Jeremy Corbyn desafia o sistema outra vez

Expulso dos Trabalhistas britânicos por defender posições pós-capitalistas, deputado lidera formação de novo partido – que já reúne 650 mil apoiadores. Ideia central: é hora de recolocar em movimento os que se desiludiram com a política

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Entrevista a Marcus Barnett, na Tribune | Tradução: Antonio Martins

Nas últimas semanas, um anúncio inesperado feito pela ex-deputada inglesa Zarah Sultana, sobre um novo partido à esquerda dos Trabalhistas (Labour) foi recebido com euforia por milhões de pessoas em toda a Grã-Bretanha, ansiosas por apoiar uma força política que se oponha ao apoio do primeiro ministro Keir Starmer ao genocídio em Gaza e à “austeridade” fiscal.

No momento em que este texto é escrito, mais de 650 mil pessoas já se inscreveram manifestando interesse de se tornarem membros do partido. E, apesar da atitude tipicamente pouco perspicaz da mídia, o anúncio também suscitou discussões entre uma esquerda britânica dolorosamente consciente de sua ausência no debate político “mainstream” desde 2022.

Na semana passada, o editor-associado da Tribune, Marcus Barnett, reuniu-se com o ex-líder do Labour, Jeremy Corbyn, uma figura-chave no desenvolvimento do novo partido, para discutir algumas das diversas posturas que começam a ser delineadas. Abordaram desde a necessidade de tomar a iniciativa do Reform [partido de ultradireita, em ascensão] em relação ao desencanto com a política até questões sobre quão ampla pode ser uma ‘tenda ampla’, a organização comunitária, a relação com os Verdes e se é possível evitar os erros do passado, quando se trata de desafiar, a partir da esquerda, o Partido Trabalhista.

Marcus Barnett: O lançamento de um potencial novo partido de esquerda fez com que milhares de pessoas reacendessem suas esperanças de tornar seu país e seu mundo um lugar melhor. O que as inscrições revelam sobre a escala do desencanto político?

Jeremy Corbyn: 650 mil pessoas não se inscrevem num novo projeto sem motivo. Elas decidem-se a fazê-lo porque já chega. Já chega de serem empobrecidas, enquanto os ricos ficam mais ricos. Já chega de contas de água mais altas, em troca de tubulações estouradas e esgoto nos mares. Já chega de fazerem exigências básicas – como garantir que as pessoas com deficiência tenham apoio suficiente para viver com dignidade – e serem ignoradas. Já chega de serem excluídas das decisões que afetam as suas vidas diárias.

Veja os problemas que a sociedade enfrenta hoje: os bancos de comida gratuita (“food banks”) são um elemento destacado na vida de milhares de pessoas. Inquilinos de apartamentos privados gastam no aluguel bem mais da metade do seu salário líquido. Pessoas de todas as idades vivem em estresse permanente. Quando um governo assume o cargo prometendo que as coisas vão mudar, e depois nada muda, algo tem de ocorrer. Essa energia está reprimida há algum tempo, pois nenhum destes problemas é novo. Sucessivos governos recusaram-se a fazer qualquer coisa sobre eles. Isso terá uma consequência. Eles vão colher o que semearam.

Anunciar o website do partido foi como assistir a uma barragem a romper. Pessoas que não enxergavam uma alternativa real encontraram, de repente, algo de que participar. Encontraram uma razão para ter esperança. Estabelecemos uma visão política bastante sucinta, baseada em princípios fundamentais de igualdade e paz. Incluímos a propriedade pública, impostos sobre a riqueza, investimento em habitação social e apoio à Palestina. Não foi necessário traçar uma visão mais detalhada, não só porque isso será decidido pelos membros [do novo partido], mas porque as pessoas puderam ver o tipo de posição que defendíamos. Este caminho – o da distribuição da riqueza e do poder — lhes foi negado por muito tempo.

Vocês já tem uma noção sobre o tipo de pessoas que se têm inscrito?

Como seria de esperar, tivemos um grande número de inscrições em grandes cidades como Londres, Liverpool, Manchester e Newcastle. No entanto, o que me surpreendeu foi a forma geralmente capilarizada e equilibrada do apoio, por todas as regiões e nações. Ele é mais forte em Londres, no Noroeste e em Yorkshire e Humber, mas também se espalha por todo o lado – até mesmo até nas Ilhas Hébridas Exteriores.

Isto é prova de que os problemas que enfrentamos são fundamentais e afetam pessoas em todo o país: pobreza, depressão salarial, estresse, serviços públicos em decadência, crescente isolamento social.

A maior parte das pessoas que se aproximam de mim dizendo que se inscreveram estavam claramente à espera de uma nova iniciativa política há algum tempo. Elas mostram-se entusiasmadas, quase inquietas. Mas, acima de tudo, soam esperançosas. Também fui abordado por pessoas que nunca estiveram realmente envolvidas na política antes. Foi uma reação semelhante à que vivi durante a nossa campanha eleitoral do ano passado. Estamos construindo um novo tipo de partido político, que vai proporcionar espaço a pessoas a quem nosso sistema bipartidário obsoleto negou voz.

De fato, há muita gente inquieta. Desde que vocẽ foi suspenso do Labour, os apelos para uma nova formação política liderada por si e pelos seus princípios têm sido altos. O anúncio parece ser o fim de um processo muito longo que começou com os ataques da direita do Labour contra você há quase meia década. Como se chegou a tudo isto?

Muitos bons companheiros aproximaram-se de mim ao longo dos anos, sugerindo que é necessária uma nova voz política no Reino Unido.

Depois de ter sido suspenso como membro do grupo parlamentar do Labour, permaneci como membro do partido e deputado não vinculado ao governo, com o apoio de muitos companheiros locais, que queriam afirmar os seus direitos democráticos como membros do Partido Trabalhista. Keir Starmer, o líder do partido, finalmente proibiu-me de me candidatar por ele, o que foi um ataque deplorável à democracia local; a minha opinião era que o povo deveria decidir. Foi por isso que me candidatei como independente.

Acho que vencer uma eleição como independente, antes de lançar um partido, vai se provar historicamente significativo. Senti que ganhar no distrito eleitoral de Islington North era importante, não apenas para a nossa comunidade, mas para pessoas além dela. Criar um novo partido antecipadamente, com pouca antecedência, provavelmente me obrigaria a viajar por todo o país, o que teria um custo significativo para nossa campanha local.

Foi durante a campanha eleitoral que se tornou mais óbvio o porquê de, num futuro próximo, estabelecer uma nova voz. Fiquei surpreso com o número de pessoas que nunca tinha conhecido antes, de todo o país, muitas das quais não haviam se envolvido na política, e que de repente queriam fazer parte da nossa campanha. Isso, para mim, foi indicativo do nível de apoio existente para uma alternativa política real.

Desde a eleição, os apelos por um novo partido político tornaram-se mais altos e generalizados. Tive muitos diálogos, com muitas pessoas, e ficou vez mais claro por que ele não é apenas possível, mas fundamentalmente necessário.

Sejamos claros: o Labour falhou total e completamente em sinalizar a mudança que prometeu – seja a sua recusa em abolir o limite de benefícios sociais para dois filhos, a extinção de benefícios por deficiência, a traição ao movimento Waspi [sigla em inglês de Mulheres contra a Desigualdade nas Aposentadorias], os cortes no apoio ao combustível para o aquecimento inverno, ou a sua atroz cumplicidade no massacre de palestinos.

E agora mesmo, enfrentamos uma situação em que o Labour está pavimentando uma avenida para um governo do Reform. Estamos num momento crítico da política britânica – e é por isso que decidimos lançar um novo partido. Se queremos viver numa sociedade de igualdade, inclusão e paz, e não de desigualdade, divisão e guerra, então precisamos de defender uma alternativa.

Houve uma decisão consciente de construir uma estrutura totalmente nova. Qual é o raciocínio por trás disto? Tem a ver com problemas que você previu num partido hierárquico? Eles são baseados nas suas próprias experiências no Labour, ou mesmo em liderá-lo?

Ao longo dos últimos 40 anos no parlamento, testemunhei em pessoa as razões pelas quais o nosso sistema político está falido.

Uma dessas razões é a forma como os nossos partidos políticos são estruturados. Eles são hierárquicos, centralizados e burocráticos. Quando eu era líder do Partido Trabalhista, enfrentei uma oposição enorme ao apoio às Unidades de Organização Comunitária (COUs), cuja premissa básica era permitir que as comunidades locais se organizassem por si mesmas, já que elas conhecem os problemas que enfrentam.

Isso gera confiança, e o partido fica enraizado nessas comunidades, o que leva a um sucesso eleitoral muito maior. Em 2019, a nossa votação foi maior nos distritos onde existiam COUs. Se não fosse a obstrução burocrática que atrasou a sua introdução, poderiam ter tido um impacto muito maior.

No Partido Trabalhista de hoje, os deputados parecem ter medo das pessoas que devem representar. E quando os partidos se centralizam demais, produzem más políticas e decisões como a privatização de serviços públicos, como invadir o Iraque, como a austeridade.

Por isso é que tentámos fazer algo diferente. A política deve ser sobre empoderamento – e é disso que eu quero que este partido trate. Um partido que seja aberto, inclusivo, de base e democrático. Muitos na nossa mídia tiveram dificuldade para entender a ideia de deixar pessoas comuns moldarem o futuro do novo partido. Para as 650 mil pessoas que se inscreveram, não foi tão difícil de entender.

Queremos nos reunir, até o fim do ano, numa conferência inaugural para decidir os rumos do nosso partido — mas esta conferência não surgirá do nada. Será o produto de uma série de reuniões deliberativas por todo o país. Mais do que comícios, estas reuniões serão uma oportunidade para comunidades, movimentos sociais e sindicatos se reunirem para discutir as questões-chave que o futuro do nosso partido e do nosso país enfrenta. Tenho a certeza de que estas reuniões gerarão debates acalorados, e isso é bom. É para isso que serve a democracia.

O que poderia significar uma organização democrática neste contexto? Como o partido se relacionaria com movimentos sociais mais amplos, como organizações pelo direito à habitação ou anti-guerra?

Escrevi recentemente num artigo que um dos maiores erros que um partido pode cometer é pensar que deve escolher entre estar no parlamento e outras formas de ação. Precisamos nos organizar em todo o lado: nos territórios, no parlamento, nos locais de trabalho e nas nossas comunidades. Esse é o poder de um partido democrático: capacitar pessoas comuns para moldarem as suas prioridades, não apenas pessoas treinadas para fazer lobby junto dos deputados no parlamento. É assim que articulamos campanhas em toda a sociedade.

Se examinarmos o último ano na política, alguns diriam que ele é definido pelo fracasso do Labour. Eu digo algo ligeiramente diferente. É definido pelo crescimento extraordinário de movimentos: sindicatos, associações de inquilinos, defensores da justiça para deficientes, ativistas anti-racistas, ativistas climáticos e ativistas pela paz. Estes grupos podem algo sozinhos; imagine o que eles poderiam alcançar juntos, se fossem capacitados para tal.

Muitos sindicatos, delegados e altos funcionários sindicais que tradicionalmente estariam ligados fortemente à esquerda do Labour ou mesmo nas alas mais à direita – estão expressando uma curiosidade genuína em relação ao novo projeto.

Falo regularmente com funcionários, líderes e membros de sindicatos. É evidentmente claro que existe um descontentamento generalizado em relação à direção que este governo tomou. Quero ver nosso novo partido a trabalhar com sindicatos e movimentos sociais por todo o país. Estou pessoalmente muito feliz por trabalhar com todos os tipos de sindicatos.

Também quero que o partido apoie trabalhadores que não conseguiram organizar-se, particularmente nas plataformas e na economia gig (de bicos) em geral. No início deste ano, realizámos um Fórum Popular fantástico em Islington North, que se focou na economia gig. Houve um reconhecimento de que melhorias reais surgem quando os trabalhadores agem como um poder coeso.

Também é importante que não vejamos o movimento sindical como separado de outras partes do nosso movimento, como o movimento pela paz. Tive o prazer de conhecer Chris Smalls dos EUA, que organiza os trabalhadores da Amazon. Ele também se juntou recentemente à Frota da Liberdade para Gaza. É a prova de que não precisamos escolher entre fazer campanha pelos trabalhadores e fazer campanha pela Palestina. Temos de fazer ambos!

Numa questão similar, quando se poderia dizer que uma coalizão pode ser demasiado ampla? Quais são as contradições que você vê emergir e como poderiam ser superadas?

Trabalho bem com os meus colegas independentes, principalmente como uma voz unida contra o genocídio em Gaza. Eles ofereceram muita esperança às pessoas que sabem haver no Parlamento deputados que defendem o povo palestino sem se envergonharem. Nem sempre concordamos em tudo, mas somos uma oposição clara numa série de questões: a oposição ao limite de benefícios para dois filhos, cortes no apoio ao combustível para aquecimento de inverno, cortes nos benefícios por deficiência e vendas de armas a Israel.

Acredito no poder da unidade através da democracia. Sim, o novo partido vai gerar desacordos e divisões. Devemos ser abertos e honestos sobre eles e confiar nas instituições democráticas para resolvê-los de forma construtiva e produtiva. Precisamos construir um movimento que reconheça a diversidade de opiniões, mas que defenda os direitos humanos e a dignidade de todos. Devemos estar unidos contra a opressão e o preconceito em todas as suas formas – é o que faremos.

Com base nas lições de tudo, desde o Partido Socialista dos Trabalhadores (Socialist Labour Party, SLP) ao Respect, quais são os seus pensamentos sobre como um partido de esquerda pode sobreviver aos desastres habituais alimentados por cultos de personalidade e guerras sectárias internas?

Quero que este partido seja aberto, inclusivo e de base. A estrutura precisa, de alguma forma, refletir a ampla natureza geográfica do nosso apoio e capacitar as comunidades locais para promoverem mudanças de baixo para cima. O que eu não quero são batalhas intermináveis sobre quem está em que comitê nacional.

A forma de manter um partido unido é atermo-nos às questões e campanhas fundamentais, como a pobreza infantil, os direitos humanos e a paz. Vamos lembrar por que estamos fazendo isso: para transformar a sociedade redistribuindo a riqueza e o poder. Não tem a ver conosco, enquanto ativistas – mas com os milhões de pessoas que merecem uma vida melhor. Com as crianças que vivem na pobreza. Com povo da Palestina. Tem a ver com eles, não conosco.

Quais são os seus pensamentos sobre uma aliança com os Verdes (Greens)?

O partido que estamos criando será muito forte em questões ambientais, fundamentado na ideia de que a justiça climática é justiça social. Trabalharemos com os Verdes onde pudermos – obviamente em questões ambientais, mas também, espero, em questões de paz e direitos humanos. Estou sempre aberto a trabalhar com indivíduos e grupos afins. A cooperação torna-nos a todos mais fortes.

Conheço muitos membros dos Verdes, trabalho bem com seus deputados parlamento e cooperamos quando podemos. Isso ajudou a construir uma aliança de oposição a várias questões, em especial os cortes nos benefícios por deficiência. Também fiz campanha ao lado do Zack (Zack Polanski, deputado dos Verdes) em muitas questões, aparecendo juntos em muitas plataformas anti-austeridade.

Neste momento, a nossa prioridade nesta ação comum deve ser parar o ataque de Angela Rayner às hortas comunitárias.

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