A velhice dos clássicos

Filme clássico, por definição, é aquele que se torna referência. Como justificar que as formas de antes caiam em desuso?

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O filme clássico, por definição, é aquele que se torna referência. Como justificar então que as formas de antes caiam em desuso?

Por Bruno Carmelo, editor do blog Discurso-Imagem.

 

Dentre os diversos adjetivos atribuídos aos filmes, “clássico” é um dos poucos que não está originalmente ligado à noção de qualidade. Pode-se achar muitos clássicos bons, ou achar que tantos outros filmes bons mereceriam tal rótulo, mas o fato é que este termo corresponde essencialmente a uma noção de tempo. Um filme clássico é aquele que, em determinada época, foi cultuado por uma razão particular e em seguida lembrado e apropriado como referência pelas gerações posteriores. Ele pode inclusive ser considerado ruim ou medíocre (pensemos nos Goonies, na Lagoa Azul), mas teria marcado em seguida a noção de qualidade – ou falta da mesma. Pela noção temporal, o clássico é: 1) aquele que não se esquece (qualidade relacional, dependente do espectador), 2) aquele que não envelhece (qualidade em si), 3) aquele que é necessariamente distante, antigo – nenhuma estreia seria diretamente considerada clássica (qualidade social, temporal).

A capa francesa do DVD de O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, por exemplo, insiste que o filme é um clássico, e utilizando uma expressão francesa famosa, diz que ele “não tem uma ruga sequer”. Ou seja, sugere-se que os filmes lembrados mantêm-se no imaginário coletivo sem transformações, e que o fato de terem se tornado referências implica que seu modo de fazer cinema é copiado, e portanto ainda apreciado e presente nos dias de hoje. O clássico seria, por definição, um filme “avançado para sua época”. No caso de Baby Jane, pode-se entender as razões pelas quais o projeto teve um grande sucesso em 1962: um duo de atrizes consagradas e rivais (Bette Davis e Joan Crawford), a adaptação de uma história real neste país que adora os talentos infantis e os shows de variedade, um diretor respeitado (Robert Aldrich) etc.

Resta saber se este filme, de fato, não “envelheceu”. No que diz respeito ao reconhecimento externo enquanto clássico, de fato os DVDs, as retrospectivas e outros materiais de conservação e de reprodução garantem que o título seja sempre lembrado. A vantagem deste rótulo é que, pelo clássico ser considerado “indispensável” à cultura de um indivíduo (geralmente recomenda-se clássicos como formação cultural, e não apenas filmes julgados bons), sua fama se auto reproduz com facilidade, e com o passar dos tempos, sua qualidade não é mais questionada, sob pena de levantar suspeitas: algum crítico atual tem coragem de dizer que Cidadão Kane ou Psicose não são filmes bons? A impressão de valor torna-se cíclica: considera-se que o filme é lembrado porque é bom, e que é bom porque é lembrado. Por isso a confusão entre antiguidade e qualidade, típica dos críticos cinéfilos e nostálgicos de nossos dias.

Ora, um indivíduo que assistisse a O Que Terá Acontecido a Baby Jane? sem conhecer a fama do filme, das atrizes ou do diretor, poderia facilmente perceber que o cinema feito nesta época não corresponde mais à noção de suspense, ou de drama, existente atualmente. Chega a ser engraçado ver uma noção de direção de som completamente em desuso, com pianos e xilofones sublinhando cada alegria, cada tristeza, e antecipando cada cena de suspense. Não adianta esperar que o espectador construa por si mesmo as expectativas: este é um tipo de cinema contrário às sutilezas ou ambiguidades. Todos os segredos são conhecidos pelo público, sua posição de espectador onisciente lhe deixa apenas constar os fatos diante de si. Sem dúvida, poderia se dizer que mesmo Hitchcock trabalhava melhor a noção do suspense e da distribuição de informações entre o público e o filme. Pode-se também argumentar que muitos filmes contemporâneos são baseados em efeitos e no prazer passivo do espectador.

Entretanto, os enquadramentos não são mais os mesmos, os planos de detalhe em cada objeto não são mais os mesmos, o som aprendeu a usar, de maneira intermitente, o silêncio em seu potencial assustador (vide Atividade Paranormal, A Órfã), o steadycam trouxe novos movimentos de câmera, a grua não tem mais o mesmo uso. A sociedade e a tecnologia mudam, portanto o cinema também muda. Logicamente, a questão não é dizer que os filmes de antes são melhores ou piores do que os de hoje, afinal as estreias de 2011 serão os clássicos de 2030, mas apenas constatar que as formas e as narrativas se transformam sensivelmente, apesar destes filmes serem sempre considerados como referências, como filmes que não envelhecem. Talvez o que não envelheça seja apenas a relação emotiva, sentimental com a obra, com a noção de qualidade que ela teve em sua época. Ama-se o filme pelo que ele foi, pela distância que ele representa, pela diferença entre sua época e a nossa.

Afinal, se o cinema envelhece (ou amadurece, como quiser), e se a sociedade evolui, a única maneira de O Que Terá Acontecido a Baby Jane? não ganhar “uma ruga sequer” é em sua relação atemporal, sentimental, com o espectador. Como se disse no início, o “clássico” constitui uma curiosa noção temporal: quanto mais seu aspecto material envelhece (os atores morrem, os DVDs saem em “edições de colecionador”), mais seu valor é elevado a um nível atemporal, apreciado eternamente. O estilo de atuação de Bette Davis e Joan Crawford, exagerado e cheio de tiques, pode ter desaparecido, mas a apreciação das atrizes pelos nossos avós foi passada aos nossos pais, e a nós. O amor pelo filme e a noção de modelo de qualidade seguem caminhos simultâneos e opostos: quanto mais o tempo passa, mais o clássico é amado, e mais seu modo de conceber o cinema se distancia do cinema feito hoje em dia. Neste caso, a frase cai bem: o amor é realmente cego – e com uma memória bastante seletiva.

 

What Ever Happened to Baby Jane? (1962)

Filme norte-americano dirigido por Robert Aldrich.

Com Bette Davis, Joan Crawford, Victor Buono.

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