quando li essa frase, conclui no ato: nem eu!
#4VOTOS rs
Fiz um currículo de 20 anos na engenharia enquanto a culinária, a alimentação saudável, a alquimia da transformação dos alimentos era um hobby que exercia nos fins de semana e viagens.
Hoje, faz dois anos que sou uma cozinheira que tenta mostrar aos próximos os benefícios de uma alimentação saudável, consciente, orgânica e sem desperdícios. Meu hobby… a engenharia.
Adorei o seu texto!
Oi Maria!! estou as voltas com o projeto de mestrado na área de psicologia e o tema do seu artigo me inspirou . falta agora elaborar a pergunta. O aprisionamento da carreira??? o que acha??
Perfeito! Muito bom, fez eu me sentir menos culpada ainda kkkk
Sensacional!
Adorei o artigo, Maria!!!! Me identifiquei totalmente!!!