Otan: A diplomacia de canhões no Sul global
Dossiê esmiúça como aliança atlântica zarpou para outras águas e novas ameaças à paz. A militarização da política anti-migração. As intimidações a uma África não-alinhada. O bloco anti-China no Pacifíco. Ocidente arma-se, em busca de sobrevida
Publicado 12/06/2025 às 20:18 - Atualizado 12/06/2025 às 20:25

Um dossiê do Instituto Tricontinental
Em 2023, um ano após a invasão da Ucrânia pela Rússia, o embaixador alemão Christoph Heusgen cutucou a primeira-ministra da Namíbia, Saara Kuugongelwa-Amadhila, para saber por que seu país não havia condenado a Rússia. Kuugongelwa-Amadhila respondeu calmamente que seu país estava “promovendo uma resolução pacífica desse conflito para que o mundo inteiro e todos os recursos do mundo possam se concentrar em melhorar as condições das pessoas em todo o mundo, em vez de serem gastos na aquisição de armas, na morte de pessoas e na criação de hostilidades” (Kuugongelwa-Amadhila, 2023). O dinheiro que é usado para comprar armas, acrescentou Kuugongelwa-Amadhila, poderia ser usado até mesmo na Europa, “onde muitas pessoas estão passando por dificuldades”. O que é significativo nesse intercâmbio não foi o que Kuugongelwa-Amadhila disse, mas o fato de ela ter dito algo que fosse contrário ao consenso do Norte Global.
A perplexidade se espalhou pela sala e além dela. Por que esses líderes de países pequenos e pobres do Sul Global estão se manifestando contra o Norte Global, e por que eles não estão tão subordinados como antes? Como o Ministro das Relações Exteriores do Japão, Yoshimasa Hayashi, escreveu no prefácio do Diplomatic Bluebook 2023 do país, se propondo a entender o surgimento do Sul Global, “O mundo está agora em um ponto de inflexão na história” (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2024b). Em um relatório de novembro de 2024, o relator da Otan e ex-ministro das Relações Exteriores da Lituânia, Audronius Ažubalis, reconheceu as mudanças que estão ocorrendo no mundo com a ascensão do Sul Global:
É possível que o Ocidente não tenha se adaptado com rapidez suficiente a essa nova realidade, permitindo que potências autoritárias como a Rússia e a China fizessem incursões significativas na Ásia, na África, na América Latina e no Pacífico, colhendo benefícios econômicos e geopolíticos significativos. (Azubalis, 2024, p. 13)
A avaliação de Ažubalis demonstra quão pouco os líderes do Norte Global entendem sobre a ascensão do Sul Global. Na verdade, é o surgimento de um novo centro de indústria e forças produtivas na Ásia (da Índia e da China ao Vietnã e à Indonésia) e a criação de um novo conjunto de instituições de desenvolvimento (incluindo o Novo Banco de Desenvolvimento) que permitiram que os países mais pobres tivessem alguma influência sobre o Fundo Monetário Internacional, dominado pelo Departamento do Tesouro dos EUA. Em outras palavras, não é que a China esteja fazendo “incursões significativas” nesses continentes, mas sim que a China – e outros países – são capazes de sustentar os esforços de desenvolvimento nas nações mais pobres. Como o Norte Global não está fazendo isso, esses países não estão mais em dívida com ele. Simplesmente descartar a China e a Rússia como “potências autoritárias” e presumir que a retórica cansada do liberalismo e da democracia ocidentais atrairá países que desejam desenvolver suas economias é temerário. Igualmente absurda é a acusação de autoritarismo por parte de países que rotineiramente se aliam a monarquias. A incapacidade de entender o movimento real da história paralisa os intelectuais da Otan, que, em vez disso, recorrem à suposição de que os povos da África, Ásia, América Latina e Pacífico estão apenas sendo enganados pela Rússia e pela China e que, se soubessem a verdade sobre o liberalismo e a democracia ocidentais, tomariam a decisão correta de se subordinar ao Norte Global.
No entanto, a Otan desenvolveu uma presença importante na região do Mediterrâneo, no continente africano e na Ásia (e tem um papel menor a desempenhar na América Latina, onde seu principal aliado é a Colômbia). No restante desta seção, vamos nos concentrar nessas três regiões de atividade significativa da Otan.Acima
O Mediterrâneo, a Guerra ao Terror e a instrumentalização da migração
Na década de 1990, a Otan havia estendido seus tentáculos para explorar colaborações em todo o mundo, começando pelo que chamou de “vizinhança do sul” (ou seja, os países ao sul do Mar Mediterrâneo). Em 1994, lançou o Mediterranean Dialogue [Diálogo Mediterrâneo], um fórum para países fora da zona da Otan realizarem intercâmbios com países da Otan. Os países aderiram ao diálogo em ondas, desde a Argélia, o Egito e Israel até a Jordânia, a Mauritânia, o Marrocos e a Tunísia, muitos dos quais não tinham relações com Israel e, ainda assim, sentaram-se à mesa com o representante desse país. Em 2004, um ano depois que os Estados Unidos e vários de seus aliados da Otan participaram da guerra ilegal contra o Iraque, a Otan reuniu quatro países do Golfo Árabe (Bahrein, Kuwait, Catar e Emirados Árabes Unidos) na Iniciativa de Cooperação de Istambul para aumentar a cooperação militar entre a Otan e o Golfo Árabe. Vários dos países dessas iniciativas (incluindo pelo menos o Catar, os Emirados Árabes Unidos, a Jordânia e o Marrocos) participaram da Operação Unified Protector da Otan em 2011, que destruiu o Estado líbio. Em 2016, a Otan inaugurou o Strategic Direction South Hub perto de Nápoles, na Itália; em 2017, abriu um Centro Regional da Iniciativa Cooperativa de Istambul no Kuwait; e depois, dentro desse processo de diálogo, sugeriu a abertura de um Escritório de Relações da Otan, em Amã, na Jordânia. Esse escritório foi anunciado na Cúpula da Otan de 2023 em Vilnius e inaugurado no ano seguinte.
Esses pronunciamentos e comunicados falam efusivamente de direitos humanos e democracia, mas as palavras-chave na realidade são contraterrorismo e interdição de migrantes nos mares e oceanos. Após a atrocidade da guerra da Otan contra a Líbia em 2011, quando a aliança já estava mergulhada no pântano da Guerra ao Terror, ela começou sua guerra contra migrantes de várias partes do Sul Global que viajaram para esse país devastado pela guerra para tentar atravessar o mar em direção à Itália. Os líderes da Otan começaram a falar dessa tragédia como a “instrumentalização dos migrantes”, o que significava para eles que seus inimigos estavam empregando os migrantes como uma “ameaça híbrida” para dominar seus países (uma frase que foi usada especificamente quando a Rússia permitiu que requerentes de asilo de vários países cruzassem a fronteira com a Finlândia em 2024). Em uma reunião em Washington em 2024, o ex-secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, reconheceu diretamente que “a Otan tem um papel a desempenhar” na “instrumentalização da migração” (Otan, 2024d). Essa é a Otan trazendo toda a sua panóplia de recursos militares para defender a Fortaleza Europa, uma ideia de direita e anti-imigração.
A África diz: “Otan, Dégage!”
A ação mais consequente da Otan ao sul do Mediterrâneo foi o uso da força para destruir o Estado líbio em 2011. Essa ação abriu as portas para que africanos e outros migrassem para a Europa por meio da Líbia e deu início a um ataque terrorista contra a Argélia, Mali, Burkina Faso e Níger. Mais de uma década depois, os detritos da intervenção da Otan permanecem.
Notavelmente, essa intervenção ocorreu sob o pretexto da “responsabilidade de proteger” (R2P), uma norma internacional desenvolvida por uma Organização das Nações Unidas sitiada que “busca garantir que a comunidade internacional nunca mais deixe de impedir os crimes de atrocidade em massa de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade” (Global R2P, s.d). Embora o Comitê Internacional sobre Intervenção e Soberania do Estado tenha desenvolvido a R2P em 2001 em resposta ao genocídio de Ruanda em 1994 e ao bombardeio da Iugoslávia pela Otan em 1999, foi somente depois que os Estados Unidos prejudicaram a ideia de “intervenção humanitária” com sua guerra ilegal contra o Iraque em 2003 que foram tomadas medidas mais concretas para consolidar a R2P como uma norma internacional até que ela fosse formalmente adotada em uma Cúpula Mundial da ONU em 2005.
A França, que foi um dos autores da destruição da Líbia, usou o ataque terrorista subsequente ao Sahel para legitimar sua própria intervenção militar na região, que agora foi afastada por golpes populares sob a palavra de ordem France, dégage! (Prashad, 2024).. Esse sentimento, “Fora França!”, entra em uma órbita mais ampla: Fora Europa! Fora Otan!
Para a maioria das pessoas no continente africano, não seria fácil distinguir entre a UE, os EUA e a Otan. A política da UE sobre migração, por exemplo, não é uma política civil, mas paramilitar, que usou a Arma dei Carabinieri da Itália e a Guardia Civil da Espanha para patrulhar o Sahel por meio dos Grupos de Ação Rápida para monitoramento e intervenção no Sahel (GAR-SI) de 2017 a 2021. Enquanto isso, os EUA usaram drones para fornecer capacidade de vigilância a partir da AB 201, uma enorme base militar dos EUA em Agadez, Níger (Civipol, 2021). A intervenção militar francesa, as bases dos EUA na região, o uso de tecnologias de vigilância no Sahel e no Saara que são rigidamente regulamentadas ou proibidas na Europa: é assim que o norte da África vivencia o projeto da Otan – não pelos direitos humanos, mas pela brutalidade (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2021).
No entanto, a presença da Otan na África tem representado um desafio para os governos do continente, que continuam buscando dinheiro e assistência técnica. Em 2015, essa dinâmica deu à Otan o direito de criar um escritório na sede da União Africana (UA) em Adis Abeba, Etiópia (Otan, 2023). É essa concessão à Otan que permite que os Estados africanos solicitem treinamento e fundos para a incipiente Força Africana de Prontidão (uma de suas cinco forças regionais é a Capacidade de Prontidão da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental, que quase invadiu os Estados de Mali, Burkina Faso e Níger após seus golpes populares em 2021, 2022 e 2023, respectivamente) (Eid, 2024). Os líderes militares africanos continuam entrando e saindo dos quartéis-generais militares dos países da Otan, que agora foram formalizados como as Conversações entre Militares da Otan e da UA (Otan, 2024b). Com esse tipo de aconchego, não significa quase nada o fato de o Conselho de Paz e Segurança da UA ter feito uma declaração em 2016 pedindo aos Estados-membros que fossem “circunspectos” em relação a bases militares estrangeiras em seu solo (União Africana, 2016).
O desafio da Otan para a China
As guerras na Iugoslávia, no Afeganistão e na Líbia levaram a Otan para fora de sua área direta de operações. No entanto, isso está longe de ser o limite da geografia do imperialismo da Otan. Como Sten Rynning, do Instituto Dinamarquês de Estudos Avançados, escreveu em seu livro de 2024 NATO: From Cold War to Ukraine, a History of the World’s Most Powerful Alliance, “Naturalmente, a Otan não pode se dar ao luxo de ignorar o Indo-Pacífico, porque esse teatro se tornou a principal preocupação geopolítica dos Estados Unidos” (Rynning, 2024, p. 275). Essa formulação seria interessante para um linguista: A Otan “não pode se dar ao luxo de ignorar” as questões centrais que preocupam não os membros da Otan como um todo, mas os Estados Unidos. Em outras palavras, Rynning, cujo livro é o mais próximo que chegaremos de um estudo autorizado da Otan, admite abertamente duas coisas. Primeiro, que a política da organização não é determinada pelo Conselho do Atlântico Norte (oficialmente o principal órgão decisório da organização), mas pelos Estados Unidos. Em segundo lugar, desde 2009 (quando Barack Obama se tornou presidente dos EUA), os EUA passaram a ver cada vez mais a China como seu principal rival, pressionando a Otan a expandir sua órbita para ameaçar os chineses e colocá-los em seu lugar.
Até recentemente, a Otan descrevia a China como uma nação que oferecia tanto “oportunidades quanto desafios”, como escreveu na Declaração de Londres de 2019. Dois anos depois, sob pressão dos EUA, a Otan decidiu que a China não oferecia mais “oportunidades”, mas que suas “ambições declaradas e seu comportamento assertivo apresentam desafios sistêmicos à ordem internacional baseada em regras e a áreas relevantes para a segurança da Aliança”, de acordo com a Declaração de Bruxelas de 2021 (Otan, 2019; 2021). Em um ensaio publicado no site da Otan em 2023, Luis Simón, do Real Instituto Elcano, com sede em Madri (fundado e financiado pelo Estado espanhol), argumentou que “a China constitui um desafio para um sistema internacional que ainda reflete amplamente os valores e interesses transatlânticos” (Simon, 2023). Essa é uma observação correta: não é que a China se oponha à “ordem internacional baseada em regras”, como afirma o Departamento de Estado dos EUA, mas sim que ela pode se opor à dominação transatlântica desse sistema.
Simón observa duas outras maneiras significativas de a China ser “relevante” para a segurança da Otan. Em primeiro lugar, a China tem sistemas de armas que podem chegar à Europa e tem “participações em infraestrutura crítica na Europa”. Em segundo lugar, como a Nova Guerra Fria contra a China é “imensamente importante para os Estados Unidos”, a Otan deve estar envolvida na fronteira do Indo-Pacífico. Isso reforça o argumento de Rynning de que, se é importante para os EUA, deve ser importante para a Otan (aqui, Simón, um cidadão espanhol, concorda com Rynning, um cidadão dinamarquês, de que a soberania das políticas externas de seus próprios países pode ser cedida a Washington).
Foi essa atitude que motivou a Otan a usar seu Programa de Parceria Individualmente Personalizada (criado em 2021) para criar laços estreitos com a Austrália e a Nova Zelândia (ambas já eram membros da aliança de inteligência Five Eyes), bem como com o Japão e a Coreia do Sul. Esses países agora fazem parte do Indo-Pacífico 4 (IP4) e participaram da Cúpula da Otan de 2022 em Madri como membros próximos (Otan, 2024c). Então, em setembro de 2024, o primeiro-ministro japonês Shigeru Ishiba pediu a formação de uma “Otan asiática”. No entanto, embora a aliança tenha considerado a abertura de um escritório de ligação em Tóquio no passado, uma Otan asiática seria em grande parte redundante, considerando os elementos já estabelecidos da Estratégia Indo-Pacífica dos Estados Unidos, como:
- Five Eyes (Cinco Olhos), uma rede de agências de inteligência vinculadas por acordos não divulgados, composta por Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Reino Unido e EUA.
- O Diálogo de Segurança Quadrilateral (ou Quad), que inclui a Austrália, a Índia, o Japão e os Estados Unidos.
- The Squad, que substitui as Filipinas por uma Índia menos entusiasmada.
- A aliança entre Austrália, Reino Unido e Estados Unidos (Aukus).
- A aliança Japão-Coreia do Sul-EUA (Jakus).
Além disso, o governo dos Estados Unidos atraiu de forma muito provocativa a província chinesa de Taiwan para o crescente papel da Otan na Ásia. Por exemplo, o projeto de Lei de Política de Taiwan do Congresso dos EUA considera Taiwan como um “importante aliado não pertencente à Otan”, enquanto uma emenda recomendada à Lei de Controle de Exportação de Armas de 1976 inclui o país na lista de “receptores da Otan Plus”, permitindo que ele evite regras de não proliferação de diferentes tipos (Hudson Institute, 2025; USCC, 2024, p. 443-485; Senado dos EUA, 2022; Fernandes, 2018, 2022; Cannon & Hakata, 2021; Baldauff, 2024).
Em outras palavras, já existem várias plataformas que fazem o trabalho de uma Otan asiática, e a Otan já está totalmente envolvida no Indo-Pacífico, como evidenciado por sua disposição em participar do projeto dos EUA de patrulhar as águas ao redor da China e construir projetos de segurança, como bases e alianças. A aliança atlântica da Otan já zarpou para o Oceano Pacífico. Essa é a diplomacia de canhões do século XXI.
Em 1839, os navios britânicos que impunham o ópio aos chineses tinham nomes sugestivos, como HMS Volage e HMS Hyacinth, o primeiro (Volage) indicando inconstância, e o segundo (Hyacinth), uma referência à mitologia grega indicando ciúme. Vale a pena preservar esses nomes. As alianças da Otan também são inconstantes. Seus interesses também são movidos pelo ciúme, protegendo os interesses de seus Estados-membros em detrimento dos interesses globais, como ela pretende. Ele quer manter o sistema baseado em regras dos EUA e impedir o desenvolvimento de outros países. É isso que torna a Otan a organização mais perigosa e reacionária do mundo atual.
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