O afeto que se encerra

Dois filmes exploram descaminhos que se abrem quando afeto primevo entre mãe e filho de algum modo se extravia

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Por José Geraldo Couto, editor do Blog do Zé Geraldo

Não existe relação humana mais primordial, fundadora, do que a relação entre mãe e filho. Isso é evidente até para quem nunca leu uma única linha de Freud.

Dois filmes em cartaz, díspares em tudo o mais, exploram os descaminhos que se abrem ao indivíduo quando esse afeto primevo de algum modo se extravia. Estou falando do brasileiro Vips, do estreante Toniko Melo, e do francês Feliz que minha mãe esteja viva (foto), que o veterano Claude Miller realizou em parceria com seu filho Nathan.

No filme francês, o garoto Thomas e seu irmãozinho Patrick são adotados por um casal estável de classe média depois que sua mãe, a jovem solteira e namoradora Julie Martino (Sophie Cattani) os abandona. Aos 20 anos, o desajustado e rebelde Thomas (Vincente Rottiers) sai em busca da mãe biológica e a encontra. Sobre o reencontro dos dois, cabe dizer apenas que é, no mínimo, explosivo.

Em Vips, baseado na história real do falsário e mitômano Marcelo Nascimento da Rocha, um rapaz de classe média baixa (Wagner Moura), filho de uma cabeleireira e, supostamente, de um piloto de avião, assume várias identidades falsas na tentativa de se autoafirmar. O Marcelo verdadeiro foi preso ao se passar por filho do dono da empresa aérea Gol e cumpre pena até hoje.

Consta que o longa de Claude e Nathan Miller também é inspirado numa história real. Pouco importa. O interessante é observar como cada um dos dois filmes plasma em narrativa de ficção, em representação estética, o caótico e informe magma emocional que impulsiona seus protagonistas.

Feliz que minha mãe esteja viva é um drama áspero, crispado, com uma narrativa elíptica e descontínua, em que cada cena parece começar já com a ação em curso e terminar antes de seu desfecho. Do mesmo modo, a composição de cada plano parece sempre truncada, mutilada, ou parcialmente obstruída. Em especial nos flashbacks que remontam à infância de Thomas, vemos fragmentos do corpo de sua mãe, gestos interrompidos na metade, fiapos de diálogos. Signos de ausência, de incerteza. Se a elipse é o princípio que organiza a narrativa, a metonímia é a figura que define seus enquadramentos.

Em Vips, roteirizado por Braulio Mantovani, há também o recurso sagaz à elipse e aos flashbacks, mas a figura do protagonista parece sempre soberana na tela. É em torno dela que se organiza o espaço e se movem os outros personagens (mesmo os que o dominam, como o patrão argentino ou paraguaio). É como se, a exemplo das pessoas à volta de Marcelo, a encenação se submetesse também ao carisma e ao magnetismo do personagem. O filme espelha assim, conscientemente ou não, a cultura da superfície, da aparência, que caracteriza a nossa sociedade do espetáculo e da celebridade.

O opaco e o resplandecente

Em contraste com o resplandecente e loquaz Marcelo, que se desdobra em tantas personae, o calado Thomas se mostra opaco, introspectivo, insondável. Se o outro é muitos, ele é nenhum, é um ninguém que passaria despercebido se não fosse sua capacidade de desencadear a violência e o mal-estar.

Mal-estar, aliás, talvez seja a palavra adequada para definir a sensação produzida pelo filme dos Miller. Perto dele, Vips é uma obra ligeira de entretenimento, ainda que toque de leve em questões dolorosas. Sem querer estabelecer uma hierarquia ou um juízo de valor, é como se o francês fosse um filme dirigido ao público adulto e o brasileiro à plateia juvenil em que parece que todos nos transformamos nas últimas décadas.

Uma última observação: nenhum dos dois filmes seria o que é se não contasse com um ator extraordinário como protagonista. O exuberante Wagner Moura e o taciturno Vincent Rottiers são rostos que enchem a tela de vida e justificam uma ida ao cinema.

De brinde, vai o trailer do filme de Claude e Nathan Miller. Bom proveito.

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