Equador: a delicada esperança da Revolução Cidadã

Avanços nos governos Correa são inegáveis — mas também a ruptura com movimentos sociais. Em meio a dificuldades econômicas, Moreno tentará recomposição

Lenín-Moreno

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Avanços nos governos Rafael Correa são inegáveis — mas também o é a ruptura com parte importante dos movimentos sociais. Em meio a dificuldades econômicas, Lenín Moreno tentará recomposição

Por Pedro P. Bocca*

A confirmação da vitória de Lenín Moreno (Alianza PAIS – Patria Altiva i Soberana) pelo Conselho Nacional Eleitoral do Equador na noite do último domingo (02/04) marca não só a continuidade do período de maior estabilidade política institucional da história recente do Equador, como também a manutenção do projeto político chamado de Revolução Cidadã naquele país.

Entre avanços e contradições, os dez anos de governo de Rafael Correa alteraram a correlação de forças no país e realizaram transformações gestadas nas lutas populares contra os 30 anos de neoliberalismo, instalado desde o final da ditadura militar de 1979, e que causou enorme instabilidade política, econômica e social nas décadas seguintes.

Economicamente, o governo Correa se beneficiou da valorização das commodities, ao mesmo tempo em que promovia políticas neodesenvolvimentistas em âmbito interno. Os resultados saltam aos olhos: o crescimento do PIB per capita passou de uma média histórica de 0,6% até 2006 para 1,5% nos dez anos de correísmo; a pobreza caiu 38% de 2006 a 2016 e a pobreza extrema foi reduzida em 47% no mesmo período. O avanço econômico permitiu ao governo dobrar os investimentos em áreas sociais nestes dez anos, garantindo a realização dos Planos Nacionais do Buen Vivir construídos em decorrência da Constituição Cidadã de 2008, formulada com ampla participação dos movimentos sociais do país.

Este investimento social impulsionou ganhos concretos para a população mais pobre: o sistema de seguridade social, que cobria apenas 26% da população em 2006 hoje supera os 70%; os investimentos em saúde, em especial nas comunidades originárias e no interior do país, produziram um crescimento de 300% no número de consultas nos centros médicos públicos; na educação, o acesso ao Ensino Médio subiu de 48% em 2006 para 67% dez anos depois e o investimento em universidades incorporou mais de um milhão de jovens por ano a mais do que o registrado em 2006.

A Revolução Cidadã, porém, não escapou de contradições importantes neste período. A principal delas foi a relação do governo com os movimentos sociais que foram sua base no processo eleitoral e na construção das lutas políticas nos últimos vinte anos. A ideia do Buen Vivir, trazida ao horizonte da política equatoriana pelo movimento indígena e por setores ambientalistas foi protagonista da Constituição Cidadã e da estruturação do governo Correa. A noção da natureza como sujeito de direitos, a crítica ao capitalismo, ao extrativismo e à especulação neoliberal e uma proposta de desenvolvimento sustentável ao país unificaram amplos setores da sociedade (da classe média às comunidades indígenas) em um horizonte transformador.

Esta ideia, porém, quando assimilada pelo governo não teve o mesmo respaldo que sua concepção. O governo Correa não só não alterou a estrutura extrativista da economia equatoriana, como ampliou a participação do Estado na exploração de petróleo e criou um amplo programa nacional de mineração, que afetou comunidades indígenas e atraiu multinacionais do setor. O reforço do extrativismo, somado a uma alegada falta de diálogo com os movimentos sociais, impulsionou o rompimento de atores sociais importantes – como a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) e a Federação Nacional de Organizações Camponesas, Indígenas e Negras (Fenocin) – com o governo.

Soma-se a isso a crise econômica pós-2008, que atacou com força, em sua segunda fase, as economias dependentes de commodities. A queda abrupta do preço do petróleo (principal elemento da constituição do PIB do país) e de outros produtos primários afetou enormemente a economia, causando um aumento exponencial de desemprego (que ainda é baixo para os padrões da região, mas que aumentou de 3,8% em 2014 para cerca de 6% em 2016) e do subemprego, que chegou a índices próximos de 20%.

É neste cenário que Lenín Moreno, vice-presidente do Equador entre 2007 e 2013 e secretário-geral das Nações Unidas sobre Deficiência e Acessibilidade a partir de 2014, foi indicado para concorrer às eleições gerais deste ano. Com uma esquerda fragmentada e a crise econômica afetando uma parcela considerável da população, o desafio de Lenín foi mais complexo que as duas reeleições de Rafael Correa (2009 e 2013).

Mesmo com a direita expressando seu racha histórico no primeiro turno – com Guillermo Lasso, ex-banqueiro e representante dos interesses do capital financeiro, disputando com Cynthia Viteri do conservador Partido Social Cristão – Moreno não conseguiu os votos necessários para uma vitória em primeiro turno, forçando assim uma disputa ferrenha com Lasso, candidato derrotado em 2013, no segundo turno. A Alianza PAIS perdeu mais de um milhão de votos presidenciais em relação a 2013, e nas eleições legislativas (que ocorrem de forma simultânea) caiu de 100 deputados para 74, suficientes para garantir a maioria legislativa, mas permitindo um crescimento considerável da oposição de direita (de 23 deputados em 2013 para 61 em 2017).

A pequena margem de vitória no segundo turno, em que a diferença não chegou a 3%, trouxe consigo uma instabilidade política há tempos adormecida no país. Durante todo o segundo turno e no dia da votação, a direita equatoriana e a mídia divulgaram pesquisas eleitorais que indicavam vitória de Lasso, o que está sendo usado como pretexto para o discurso de fraude levantado pelo candidato derrotado e por sua base, desde a madrugada de domingo (2/4). É importante ressaltar que o Equador não possui uma grande tradição democrática, mas sim uma história de golpes e disputas políticas. Da fundação da República em 1830 até a posse de Rafael Correa em 2007, o país teve 19 Constituições – a maioria oriunda de golpes de Estado – e 84 presidentes, sendo apenas 43 deles eleitos democraticamente, além de 13 juntas de governos militares. O próprio Rafael Correa foi alvo de uma tentativa de golpe em 2010, barrado pela mobilização popular.

A estratégia de não-reconhecimento do resultado das eleições como gatilho de instabilidade, já utilizada com sucesso na Venezuela em 2013 e no Brasil em 2014, é ainda mais perigosa no Equador, devido ao histórico do país. O principal desafio de Lenín Moreno agora é buscar soluções para a recuperação econômica e trazer de volta à base do governo o movimento social e setores que hoje constroem uma frágil oposição de esquerda.

A importância desta vitória, e da continuidade da Revolução Cidadã, transcende a política interna do Equador. Lenín Moreno assume um país que é hoje, ao lado da Bolívia de Evo Morales, linha de frente na resistência ao avanço neoliberal na América Latina. A sobrevivência de projetos de integração regional como a Unasul, ALBA e Celac e a continuidade de políticas progressistas na região, ameaçada pela crise institucional das três maiores economias do Cone Sul, pode encontrar no Equador um foco de retaguarda. E a direita equatoriana, comprometida com seus aliados internacionais, sabe bem disso.

 *Pedro P. Bocca é integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.

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