A grande disputa geopolítica pelo Pacífico Norte

EUA tentam cercar a China, em aliança militarista com Japão, Coreia do Sul e Austrália. Mas Pequim e Moscou, fortalecidos, podem atrair também Pyongyang. Num oceano cada vez mais relevante, trava-se uma das batalhas pelos rumos do século XXI

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Por Wagner Sousa

Exercicio militar da Frota do Pacífico norte-americana. Em Camp David, Biden selou aliança inédita com Tóquio e Seul, na tentativa de confrontar Pequim

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O texto a seguir integra a edição nº 2 (novembro de 2023) do boletim do Observatório do Século XXI — parceiro editorial de Outras Palavras. A publicação, na íntegra, pode ser baixada aqui
Título original:
“O tabuleiro geopolítico do Pacífico Norte”

A recente reunião no cosmódromo de Vostochny, localizado no extremo oriente da Rússia, entre o presidente russo Vladimir Putin e o líder norte-coreano Kim Jong-Un deu início a uma aliança entre os dois países, numa reaproximação que remonta à guerra fria, e que traz mais um desenvolvimento ao acirramento das tensões geopolíticas no mundo. Estas opõem principalmente Rússia e China aos Estados Unidos e seus satélites na OTAN em conjunto com Japão, Coréia do Sul e Austrália.

A aliança entre Coréia do Norte e Rússia ainda não tem contornos claros. Analistas observam que é improvável imaginar a Rússia, ciosa de suas capacidades tecnológicas, muitos de vanguarda, em especial referentes às armas nucleares, em troca de munição e armamentos para promover a guerra convencional, embora precise de suprimentos. adicionais. Contudo, os russos já demonstraram a intenção de colaborar com os norte-coreanos para desenvolvimento de seu programa espacial como, por exemplo, o lançamento de satélites, importantes para a defesa, e já sinalizaram com um exercício militar conjunto entre suas forças armadas, as da China e da Coreia do Norte. Rússia e China já vêm realizando exercícios militares conjuntos, principalmente de suas marinhas.

Esta “tríplice aliança” em formação busca se opor a outra, recentemente estabelecida, entre Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul, parte de uma rede de alianças que vem sendo patrocinada pelos EUA e que tem o intuito principal de conter a China. Os norte-americanos vêm apoiando o Japão em sua política de aumento maciço dos gastos militares e mudança da postura, tido como “pacifista”, do país no pós-II Guerra. Ao promover a aliança com ambos e não parcerias bilaterais, os EUA buscam uma aproximação maior entre Coreia do Sul e Japção, algo problemático dado o histórico intervencionista japonês na Ásia e às muitas feridas não curadas do período de ocupantes, com muitos relatos de atrocidades cometidas pelos soldados do império do sol nascente. Mas sob tutela dos EUA, Japão e Coreia do Sul estão agora unidos contra “inimigos comuns”. Todavia ainda permanecem reisstências na opinião pública sul-coreana que impedem uma “união maior” com o Japão.

Esta nova iniciativa norte-americana se junta a outras como o QUAD (Diálogo Quadrilateral de Segurança) entre EUA, Japão, Índia e Austrália, o AUKUS (acordo militar entre EUA, Austrália e Reino Unido), o recente acordo militar entre Austrália e Filipinas, dentre outros. A citada “rede de alianças” que vai se formando e buscando cercar a China e reafirmar o domínio norte-americano na grande área dos oceanos Índico e Pacífico.

Um ponto importante a se destacar é que a inclusão da Coreia do Norte na aliança entre Rússia e China na região do Pacífico Norte Asiático é um desdobramento tanto do belicismo da administração Biden em relação à Coreia do Norte, com relação à qual descartou qualquer

possibilidade de diálogo, como também do apoio norte-americano à Ucrânia na guerra contra a Rússia. Muitos apontam o que seria um fracasso russo, tendo em vista que impedir a adesão da Ucrânia à OTAN foi uma das razões alegadas para a invasão, o que teve o efeito colateral de fazer Suécia e Finlândia buscarem a adesão à mesma OTAN, aumentando em mais de mil quilômetros a fronteira da aliança com a Rússia. Mas, se este resultado não era o desejado pela Rússia, o mesmo pode se dizer, para norte-americanos, japoneses e sul-coreanos, do ingresso da Coreia do Norte em uma aliança com russos e chineses. O cenário no “tabuleiro do Pacífico Norte Asiático” ficará bem mais instável e perigoso. Quatro potências nucleares estão entre os seis países envolvidos nesta disputa.

Relativamente isolada, a Coreia do Norte tende a ganhar acesso a gêneros alimentícios, fertilizantes, petróleo e outros bens que a Rússia poderá lhe vender. Mas, além destes bens essenciais, o recrudescimento bélico na região do Pacífico Norte Asiático faz com que o país busque alianças e proteção, mesmo tendo estimadas trinta ogivas nucleares e mísseis balísticos com capacidade de atingir o território dos EUA. A Rússia ganha um aliado estratégico no enfrentamento com os EUA e possivelmente trabalhadores norte-coreanos poderão estar na agricultura e nas cidades do extremo leste russo, carente de mão-de-obra. É de se lembrar o simbolismo da viagem de Kim à Rússia, um líder que raramente deixou o seu país, o que realça o valor desta aliança para os norte-coreanos.

A aliança entre EUA, Japão e Coreia do Sul teve também o aspecto simbólico de ser fechada em Camp David, casa de campo da presidência dos EUA e palco de acordos como a negociação de paz entre Israel e Egito em 1978, mediada pelo presidente Jimmy Carter. Não se trata de uma “mini-OTAN”, os países não tem a obrigação de reagir conjuntamente em caso de ataque a um deles, mas foram estabelecidas cooperação em inteligência e mecanismo de consultas em caso de riscos, com a previsão de linha direta entre os líderes. Na economia estão previstas cooperação em várias áreas como minérios, baterias, infraestrutura, cibersegurança, saúde e inteligência artificial. As parcerias refletem também a preocupação com as cadeias de suprimentos e o deslocamento da produção para países aliados (“friendshoring”). Contudo, mudanças de governos nos três países podem reverter este projeto de cooperação mais estreita.

A escalada militar das duas “tríplices alianças” vai tornando o jogo muito mais perigoso. Ao que se soma a situação de Taiwan, mais ao sul, ponto nodal da competição geopolítica entre EUA e China. O componente de capacidade nuclear da maioria dos atores inibe, em princípio, o conflito direto, pelas consequências devastadoras que poderiam advir da eventual utilização destas capacidades. Mas pairam dúvidas. Uma invasão chinesa de Taiwan pode envolver no conflito, como resposta, os atores da aliança EUA-Japão-Coréia do Sul, temerosos de uma hegemonia chinesa na região. Um erro de cálculo nas escaramuças com a Coreia do Norte também pode precipitar um conflito trágico, dadas as capacidades convencionais e nucleares deste país, e que conta com o apoio russo e chinês.

O Pacífico Norte Asiático também é o ponto inicial (ou final) da rota do Ártico que, com o derretimento deste oceano causado pelo aquecimento global, vai se tornar a conexão marinha

mais rápida entre a Europa e o Extremo Oriente. Rota quase integralmente sob a jurisdição da Rússia, na qual deve circular grande parte do comércio entre o Ocidente e o Oriente. E o estabelecimento desta rota comercial também influenciará no dinâmica do tabuleiro do Pacífico Norte Asiático, que pode se tornar um “tabuleiro crítico” global pela importância do volume do comércio que por ali passará, com suprimentos essenciais para muitas economias. Como exposto, um espaço com interesses de grandes potências e seus aliados, de dinamismo econômico e rivalidades históricas e vital para o desenvolvimento futuro do xadrez geopolítico global.

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