Jornalismo digital: A tática seringueira do empate 

Para manter a floresta em pé, seringueiros usaram formas de ação direta não violenta. O Wikinews, plataforma colaborativa de notícias com conteúdo aberto, faz o mesmo: diante do poder das big techs, contorna o algoritmo e propõe convivência forçada como forma de resistência

Imagem: ProsperidadeConteudos
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Enquanto se fala em crise do jornalismo, talvez devêssemos falar em cerco. Um cerco travado não apenas nos campos da economia ou da política, mas na própria arquitetura das plataformas digitais. O jornalismo feito nas big techs, e para as big techs, opera numa lógica de embate. Disputa-se atenção, vence-se o algoritmo, sustenta-se cliques, reage-se a métricas. Cada texto vira produto, cada manchete uma armadilha. A notícia se esvazia ao se moldar ao formato da plataforma.

Mas há outras formas de existir, inclusive digitalmente. Se o embate tem sido o campo preferencial da grande imprensa em sua tentativa de sobrevivência, talvez valha recuperar uma ideia vinda de outro território e outra luta: o empate. Foi assim que os seringueiros do Acre, entre 1970 e 1980, nomearam sua tática de resistência diante das motosserras. Em vez de combater com armas ou recuar em silêncio, eles permaneceram. Organizaram seus corpos em grupo e interromperam o avanço da destruição. O empate, nesse contexto, não era nem vitória nem rendição. Era travessia. Uma forma de conter o poder que quer devastar tudo com sua pressa. Uma forma de sustentar o tempo da floresta, o tempo da vida, o tempo da dignidade.

Essa mesma lógica pode iluminar práticas jornalísticas que, mesmo minoritárias, insistem em se manter fora da engrenagem das big techs. Um exemplo eloquente é o Wikinews, projeto mantido pela Wikimedia Foundation, que oferece uma plataforma de jornalismo colaborativo, descentralizado e gratuito. O Wikinews não opera para vencer o algoritmo. Ele o contorna. Não disputa cliques nem audiência programática. Propõe outra temporalidade. Seu conteúdo é construído coletivamente, com base na neutralidade e na verificabilidade, sem anúncios, sem ranqueamento artificial, sem vigilância sobre o leitor.

No entanto, experiências como o Wikinews também enfrentam obstáculos profundos. A proposta de um jornalismo colaborativo e voluntário esbarra em barreiras estruturais que vão desde a baixa adesão de jornalistas até a dificuldade de atrair audiências significativas em meio a plataformas que dominam os fluxos de atenção. Não é simples criar engajamento num modelo que rejeita o sensacionalismo, nem manter uma comunidade ativa sem incentivos institucionais. O desafio é duplo: resistir ao modelo vigente sem cair na irrelevância, e sustentar uma proposta ética sem abrir mão da visibilidade necessária para que o jornalismo cumpra sua função pública.

Ainda assim, vale considerar que, se as plataformas hegemônicas são hoje o campo do embate, Wikinews simboliza o empate digital. Não como nostalgia de um jornalismo supostamente puro, mas como prática concreta de desaceleração, redistribuição e descolonização da produção noticiosa. Ali não há algoritmo definindo o que importa. Há comunidades organizando o que precisa ser dito. Não há modelo de negócios extraído da vigilância. Há um pacto editorial baseado na transparência e na coparticipação.

Ao encarar esse contraste, percebe-se que o embate tende à superação. Quer vencer, anular, impor. O empate, ao contrário, reconhece a tensão e escolhe a convivência forçada como forma de resistência. É o que o Wikinews faz. Não anula o jornalismo comercial, mas também não depende dele. Não rejeita a tecnologia, mas recusa a captura. Não busca escalar viralmente, mas manter a qualidade do que se transmite.

Num momento em que a inteligência artificial (IA) é treinada em cima do trabalho jornalístico, muitas vezes sem consentimento ou compensação, a disputa não é apenas econômica. É também ética. As plataformas querem moldar a informação ao seu formato e ritmo. Querem extrair valor sem redistribuir poder. E nesse contexto, o empate é mais do que estratégia. É descontinuar a tática diária do embate, tática na qual o jornalismo perde e apenas as big techs vencem.

A experiência do Wikinews nos convida a imaginar um jornalismo fora da engrenagem, fora do jogo do “jornalismo zero”. Um jornalismo que não precisa disputar a atenção, mas que possa reocupar à esfera pública digital por outros valores, seja no ato de buscar a própria notícia ou de unir veículos independentes em um mesmo publicador não-alinhado com as redes sociais.

Imaginemos um jornalismo feito não para vencer, mas para sustentar pelo envolvimento e não pelo alcance. Como na floresta, como nos empates do Acre, talvez o gesto mais radical hoje seja permanecer e não permitir que tudo se destrua em nome da velocidade.

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