O ano em que o velho mundo balançou

Há meio século, um vírus de desobediência contagiou o planeta. Todas as hierarquias foram postas em xeque. Mas 1968 está sendo? Onde foi parar sua explosão inventiva?

Estudantes manifestam-se na Cidade do México, em setembro de 1968. Protesto espalhou-se pelo mundo, na forma de lutas da juventude e do acirramento das guerras de libertação, no Terceiro Mundo

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Por Jean Tible

A barricada fecha a rua, mas abre caminhos.

Uma das frases símbolos dos muros de Paris em maio de 1968.

68, uma revolução mundial.

Um vírus da desobediência contagiou todo o planeta: Paris, Senegal, Japão, Vietnã, Cidade do México, Praga, Estados Unidos, Palestina, dentre outros pedaços.

Uma explosão de vida. A palavra-chave: experimentação. Novos desejos, aspirações e conexões brotam e desabrocham em todos os cantos do mundo. Um novo espírito do tempo, tempo do mundo.

O que parecia sólido se desmanchou no ar, o que parecia estável vazou (ainda que somente por alguns dias, semanas, meses – mas os efeitos ainda nos atingem). Colonialismo, patriarcado, supremacia branca, capitalismo e socialismo autoritário bambearam. Ou pereceram ou se reorganizaram – e continuam sendo questionados por inúmeras ações. Apesar da diversidade de situações e países, um elemento comum: o anticonformismo – seja encarando uma ditadura militar, poderes coloniais, sociedades capitalista ou socialista. Tratou-se de uma irrupção em defesa do direito de discordar, da multiplicação de vozes, da polifonia.

Abrir as portas dos asilos, das prisões e das escolas foi outro lema-pixo forte. Ninguém mais quis cumprir seu papel social habitual, embarcando num êxodo de libertação e busca de novas vias: operários (ocupando fábricas e locais de trabalho), estudantes (tomando universidades), artistas e criadores (dando outros significados para seus espaços e práticas), camponeses (se levantando), negros (se sublevando), mulheres, gays, lésbicas e muitas outras (afirmando novos corpos). Fuga do trabalho e busca da vida. Isso tudo já vinha ocorrendo, mas em 68 se acelerou e se reforçou, encontrou e produziu novos caminhos, pessoas, coletividades. Inspirações.

Todas as autoridades foram questionadas e hierarquias postas em xeque: patrões, professores, pais, chefes, tiranos, colonizadores, padres, pastores, rabinos, irmãs, representantes culturais e midiáticos… Uma viralidade do dissenso, um deslocamento das dominações e opressões e uma afirmação das singularidades. Desejos de autonomia, de novas vidas: o levante de uma nova geração político-existencial. Político e existencial: quem separou um dia essas esferas? A revolução é uma eztetyka (Glauber Rocha, 1967). Política e vida, política e arte – a busca pelo fim da representação em ambas. Impossível separar. Política e jogo, política e humor, política e festa, política e prazer, política e psicoativos. Política é criação – o resto é burocracia. Só interessa o que é inventor: “o trabalho criador propõe uma nova sociedade” (Helio Oiticica).

1968 é também (e sobretudo!) uma insubordinação anticolonial nos países da periferia (Argélia, Vietnã, Angola, Cuba…) e nos do centro (Panteras Negras e muitas outras nos EUA e outras partes). O Vietnã (e sua heroica resistência de camponeses pobres contra o maior Império) constituíram um poderoso catalisador das imaginações subversivas. Criar, um, dois, mil Vietnãs, declamava Che Guevara. Reforçando os nexos política-cultura, Zé Celso desloca essa frase ao dizer que o “objetivo é abrir uma série de Vietnãs no campo da cultura, uma guerra contra a cultura oficial, de consumo fácil”. O oposto da morte é o desejo – práticas de descolonização dos corpos. No Brasil, 1968 são as lindas e corajosas greves de Osasco e Contagem, as irrupções estudantis e, também, uma busca coletiva para se libertar definitivamente do complexo colonial – conectando-se com a busca de Oswald de Andrade pela exportação de poesia (e não mais sua importação enlatada). Consideramos 1922 como início de uma revolução cultural no Brasil, nos disse Glauber Rocha em 1969.

1968 marca o início do nosso mundo contemporâneo. Uma revolução sempre acompanha-se das reações, da contrarrevolução, daí a reação-repressão por todos os lados nos anos seguintes. A economia se reorganizou e buscou capturar a inventividade expressada, os poderes viram um excesso de democracia (onde ela existia minimamente) e de demandas sociais e existenciais. A partir daí, as desigualdades entraram numa perigosa espiral de aumento generalizado, tendo o Chile de Pinochet como laboratório desse novo modelo (neoliberalismo). No Brasil, o contragolpe veio bem rápido: o golpe civil-militar de 1964 reforçou ainda mais seu autoritarismo com o AI-5 de 13 de dezembro de 1968, e, na sequência, milhares de pessoas punidas, cassadas, presas, torturadas e centenas de filmes, peças, livros, programas de rádio, letras de música, revistas censurados.

1968 está sendo? Continua sua explosão inventiva? Vive, creio, numa nova sensibilidade, numa transesquerda (Zé Celso), num protagonismo negro, feminista, dos trabalhadores e criadores, em sua rebelião sempre renovada. Os tempos são outros mas guardam semelhanças, no Brasil contemporâneo e alhures, e nos pedem: criemos com alegria e cuidemo-nos – só nos resta resistir e criar, reexistir.

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Um comentario para "O ano em que o velho mundo balançou"

  1. gustavo_horta disse:

    A DITADURA NÃO TEM NOITE DE ESTRÉIA – O maior truque do Golpe é fingir que ele mantem viva a Democracia
    > https://gustavohorta.wordpress.com/2018/05/08/a-ditadura-nao-tem-noite-de-estreia-o-maior-truque-do-golpe-e-fingir-que-ele-mantem-viva-a-democracia/
    … …Emicida pôs o dedo na ferida, sondou o nó nevrálgico do problema: a Ditadura não tem noite de estréia, nem anúncio publicitário no telejornal que nos prepare para o dia de sua vinda. “Vai achando que ditadura é tipo horário de verão que tem comercial avisando a hora que começa, vai…”. As barbáries pretéritas podem retornar como um bumerangue. Seria ingênuo e falacioso acreditar na História como progresso automático rumo ao melhor. Além disso, as Ditaduras Possíveis do Porvir não serão previamente anunciadas, avisadas aos cidadãos com a antecedência com que nos alertam sobre os temporais e as frentes-frias na previsão do tempo.
    O rapper foi direto ao ponto: hoje em dia, a Ditadura viria sem travestida de Democracia, fazendo pose de Constitucionalista, e teria entre suas hordas de defensores aqueles que enxergam em Moro um juiz-herói ou em Bolsonaro um… …

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